LUIZ CARLOS LISBOA
Minha convivência com o Murilo conheceu duas épocas e dois cenários diferentes. Ela se iniciou na redação do “Jornal do Brasil” na Avenida Rio Branco, no começo dos anos 60, quando o Alberto Dines resolveu criar o primeiro Departamento de Pesquisa da imprensa brasileira. Depois de advogar por quatro anos, eu tinha decidido que aquilo que desejava mesmo era escrever, bem ou mal mas escrever, em vez de falar com juízes e fazer arrazoados pelo resto da vida. Fiz um teste com o Dines e comecei como tradutor, de inglês e francês, dos telegramas que as agências de notícias enviavam para o JB. Um dia o Jaime Negreiros, chefe de redação do jornal, sugeriu lá dentro que eu poderia fazer também reportagens e entrevistas. O pessoal do “aquário” concordou e eu comecei minha vida de jornalista.
Naquele mesmo ano apareceu na redação um sujeito misterioso que ficava sentado numa mesa vazia, observando os repórteres e depois lendo as laudas que chegavam à mesa do Negreiros. Era estranho que o Negreiros permitisse isso. Todo dia almoçávamos, Luís Tápias, Francisco Baker, às vezes o Mauricio Kubrusly e eu, no restaurante do jornal, e com frequência comentávamos a figura pálida que lia atentamente toda lauda datilografada que lhe caía sob os olhos, e que se mantinha arredio, apenas lendo e olhando. Demos a ele o apelido de Kafka porque nos parecia sombrio, esquálido e tímido como o autor de “O Processo”. Dias depois o Tápias me encontrou no Caderno B, tomando café e batendo papo com o Nonato Masson, e me avisou muito sério: “O Kafka quer falar com você”.
A figura pálida estava me esperando na redação. “Vamos tomar um cafezinho?”, ele perguntou e eu concordei, sem dizer que aquele seria o segundo que eu tomaria em quinze minutos. Ele fora convidado pelo Dines a organizar um setor de pesquisa e arquivo no JB, e duas pessoas haviam indicado meu nome para ajudá-lo. Eu era o repórter que tinha a mania de explicar nas entrelinhas cada personagem e paisagem que entravam nas reportagens que fazia.
Os copys cortavam um bocado de coisa das matérias que eu entregava ao Negreiros. Fiquei entusiasmado com o convite e passei a almoçar todos os dias com o Murilo – o Kafka da nossa invenção – para discutir o que seria meu trabalho. Nos meses que se seguiram eu descobri um sujeito fantástico, brilhante, meio maníaco, muito tímido, louco por música e artes gráficas, e também dado a passageiras depressões que ele jamais comentava com alguém.
Tinha na minha gaveta do jornal um “Vademecum Médico- Farmacêutico” que um médico que entrevistei me havia dado.
A cada sintoma do Murilo – dor de cabeça, tonteira, nevralgia, lá o que fosse – eu puxava o livro da gaveta e recitava duas ou três linhas. Ele dizia que eu era o seu médico, e sabendo que eu já tinha sido advogado me pespegou o apelido de “Dr. Lisboa”. Os apelidos que o Murilo dava pegavam depressa, não sei porque, alguns para a vida toda. Era engraçado o velho contínuo da redação me chamando de doutor, e ao editor-chefe de você.
Com os dias, o Departamento de Pesquisa cresceu muito, e vieram o Luís Paulo Horta, a Clotilde Hasselmann (que o Carlinhos Oliveira ia contemplar nos finais de tarde), o Samuel Dirceu e outros tão bons quanto esses, que ficaram até o último dia do Murilo no jornal. A hipocondria do meu chefe era tema de piada no JB daquela época. Um dia em que íamos de táxi assistir, na Sala Cecília Meireles, um concerto de violino, ele me puxou pelo braço e perguntou, em voz baixa para que o motorista não o escutassse: “Dr. Lisboa, sabe me dizer se já soube de algum caso de câncer no coração?” Não, não sabia, respondi sorrindo, e ele ficou casmurro, meio envergonhado da pergunta, até começar o concerto.
A outra época e o outro cenário em que convivi com o Murilo foi em São Paulo, no primeiro ano de vida do “Jornal da Tarde”. Era também um tempo de euforia, criatividade e sucesso. O jornal do Ruy Mesquita era o assunto do dia no mundo da comunicação no Brasil, e o regente daquela orquestra era o pálido, silencioso e sardento mineiro de Lavras, o inesquecível Kafka da redação luminosa do JB no Rio. Primeiro na Major Quedinho, no coração de São Paulo, depois na Marginal do Tietê, Murilo comandou o trabalho entusiasmado de uma geração jovem de jornalistas notáveis. Durante quinze anos, mais ou menos, mantivemos o hábito de interromper nosso trabalho para tomar café, onde houvesse um café decente para tomar. “Vamos para o nosso tradicional?”, ele me perguntava e já ia caminhando para o elevador.
Murilo sorvia seu café numa xícara grande, quase sem açúcar, e não comia nada de acompanhamento. Aí era a sua hora de falar, um dia com encanto quando via uma beleza fugidia na calçada (ele apreciava um tipo de mulher magra e pequenina, que não me impressionava nem um pouco, e brincava que eu era wagneriano porque só gostava das Valquírias), outro dia com a alma pesada, devido à morte de algum conhecido ou por causa de um sintoma novo que o estivesse assombrando naquela tarde. Mas às vezes também ria longamente, e me fazia rir também da vida e do mundo, quando era eu que me queixava dos dias cinzentos de São Paulo.
Nosso último encontro foi surpreendente. Eu estava morando na Rua 100 em Manhattan ed recebi um telefonema do Murilo. Ele estava num hotel bem perto de mim, muito nervoso e com um tornozelo fraturado numa queda no gelo, logo na chegada a Nova York. Fui para lá e já o encontrei mais calmo, até bem- humorado. Jantamos e conversamos até tarde, lembrando os velhos tempos de Jornal do Brasil e de Jornal da Tarde, recordando amigos e amigas da Paulicéia. Conversamos ainda depois por telefone, mas os papos e risadas entre cafezinhos, nunca mais.
O que eu daria hoje para um papo com o Murilo sobre o outro lado, que ele já conhece. Se existe alguma coisa por lá, e isso todo mundo vai conferir um dia, ele deve estar em bom lugar.
Princeton, NJ, outubro de 2009
segunda-feira, 27 de setembro de 2010
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