quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

À frente do espelho

Nirlando Beirão

Intrigava a todo mundo, vocês se lembram, aquela caneta de ponta fina deslizando pelo papel, e produzindo traços sorrateiros, enquanto as reuniões de pauta do jornal suscitavam temas como a eleição municipal, o PCC e o novo ataque do Corinthians.

Ele ouvia, digamos assim de esguelha, e até que prestava certa atenção na conversa, mas seus desenhos como que o afastavam dali para um limbo de fantasia, impermeável à crueza e à mediocridade daquela realidade vomitada dia após dia à frente de nós, pobres jornalistas.

As caricaturas do Murilo – algumas delas estão aqui – podiam ser de uma maldade atroz, pontiaguda, mas até na crueldade ele sabia manter a delicadeza. Por alguma razão, nunca fui vítima delas. Acho que não.

Caricaturas o que são, senão o direito de exacerbar detalhes e acentuar traços? O Murilinho adorava fazer isso. Mas, de tanto me confrontar com as caricaturas dele, sutis mas pegajosas, entendi um dia que o Murilinho traduzia, ele próprio, no seu jeito de ser, de vestir, de andar, passos miúdos se esgueirando pelas paredes do mundo, essa qualidade iconográfica da reiteração e da redundância, tão vital ao nosso universo atroz da comunicação imediata.

Olhem lá: o invariável cashmere clarinho, a calça de sarja, os jornais e revistas debaixo do braço – assim, o invariável caricaturista como se candidata ao jogo de espelho no qual passa a ser, ele, não o desenhista, e, sim, o desenhado.

Como caricatura presume humor, o Murilo acatou a regra da brincadeira, que consiste em rir dos outros, mas também rir de si mesmo.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Mais leve que o ar

Luiz Carlos Secco

Da mesma forma com que dava beleza às páginas do Jornal da Tarde, Murilo Felisberto ornamentava a vida, prestigiava as amizades, incentivava os companheiros de trabalho, acolhia as boas idéias. Afável, com voz tranqüila e sorriso que viajava entre a timidez e o respeito transmitia paz e confiança a quem dele se acercava. Foi sempre assim em nossa convivência no jornal e, posteriormente, fora dele, era tratado com elegância e me fazia sentir que estava feliz por me encontrar e que nutria admiração pelos trabalhos que realizei ao longo dos anos. Era evidente a sua alegria por encontrar um velho companheiro.

Altamente competente e criativo, era também sofisticado. Creio que não dirigia veículos, mas nutria muita paixão por carros, especialmente pelos belos, como o Duesenberg, um clássico norte-americano dos anos 20 e 30 que marcou época pela exuberância de seu acabamento, pela esportividade marcante, pelas linhas nobres e pelo requinte mecânico. Automóvel desejado por personalidades ilustres, atores e atrizes. O duque de Windsor, os reis Alfonso XIII, da Espanha, e Emmanuel, da Itália, Greta Garbo, Mae West, Clark Gable e Gary Cooper foram alguns entre os famosos a possuir um Duesenberg.

Entre os carros brasileiros, entusiasmou-se pelo Chevrolet Opala quando foi lançado, em 1968. Sua mente criativa imaginou um acabamento diferente para esse produto com carroceria européia e mecânica norte-americana com o qual a General Motors ingressou no campo dos automóveis, depois de muito tempo como mera fabricante de pick-ups e caminhões: branco, com interior inteiramente na mesma cor.

Murilo mantinha o comportamento ameno até nos momentos em que o normal seria agir com rispidez. Lembro-me que idealizei uma reportagem na antiga chácara da Willys, em São Bernardo do Campo, onde a empresa preparou-se para fotografar toda a linha 1967, inclusive o Itamaraty Executivo, primeira limusine brasileira que teve o primeiro exemplar entregue ao então presidente da República Humberto de Alencar Castelo Branco. Pelo forte esquema de segurança que seria montado, imaginei que as fotos somente seriam possíveis com o uso de um helicóptero, idéia que ele aprovou entusiasmado. Naturalmente, o setor de transportes do jornal precisaria tomar as providências para a locação da aeronave. Mas, ao entregar a requisição por ele assinada, recebi um categórico “não” do responsável. Ao saber da negativa, Murilo não perdeu a elegância, nem levantou a voz. Simplesmente levantou-se da cadeira, dirigiu-se ao chefe de transportes e o convenceu, de forma amena, sobre a importância do trabalho para o jornal.

Foi a primeira reportagem brasileira do setor automotivo com esse recurso e, como resultado, um vibrante trabalho, que envolveu tentativas de agressão, armas empunhadas e a colisão de uma pick-up Willys na traseira de um Mercury 53, que o fotógrafo Luiz Manuel idolatrava, mas que decidiu colocar no esquema para evitar a presença de veículos do jornal que nos identificassem. A reportagem terminou com uma fuga da equipe do jornal no velho Mercury amarrotado vencendo uma perseguição feita pelos raivosos funcionários da Willys em carros do modelo ainda a ser lançado. Entusiasmado com o trabalho, o próprio Murilo fez o título de uma das páginas da reportagem: “Willys 67 perde sua primeira corrida”.

Bola Virtual: Murilinho, volte aqui. Não volta mais!

Alberto Helena Jr.


Já leu Proust? Pois precisa ler, precisa ler – sentenciou-me com o indicador quase diáfano pautando no ar cada sílaba.

- Aimez-vous Brahms? – respondi-lhe, numa alusão ao péssimo romance de Françoise Sagan que ainda fazia um sucesso danado naquele tempo distante, virada dos anos 50 para os 60, pois sabia já de sua paixão por Bach, Vivaldi e seu horror por textos ruins. Um diálogo insólito, feito de referências e insinuações, que marcaria nossos encontros pela vida afora durante os últimos quarenta e tantos anos.

Murilinho, até então, aos meus olhos, era apenas uma silhueta curiosa, um fiapo de gente, alva, quase transparente, que cortava a noite e as redações sobraçando maços de jornais, revistas e livros, naquele passinho miúdo e rápido, dissimulando assim o gênio do jornalismo brasileiro que se escondia por trás de um meio sorriso cínico com o qual encerrava seus breves e frequentes recitais de assobio, acompanhando do dedinho diáfano no ar, feito batuta de maestro.

- Escale sua Seleção. Se bater com a minha, está contratado. – anunciou muitos anos depois, na mesa do primeiro Giovanni Bruno.

Esse era o teste a que Murilinho me submetia para ver se este ex-crítico de música sabia sobre o futebol o suficiente para voltar ao Jornal da Tarde, agora, em nova função.

Recitei nome por nome da minha seleção ideal para a Copa de 70, e fui aprovado:

- Bate com a minha, bate com a minha – ciciou Murilinho, que não falava, ciciava.

- Pois se bate com a sua, não deveria nunca me contratar, já você não sabe nem o formato de uma bola de futebol, quanto mais escalar uma Seleção Brasleira.

Não sabia mesmo, nunca chutou bola, nem de meia. Mas, lia, lia muito, e sabia de tudo o que estava ocorrendo no mundo, em cada seção dos jornais, identificava talentos para o ofício onde ninguém suspeitaria ali estivesse um pingo de bossa para a profissão. Disfarçava, porém, todo esse conhecimento sob um falso véu de alienação, e se divertia muito com isso.

Há tempos não o via. E eis que, de repente, surpreendo sua silhueta passando ali em frente, abraçado àquela pilha de livros, jornais e revistas, no passo miúdo e rápido. Pra onde vai, Murilo? Espere mais um pouco, o copo ainda está cheio, cara. Volte aqui. Não volta mais.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Extra! Extra!

Percival de Souza

Murilinho era repórter das Folhas (Manhã, Tarde, Noite), eu contínuo da redação.

As máquinas de escrever ficavam embutidas sob a tampa das mesas de madeira. Na hora em que quase todos escreviam, aquele barulho produzia um som incomparável, uma delícia como o cheiro de graxa na rotativa. Eu, adolescente, sabia que havia um time de repórteres de primeira linha no jornal. E Murilo sempre foi símbolo do bom texto, eterno produtor do espetáculo das palavras, esculpindo frases e parágrafos com esmero e capricho. E desenhando, quase solitariamente, naqueles tempos em que Maurício de Souza se empenhava mais nos desenhos do que em ser repórter policial do time comandado por Jarbas Lacerda e suas eternas gravatas borboletas. Havia, também, o chargista oficial da editoria de Política, Orlando Mattos, e o faz-tudo Nelson Coletti, irmão do chefe do Departamento Pessoal.

Meu sonho era ser, algum dia, como um daqueles repórteres que eu tanto admirava: José Hamilton Ribeiro, Neil Ferreira, Ennio Pesce, Roland Marinho Sierra... Comecei a produzir um jornalzinho de circulação interna, que - modéstia à parte - desbancou, numa parede dos fundos, o canto de avisos gerais, piadas e protestos, chamado "O Boato". Meu jornal trazia as fofocas da redação, tinha informantes nas reuniões dos editores, continha informações obtidas em primeira mão, "furos" até, e de vez em quando tinha o privilégio de contar com um desenho de Murilo Felisberto, que os produzia com certa rapidez, assobiando baixinho. Um contínuo pautava Murilo Felisberto! De repente, voltando de uma viagem a Londres, o diretor das Folhas, José Nabantino Ramos, mandou instalar um sino na redação. O sino tocava pontualmente em horários de reunião e fechamento.

Era réplica de um de redação inglesa. Contamos essa história em nosso jornal. Foi um sucesso.

Murilo, no início dos anos sessenta, trocou as Folhas pelo Jornal do Brasil, onde foi chefiar o Departamento de Pesquisa. O JB era a Bíblia de então. Ficamos felizes por Murilo: jovem e já no jornal-referência da imprensa brasileira.

Foi então que ele fez um artigo sobre o jornal do futuro. Era um texto agradável, antevendo avanços tecnológicos. Terminava dizendo que o chefe de redação seria uma espécie de robô. E, diariamente, o responsável pela manutenção chamaria o contínuo, no encerramento do expediente, e diria: "Por favor, Percival, não se esqueça de lubrificar o redator-chefe".

Todos se divertiram com essa história. Passei um telegrama para ele. Os termos: "Contínuo é a PQP". Acontece que estavam começando os anos de chumbo da ditadura militar e aquilo, suspeitou-se, poderia ser uma mensagem subversiva em código, circunstância que eu, já engatinhando no jornalismo, precisei explicar às autoridades competentes de maneira humorada e convincente.

Nossos destinos se encontrariam no Jornal da Tarde, que iríamos fundar em janeiro de 1966. Diretor, Mino Carta; Murilo, secretário de Redação. Era uma nova escola de texto e diagramação. Arte pura em dias memoráveis.

Murilo Felisberto tinha, entre outros, um dom especial: intuir aquela que seria uma grande matéria e desenhá-la antecipadamente. Certa vez, perguntou-me se seria possível fazer uma reportagem sobre tipos de crimes que mais acontecem ao longo dos meses do ano. Respondi que não havia pensado nisso, mas iria verificar. Descobri, na Polícia, que essas características existiam e se refletiam em variáveis de roubos, furtos, assassinatos, brigas, agressões. Murilo ouviu e horas depois me chamou para mostrar uma página desenhada, como título já pronto: "O Calendário do Crime". A arte lembrava mesmo um calendário, de janeiro a dezembro, com desenhos de ladrões, gente empunhando armas, pessoas estiradas no chão. Então, fiz a matéria com as informações necessárias, dentro do tamanho pré-determinado. Teve uma grande repercussão, até mesmo dentro da Polícia.

Outra reportagem assim, precedida de uma conversa sobre tráfico e consumo de drogas na alta sociedade, provocou um desenho de página anterior à matéria. E o título: "Society Cocaína". Foi tão bom esse título do Murilo que o usei para um livro, que escreveria anos depois.

Dizia-se, na redação, que aquele maço de jornais e revistas que ele sempre carregava como marca registrada pessoal, significavam a sua eterna busca por um texto impecável. Passou a circular uma história sobre tempos em que a Rainha - incrível, era este o apelido dele na redação - estava apaixonada por uma musa que, imaginávamos, seria irresistível. Tanto que tínhamos muita curiosidade em descobrir quem seria. E, segundo consta de fonte fidedigna, um amigo mais próximo foi merecedor das confidências de Murilo sobre o palpitar mais forte do coração. Ele teria descrito a moça com o encanto dos olhos, dos cabelos, da voz, da meiguice, as leveza dos movimentos. Arremate da confissão: "...e tem um texto!" Seria assim a mulher perfeita, segundo Murilo.

Por causa do bendito texto, ele contratou, na redação do JT, uma professora da Universidade de São Paulo, cuja tarefa diária era assinalar falhas de estilo, concordâncias se fosse o caso, e análise de texto nas matérias. A professora fazia isso em provas de páginas, todas marcadas implacavelmente com lápis vermelho. Murilo observava atentamente a cada análise crítica. Depois, chamava alguns dos editores e gargalhava de tanto divertir-se com as observações feitas. Diante dela, porém, sempre se mantinha circunspecto.

Em julho de 1972, ele escolheu algumas das reportagens que ele considerou as melhores da história do JT em seus primeiros dois mil números. E concebeu um suplemento, cujo título foi "Jornal da Tarde nº 2001". Elas foram reproduzidas e ilustradas - uma grande honra para os autores, senti-me orgulhoso de estar entre eles.

Algumas primeiras páginas históricas foram resultado do seu trabalho em examinar os assuntos principais do dia e definir, então, a capa do jornal. Uma delas era um jogo de camisas. Duas delas: uma de presidiário, para um industrial, apelidado de "Mau Patrão", condenado judicialmente. "Ponha essa camisa no mau patrão". Outra, de um jogador contratado por um dos times de futebol de São Paulo. "Vista a camisa de seu time nesse jogador". Uma criatividade incrível.

Quando a Polícia descobriu o lugar onde se fazia o encontro promovido pela União Estadual dos Estudantes (UNE), tínhamos nas mãos uma cobertura excepcional. O sítio em Ibiúna foi invadido pela Polícia ao amanhecer de um sábado. Tínhamos um repórter lá dentro e uma grande cobertura, de fora. O JT não circulava aos domingos. Fomos em comitiva ao apartamento do Murilo, sugerir que saísse uma edição extra. Ele não se entusiasmou, considerou inviável, argumentou que precisava um pouquinho mais de tempo para que a edição de segunda fosse impecável, imbatível. Seria mesmo. Mas saímos frustrados do apartamento, amaldiçoando a Rainha. Escrevemos sábado e domingo. E foi no domingo, ao me ver escrevendo que ele passou pela minha mesa e sorriu, como se dissesse que aquele tempo a mais era comprovadamente necessário. Provocou: "Eu não disse?" Minha reação foi de xingá-lo baixinho. Mas depois admiti que ele estava certo. O material era muito bom para ser fechado às pressas. E Murilo, atento na redação, demonstrava que sua indiferença era apenas aparente - mais uma vez estava sendo profundamente profissional.

Apareceu com seus jornais e revistas no lançamento de meu livro Eu, cabo Anselmo. Disse a ele que o seguinte, Autópsia do Medo, uma biografia do delegado Sérgio Fleury, seria ainda melhor. Ele sussurrou, como se aconselhando: "Calma, calma..." De fato, não me apressei. Segui as instruções da nossa Rainha.

Murilo Felisberto, no meu caso, foi a história de uma amizade de quase cinqüenta anos. Isso mesmo: meio século. De moleque a adulto. De contínuo a repórter. Murilo transformou-se em sua própria notícia.

Quando desaparece um jornalista como ele, nós morremos um pouco - não só porque os sinos dobram por todos, mas em razão de que haverá menos criatividade. Menos liberdade. Menos razão.

No momento supremo da prestação de contas da vida de Murilo Felisberto, podemos assinalar que o excepcional jornalista buscava ardentemente a perfeição. E conseguiu, tantas vezes, produzir obras que podem ser consideradas respeitas. Assim como se a folha de uma árvore pintada por um pincel que chegara à perfeição ganhasse vida de repente numa tela, encerrando nesse momento o espírito de todas as folhas.

Um jornalista como Murilo Felisberto, através de seus trabalhos realizados com tanta dedicação, arte e paixão pela profissão, encerra em si o espírito de todos os jornalistas do mundo.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

De lead em lead

Moacir Japiassú

Numa tarde de março de 1963, quando comuniquei aos colegas do Correio de Minas que Antonio Beluco Marra telefonara para avisar que a Última Hora me aguardava para integrar o copidesque de uma de suas inúmeras edições, Fernando Gabeira me entregou o telefone de um amigo:

“É o melhor jornalista de São Paulo, pode te ajudar muito”, disse-me. Telefonei, marcamos encontro.

Tratava-se de um rapaz magrinho e encurvado, sorridente, mineiro de Lavras, amigo de Gabeira desde os primeiros tempos em Juiz de Fora. Trabalhava na sucursal da Manchete. Eu o encontrei no “Clubinho”, um bar com aparência de bunker que havia na galeria do cine Metrópole e reunia boa parte da fauna paulistana da época. Sobre a mesa do solitário Murilo espalhavam-se jornais e revistas estrangeiros e jaziam, ainda intocados, um copo de vinho e uma fatia de queijo brie. O aparelho de som espalhava pelo salão lotado e ruidoso uns fragmentos da Ária na Corda de Sol.

Murilo me recebeu como se tivéssemos estudado juntos no Granbery de Juiz de Fora. Em minutos, éramos velhos amigos. Ele falava baixinho, em meio àquela balbúrdia que desrespeitava os sons de Bach, de modo que, de vez em quando, eu levantava a voz e perguntava: O quê?!?! Quem?!?!, Quando?!?!, Onde?!?!, Como?!?! Por quê?!?! -- e assim, de lead em lead, passamos a construir nossa amizade.

Nossos encontros eram ali ou no João Sebastião Bar, no Sirocco, no Gigetto, onde lhe preparavam uma salada de alface com algumas gotas de vinagre e um fio de azeite. Murilo quase não comia, além da indefectível fatia de queijo com vinho tinto. Apareciam garotas bonitas, que não o interessavam, porque o sóbrio comensal só pensava em jornalismo e garantia que nenhuma delas merecia atenção, porque não sabiam escrever.

Certa noite apareceu um amigo, cujo nome esqueci; contou que deixara a mulher por uma repórter do Diário Popular. Murilo ergueu o indicador, num gesto muito seu, que anunciava uma sentença recheada de seriedade: “A moça tem bom texto?”, perguntou ao apaixonado.

Quando lhe disse que deixaria São Paulo e a Última Hora para aventurar-me no Rio de Janeiro, pediu-me paciência, pois eu estava há apenas cinco meses na cidade. Estaria mal na UH? Não, estava bem até demais, a trabalhar sob as ordens do José Elias, excelente e honesto editor de política; eu apenas não suportava mais ter que vestir paletó e gravata para ir ao cinema, não agüentava o frio e estava cheio do edifício onde morava com um grupo de companheiros de trabalho, famoso balança-mas-não-cai escondido na Rua Paim, bem atrás do Teatro Maria Della Costa.

Durante alguns meses não nos vimos nem trocamos carta ou nos falamos, numa época em que era preciso esperar horas, dias, semanas por uma mísera linha telefônica. Porém, no final de abril ou maio de 1964, quando respirávamos os poluídos ares do golpe militar, a voz de Murilo me chegou pelo telefone; convidado por Alberto Dines, chefe de Redação do Jornal do Brasil, que apreciava seu trabalho na Manchete, estava de mudança para o Rio. “Vou assumir a editoria de Pesquisa e quero você comigo”, anunciou, para minha alegria, eu que penava na reportagem da sucursal do Diário de S. Paulo. Ia rever o amigo, trabalhar com ele num grande jornal e talvez ganhar, finalmente, um bom salário.

Murilo criou o verdadeiro Departamento de Pesquisa, contratou alguns jovens talentos, batalhou por salários dignos. Foi o menos exigente dos chefes que tive na vida, porque não ligava para horários, falava sempre baixinho, naquele mesmo tom emitido nas mesas de bar, e bastava que lhe entregassem um bom texto para esquecer até ofensas pessoais.

Agora, nosso Quartel General de todas as noites era o Bar Luís, na Rua da Carioca, tradicional abrigo de boêmios que precisavam tomar mais uma ou apenas forrar o estômago com salsichas e maionese de batatas, iguarias mais requisitadas do farto cardápio alemão. Sem contar, é claro, o chope sempre bem tirado e algumas doses de Steinhäger para corrigir o paladar.

No início de uma noite de inesquecíveis revelações, Murilo desapareceu da Pesquisa e faltou ao encontro na Rua da Carioca. No dia seguinte, durante o almoço no restaurante do JB, confessou: estava apaixonado por uma donzela que morava na Rua da Matriz, em Botafogo. Teria bom texto? Na verdade, nem jornalista era e o encantamento havia nascido ao primeiro olhar.

Então esse homem de 25 anos, que aparentava um pouco mais, talvez pelo andar retraído e a barbicha em formação, entregou-se a arrebatamentos de adolescente, e certa madrugada, embriagado de vinho e paixão, atirou às ondas de Copacabana a aliança que denunciava o noivado já antigo com moça de São Paulo. Foram semanas de justa aflição para ele e os amigos, os quais só enxergavam avisos de perigo naquela via de mão única – não havia correspondência àquele tão repentino desvario.

Murilo Agostini Felisberto, assim identificado na etiqueta colada à mala de viagem, voltou para São Paulo, casou-se com aquela da aliança ao mar e aliviou o peito sobre a mesa de trabalho no recém-criado Jornal da Tarde, onde nasceram as mais belas páginas da imprensa brasileira dos anos 60.

Quando nos encontramos novamente, meses depois de sua volta a São Paulo, Murilo me fez uma sólida proposta de trabalho. Eu tentava respirar o irrespirável ar da Bloch Editores, quase aceitei, porém assaltaram-me os enregelados fantasmas de 1963, da Rua Paim e adjacências, e ainda a execrável figura do lanterninha do cinema ordenando-me que vestisse o paletó.

Nas viagens ao Rio, sempre jantávamos juntos e a conversa nunca estava longe do que ocorria nas redações e oficinas. Uma bela primeira página nos ocupava até à sobremesa. Numa dessas noites, final de 1968, quando repassávamos as melhores capas sobre o AI-5, numa mesa do Antonio’s, acrescentei à conversa um dos poucos temas capazes de, digamos, modificar o cardápio murilista: a paixão pelas mulheres. Disse-lhe que iria me casar com a repórter Marcia Lobo, ex-Jornal do Brasil, agora minha companheira na revista Pais&Filhos; ele ergueu o indicador e aprovou: “Essa tem bom texto”.

Nos meses subseqüentes, ouvi outros convites do amigo, convites que tentavam o casal; havia abrigo no Jornal da Tarde para Marcia e eu. No final de 1969, recebi passagem de avião para conhecer o jornal e os futuros companheiros, entre os quais alguns bons amigos dos tempos do Correio de Minas. Voltei ao Rio disposto à mudança e Marcia gostou da idéia. Porém, resolvemos pensar e pensar e pensar, até que Jaquito, sobrinho de Adolpho Bloch, fez o favor de me demitir, indignado porque eu, chefe de Redação da revista, dera folga à equipe na sexta-feira da paixão de 1970.

Um mês depois estávamos em São Paulo, à véspera da Copa do Mundo, que o JT prometia cobrir com edições especiais e diárias. Fui trabalhar na editoria de esportes; e como, apesar do prometido, não existia vaga para Marcia, ela passou a fazer freelance na editoria de Variedades. Era muito, muitíssimo o trabalho num vespertino que ignorava horários, mas o casal sempre encontrava tempo para a vida de recém-casados. Ao convívio com Murilo, depois do expediente enlouquecido, preferíamos namorar em cenários mais românticos. Habituado aos séquitos, Murilo não gostou.

O divórcio entre Murilo e eu começou com o absenteísmo do outrora preferido. Tudo nos afastava e um dia, depois de séria discussão a respeito de uma reportagem produzida na sucursal do Rio sobre os vinte anos do atentado da Rua Tonelero, deixamos de nos falar. Algum tempo depois, nem nos olhávamos.

Mesmo assim, o pessoal da Redação achou bastante esquisita minha demissão do jornal, em 1977, a propósito de “contenção de despesas”, medida que atingiu vários companheiros. Marcia Lobo, que algum tempo antes havia conquistado a prometida vaga na Variedades e nada tinha a ver com minha desavença com Murilo, fazia parte da lista. Este foi o detalhe que denunciou o caráter pessoal da demissão e provocou justo desalento.

Alguns anos mais tarde, Marcia e eu bebíamos um drinque no bar-restaurante Pirandello, na Rua Augusta, quando Murilo surdiu ao lado de nossa mesa, estendeu a mão e disse, com a voz mais vigorosa do que o normal: “Acho que está na hora de fazermos as pazes”. Marcia fez que nem ouviu, mas eu, em nome da velha amizade, do muito que fizéramos juntos, em nome de tantos leads e sub-leads, apertei a esquálida mão oferecida.

Éramos amigos novamente.

Eterno Murilo

Antonio Manoel Alves de Lima

Do mesmo jeito que ele surgia da mesma forma partia sem ninguém perceber, discretamente, mas desta vez, infelizmente, para sempre.

Sua presença para mim sempre foi excitante, um previlégio de estar perante uma pessoa extremamente inteligente, refinada, tímida mas ao mesmo tempo amorosa.

Ao contrário do que se pode pensar, apesar da crença das "fofocas" que Murilo gostava de estar a par, no fundo era apenas para se dar uma dinâmica aos assuntos corriqueiros do dia a dia.

Contudo não conheci uma pessoa na minha vida mais discreta, leal e bom conselheiro como Murilo.

Sou muito grato a ele, pelo que fez a mim e aos meus irmãos principalmente a Ana Carolina, Alfredo e Meméia e posso dizer isso também pela minha sobrinha Michelle, e pelo meu irmão Jorge, além de me ter dado uma irmã maravilhosa, sua filha legítima Carlota.

Para mim e para tantos ele deixará eternas saudades, e posso dizer que sempre ele estará nos meus pensamentos e orações e aquele sorriso NOBRE e MAROTO que NUNCA MAIS esquecerei.

Com extrema admiração afeto e gratidão à você Murilo, Antonio Manoel, Lorenza, Lavinia e Ottavia ALVES DE LIMA

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Querido Murilinho*

Mauricio Kubrusly

Não é qualquer império que tem uma Rainha chamada Murilo. Ou vice versa. Na redação do JT, nós tínhamos. Ainda na rua Major Quedinho, aquela mistura de jornal e rádio com um hotel no meio, a chefia não tinha uma sala exclusiva. E isso, sem querer, ajudou muito - o avesso de tantas empresas, inclusive jornalísticas, com seu espaço dividido em baias e salas estanques.

O Estadão, que ficava do outro lado do Corredor do Tempo, oferecia privacidade aos comandantes da redação. Não sentíamos inveja - e até mesmo evitávamos cruzar o tal corredor, com receio de envelhecer alguns meses naqueles segundos. A crença quase unânime era: o retorno ao JT não representava desenvelhecer de imediato. E os idosos não eram bem-vindos no Dia do Acepipe, que marcava início da noite de sexta, quando a alegre equipe da Variedades armava um piquenique junto da porta do banheiro. (As páginas destinadas a artes, espetáculos, comportamento foram se multiplicando - felizmente! - sob o cetro da Rainha e o trabalho avançava pela madrugada). O Dia do Acepipe obedecia a regras: cada um trazia um pratinho de doces ou salgados. No final do convescote, todos votavam, pra eleger os melhores acepipes. Depois da apuração, quem tinha levado o melhor doce ou o melhor salgado ficava liberado de trazer petiscos na sexta seguinte. E o festivo lanchinho era exclusivo, apesar das investidas dos vizinhos, do Esporte.

E Elazinha gostava de rabiscar desenhos toscos durante as reuniões na mesa da Rainha, num dos cantos da redação. (Lembra que a chefia não tinha sala fechada?) Todos podiam ouvir o que se discutia e decidia, não havia porta pra fechar. A Rainha - de terno, muitas vezes de colete e gravata, um contraste radical com o visual da moçada das várias editorias - a Rainha desenhava também. A diferença é que ela sabia, era absurdamente informada a respeito de tudo do planeta das artes gráficas.

Era capaz de levar um tempo espichado antes de optar por esta ou aquela família de letras. O desenho da cada página do JT era uma de suas saudáveis obsessões. Aprendia-se muito acompanhando o seu fazer. E o mesmo valia para títulos, escolha das fotos, ilustrações, a sacada original no jeito de abordar o inevitável lugar comum da rotina de qualquer redação. Afinal, se bobear, o jornal repete, todos os anos, uma manchete assim: Não faltará peixe na Semana Santa. Todo ano tem Semana Santa e todo dia tem jornal. Mas o império da Rainha não tropeçava nessa preguiça. Afinal, se fazia naquele meio andar um diário que sacudiu a imprensa de todo país. Imagine: era um tempo em que era possível distribuir um jornal à tarde, com notícias da manhã, numa São Paulo com milhões de automóveis a menos. E a Rainha, às vezes, vinha pela manhã apenas para desenhar a primeira página. Mas também sumia durante outro dia. Coisas de majestade...

Era sofisticadíssima nas leituras, uma revelação por semana. Quem estava por perto recebia dicas e toques preciosos. Conversava sobre música clássica com Elazinha, uma paixão comum. Graaande Rainha... que se divertia com a mania de apelidos que tomava a redação do JT. Muitos foram batizados pelo Satã, mestre no apelido irrefutável. Fernando B. foi uma das vítimas - que acabou se tornando apenas B.

Claro que um ambiente nada ortodoxo assim só era possível a partir do comportamento da chefia. Sorte nossa, que estávamos lá. O jornal chegava às bancas direitinho, já convivendo com ensaios de imitação ali e aqui. E no meio de uma redação não convencional redação como aquela, o editor chefe não repetia a rotina padrão. Às vezes, não comparecia à reunião de pauta, ou virava a noite, ou mudava toda a diagramação em cima do fechamento na gráfica, ou sumia... temperamental como uma rainha.

Daí, o apelido do querido Murilinho .

* sim, muitos de nós o chamávamos assim, no diminutivo

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Poucos e bons

Carmo Chagas

Pelo segundo ano do JT, eu já estava informalmente encarregado do noticiário policial. Informalmente porque o Ulisses, meu editor, não me passou essa função. Aconteceu com o correr de cada dia, de cada fechamento. As matérias policiais vinham naturalmente parar na minha mão. De um ponto em diante comecei a me interessar também pela pauta policial, de modo que conhecia cada assunto desde a origem até a hora de copidescar o texto, fazer as legendas, os títulos, paginar.

Nesse processo, num dado momento trabalhei com uma das melhores equipes da reportagem policial de toda a imprensa brasileira. Faço essa afirmação não por mim, claro, mas pelos repórteres integrantes dessa equipe. Estavam lá: Percival de Souza, Octavio Ribeiro, Inajar de Souza, Antônio Carlos Fon e, como setorista no DEIC, Valdir Sanches. Quem conhece a reportagem brasileira confirma o que estou dizendo aqui. Eles compuseram uma das melhores equipes de reportagem policial já reunida por qualquer jornal brasileiro. Esse time ajuda a explicar, muito, o sucesso do JT nos primeiros anos.

Foi nessa época que me dei conta da importância do trabalho de equipe, em jornalismo. Conversávamos sobre isso, nos bares e botecos das vizinhanças do jornal, em encontros com colegas de outras redações. Um dos temas: quem tinha mais importância para o JT, o Mino Carta ou o Murilo Felisberto? O Mino era o número 1, o chefe da redação. Diagramava a primeira e as páginas mais importantes de cada dia. Comandava a operação com classe e algumas explosões de temperamento italiano. Mostrava a importância da ilustração para a boa edição de uma reportagem. Ensinava o cuidado com o uso exato e adequado dos termos e conceitos: se damos nota 10 para um cantor como o Roberto Carlos, que nota daremos ao ouvirmos um Caruso? Além de exigente, o jornalista precisa ser criterioso ao noticiar, ao analisar, insistia o Mino.

Já o Murilo, como número 2, secretário da redação, substituía o Mino nas ausências, também diagramava páginas importantes e insistia na necessidade de escrever direito, além de bonito, de apurar fundo, de trabalhar firme e com dedicação. Mas o grande mérito dele, no comecinho do jornal, tinha sido a formação da equipe. Ele conhecia os ninhos de talentos pelo Brasil. Tendo trabalhado antes no Rio, contava com aquela porosidade que então caracterizava o jornalismo carioca. Porque fora Capital e Corte até muito pouco tempo antes. Porque fora sede do Diário Carioca dos anos 40, matriz do novo jornalismo brasileiro. Porque era sede do Jornal do Brasil, marco maior do novo jornalismo nacional, Bíblia de todos nós.

Por tudo isso o Rio, mais que São Paulo, sabia na época onde estavam pelo país os jornalistas mais talentosos, os gênios mais promissores. E o Murilo sempre teve a mais fina percepção para localizar os bons valores. A maioria dos integrantes da redação do JT estava ali pelas mãos do Murilo. Então, a gente discutia: quem tem mais importância para o jornal, o Mino ou o Murilo? O que vale mais: dirigir uma redação ou fornecer os talentos dessa redação?

Participei de várias dessas tertúlias. Pensei muito sobre essa questão. Cheguei à conclusão de que uma função não existe sem a outra. De nada adianta reunir um timaço, apenas, sem contar com quem mantenha esse grupo unido e entusiasmado. Além do mais, devo registrar que vários dos principais integrantes da equipe estavam ali por obra do Mino. E que o Murilo, além de exímio garimpador de talentos, também contribuía para manter o time.

Uma outra discussão surgiu diante de mim pela primeira vez, naqueles tempos: o que é mais importante para um jornal, a opinião ou a informação?

Quem touxe o tema foi o Murilo, numa das ocasiões em que substituiu o Mino durante alguns dias (não me lembro, aliás, de o Mino tirar férias; ficava fora uns quatro ou cinco dias, muito esporadicamente). Além de tocar a edição de cada dia, o Murilo teve também que comparecer a uma reunião de diretoria com a participação do pessoal do Estado. Parece que, em dado momento, alguém disse que faltava ao JT o lastro que uma opinião confere. Aí outra pessoa argumentou que, no caso de um vespertino jovem, com noticiário voltado para a efervescência paulistana, a informação interessava mais. Desse ponto em diante todos passaram a discutir a prevalência entre opinião e informação.

Para nós, safra nova da profissão, não havia o que discutir. A informação em primeiro lugar. Ponto final. De minha parte, naquela época, pensava que a opinião só servia para atrapalhar. Às vezes tocava a mim baixar a página dos editoriais. Morria de vontade de reescrever aquilo tudo. Aqueles períodos longos demais, a enorme distância entre sujeito, verbo e objeto, o estilo tortuoso de expor um ponto de vista, tudo aquilo me parecia torturante para o leitor. Por que tanto meandro, por que tanta cerimônia, em vez de ir direto ao tema?

Mas a minha resistência aos editoriais não se devia apenas ao trabalho que às vezes me davam. Na verdade, eu nunca lia editoriais. Nem os do Jornal do Brasil, tão reverenciados em toda roda de jornalistas. Eu estava convencido, também, de que pouquíssimos leitores se davam esse trabalho de ler a opinião de seu matutino ou vespertino.

Sei, hoje, que continuam pouquíssimos os leitores de editoriais. Mas aprendi que os editoriais são escritos exatamente para esses pouquíssimos. Os empresários mais sólidos, os políticos mais perspicazes, os economistas mais consistentes, os intelectuais mais atentos constituem a elite interessada na opinião que vem todo dia impressa na imprensa. Ali se encontram as reações às notícias que mais preocupam, mais entusiasmam. O estilo do texto, para essa gente, conta muito; mas bem menos que a substância, o núcleo do pensamento exposto naqueles textos. A massa de leitores vai atrás das manchetes, das notícias mais quentes de cada dia. Atiram-se com sede à informação. A elite vai atrás das páginas de opinião com a mesma sede.

Naquele tempo, porém, nós da nova safra ainda não estávamos prontos para enxergar a importância da opinião. Escutamos como piada o relato do Murilo. Rimos e voltamos para o ofício de trabalhar cada legenda, cada título, cada texto, cada página com o maior esmero, com o maior carinho.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Dez vezes Murilo

Guilherme Duncan

Eu poderia começar assim: “Murilo Felisberto foi um gênio da criação gráfica, um editor de mão cheia, um pauteiro instigante, um sócio da confraria do bom texto, um tituleiro clássico. Sua trajetória profissional, ainda que entremeada por passagens pela Publicidade, brilhou notadamente no Jornalismo, alcançando o ponto mais alto na época em que pela primeira vez dirigiu a redação do Jornal da Tarde, quando consolidou o êxito de uma publicação que iria influenciar mudanças em toda a Imprensa brasileira”.

Estaria correto, Murilo Agostini Felisberto foi tudo isso mesmo.

Eu poderia também acrescentar alguns toques sobre sua personalidade, os desenhos minimalistas que rabiscava, as amizades leais e implicâncias pessoais (a propósito, por conta de uma certa caturrice acabou brigando, definitivamente ou não, com muita gente boa). Depois, viria o relato de seus principais trabalhos e realizações.

Uma estrutura de texto que agradaria ao próprio, se bem o conheci.

Mas não vou fazer desse jeito. Outros autores podem escrever com maior propriedade nesses termos. Quero simplesmente homenagear o Murilo contando algumas histórias que possam trazê-lo de volta, ainda que por fugazes momentos, à memória dos leitores que o conheceram. São episódios que lembram um pouco seu humor, suas manias e sua incrível capacidade de conhecer, de nome ou pessoalmente, gente de redações do Brasil e até do Exterior.

Além de tudo, se ele fosse o editor, tenho certeza de que iria escolher também esse formato.

1

Há quase 45 anos, Murilo já perseguia e obtinha informações sobre o que acontecia e “quem era quem” nas redações. Desculpem se esta é uma história em que o autor aparece bem, mas as coisas se passaram assim.

Fins de 1963 ou início de 1964. A Sucursal do “Jornal do Brasil” em São Paulo, na Barão de Itapetininga, estava recém-formada, com uma jovem e talentosa equipe de redação com Rolf Kuntz, Carlos Brickmann, Miguel Jorge, Laerte Fernandes, Ebrahim Ramadan, Bernardo Lerer, Antônio Carlos Schiavetto, Helio Fabri e certamente outros cujos nomes completos me escapam. Eu também era repórter lá. Na fotografia, Wilson Santos e Manoel Motta.

O JB vivia sua época de ouro. Murilo reinava no famoso Departamento de Pesquisa, no velho prédio da Av. Rio Branco, no Rio. Ele ainda não conhecia pessoalmente a maioria de nós.

Murilo foi visitar a sucursal. Era uma visita importante, provavelmente a primeira de alguém vindo da redação da Matriz. Imediatamente, formou-se uma rodinha em torno dele. A curiosidade era recíproca. A conversa acabou se encaminhando para o tema que o Murilo iria continuar debatendo nas quatro décadas seguintes: quem era melhor do que quem nas redações. Até que o grupo fez uma pergunta difícil de responder: qual era a melhor sucursal do JB, a de São Paulo ou a de Belo Horizonte? Ele não se fez de rogado diante de nossa presença: na sua opinião, a sucursal de BH era melhor. E explicou o motivo de sua preferência. No final, emendou uma ressalva:

- Mas a equipe de vocês é excelente. Tem um rapaz aí, por exemplo, que está começando agora, mas já li coisas dele, é muito bom. O Guilherme.

Era eu, um desconhecido iniciante. Evidentemente, o Murilo não sabia que eu estava presente. Seguiram-se as apresentações, nós dois até meio constrangidos. Foi o mais significativo elogio profissional que recebi na vida.

2

Aproximadamente uma década passada, na fase Jornal da Tarde, estávamos jantando após o fechamento. Murilo chegou ao restaurante já com aquele sorriso de “rainha”, que indicava novidades. E começou a falar, gesticulando como era seu hábito, com a mão direita balançando em movimentos curtos, o indicador em riste e os outros dedos fechados:

- Já souberam como terminou a disputa na redação?

Não tínhamos a menor idéia. Que disputa, que redação?

Cuidadosamente, depositou numa cadeira a pilha de jornais e revistas que carregava, e contou:

- No “New York Times”, ontem. Quem assumiu a Política foi ... (e declinava nome e sobrenome), atual responsável pelo noticiário de Cidade, um grande profissional, vai dar uma melhorada na editoria. Com isso, o comando da redação se fortalece; além de tudo, o ... (citava o nome do editor que caiu) era um cara muito mal humorado...

E por aí foi, falando com tal autoridade que parecia ter saído há pouco da redação do NYT, cuja sede só podia estar localizada ali perto, na Paulista ou numa daquelas alamedas que descem para os Jardins.

3

Quem, por acaso, conseguisse bisbilhotar a pilha de jornais e revistas que Murilo freqüentemente carregava, certamente encontraria lá exemplares do “New York Times”, da “New Yorker”, “Graphis”, “Communications Arts”, “Le Monde”, “Time”, “Financial Times”, entre outros, para ficar só na lista das publicações estrangeiras mais compradas por ele (o livreiro Paulo, da Bux, era seu fornecedor). Devia gastar um dinheirão, mas, naquela época ainda distante da Internet, isso o mantinha atualizadíssimo sobre o movimento editorial nos principais centros do primeiro mundo.

Ai de quem ousasse mexer numa pilha intocada, nem que fosse apenas para ver as capas. Corria o risco de rompimento de relações.

Nesse quadro, certa vez (pouparei detalhes, mesmo porque a memória não ajuda) fui testemunha de uma cena de quase terror. Na mesa de um restaurante da moda, juntou-se a nós um conhecido do Murilo. Uma autoridade pública – municipal, creio eu. Bem falante, expunha com ênfase uma situação qualquer quando, de repente, para ilustrar sua argumentação, sacou de uma caneta e passou a escrever nas margens dos jornais da pilha, colocada sobre a mesa. Lívido, Murilo assistia à cena estupefato, sem qualquer poder de reação.

Depois do jantar, já fora do restaurante, é que pudemos perceber que os jornais maculados haviam sido deixados lá. Murilo foi comprar outros exemplares.

4

Ao mesmo tempo em que era capaz de discorrer judiciosamente sobre as qualificações profissionais de colegas, não dispensava o lado frívolo das informações – ou, mais exatamente, uma boa fofoca. Quem estava namorando quem, em que redação, quem era a musa do momento e coisas assim.

Em meados dos anos 80, no Rio, numa reunião com diversos participantes, pedi a opinião dele sobre determinada jornalista considerada (por mim também) de muita competência – e que ele conhecia. Sua resposta ao plenário:

- Todo mundo diz que são as pernas mais bonitas da redação do JB.

Depois é que falou (bem) do trabalho dela.

5

A propósito, no meio dessa conversa de saber quem era quem, quem era bom e quem não era, o Murilo costumava fazer uma brincadeira concedendo títulos imaginários de “melhor jornalista”, partindo do princípio de que cada um de seus amigos (ou não) deveria ser o melhor jornalista pelo menos da cidade onde nasceu.

Ele próprio se intitulava o melhor jornalista de Lavras (MG), sua terra natal. Pelo mesmo critério, Fernando Mitre era o melhor jornalista de Oliveira; Carmo Chagas era o melhor de Inhapim; Kleber de Almeida, o melhor de Guanhães; Rolf Kuntz, o de Antonina – e assim por diante. A mim, dizia que eu só não era o melhor jornalista de Campos (RJ), porque tinha na praça o Oldemário Touguinhó – grande repórter, saudoso amigo.

Alguns, cuja procedência não era o interior ou em cuja cidade natal habitavam conterrâneos mais famosos, conseguiam o título de “melhor jornalista da rua onde moravam”; outros podiam ser o melhor da rua, mas com restrições: “só do lado par, no trecho que vai da casa dele à esquina”.

Certa vez, durante uma avaliação desse tipo, comentou sobre um casal, ambos jornalistas, naturalmente morando juntos:

E o Fulano, hem? Não consegue ser o melhor jornalista nem na própria casa...

6

Nos anos 70, um grupo de jovens jornalistas publicou um livro de contos intitulado “Isto o jornal não conta”. Eram diversos autores, quase todos repórteres do próprio JT que o Murilo chefiava, adentrando o perigoso terreno da ficção, cada um contando sua história. Murilo leu (ou, pelo menos, disse que leu) o livro e depois sentenciou, naquele estilo de “cometo uma injustiça mas não perco a piada”:

- É, isto jornal não conta mesmo. O meu, então, nem pensar ...

7

Um editor do JT sugeriu a contratação de certo repórter prestes a deixar o jornal onde trabalhava. A justificativa era a de que a concorrência estava fortalecendo seu reportariado e era preciso acompanhar esse movimento. Como Murilo desaprovava o indicado, deu uma daquelas respostas típicas de quando queria dizer 'não' sem muitas explicações:

- Faz o seguinte: vê se indica esse nome para a concorrência. Se der certo, ele não fica desempregado e nossa equipe pula na frente.

8

Sua paixão era sem dúvida o Jornalismo. Numa das vezes em que estava trabalhando em Publicidade, Murilo foi convidado por mim e pelo Ruy Portilho para integrar a Comissão de Julgamento do Prêmio Esso de Jornalismo, em 1996. Ele foi escolhido porque, antes de tudo, era uma autoridade na profissão e, mesmo temporariamente afastado das redações, continuava acompanhando o movimento editorial; além disso, tinha experiência como jurado do Prêmio Esso em anos anteriores, com exemplar atuação.

Sua resposta nos comoveu:

- Este convite de vocês foi a melhor notícia que recebi nos últimos tempos.

Era a volta dele, ainda que breve, para uma convivência e um ambiente que certamente o faziam mais feliz.

9

Quem se lembrou dessa foi o Fernando Portela, repórter dos bons, escritor/editor pernambuco-paulistano que dá gosto de ler.

Foram avisar que determinado repórter, não um dos preferidos do Murilo, contou ter recebido uma proposta de suborno em plena apuração da reportagem que fazia.

- Murilo, sabia que estão tentando comprar o Fulano de Tal?

E ele, sem tirar os olhos do espelho de página que preparava: “Vende, vende...”

10
No período de sua derradeira passagem pelo JT, um dia fui visitá-lo na redação. Encontrei-o inconsolável por causa de uma matéria que havia pautado sobre uma garota de rua que queria ser top model. Não me recordo o motivo dessa moça ter aparecido no noticiário nem seu nome, mas isso não importa muito. A idéia do Murilo era vestir a menina, usando diversos modelos, fotografá-la em locais diferentes da cidade e contar a história. A matéria não foi feita a tempo e um outro jornal se antecipou, publicando algo parecido. O furo derrubava a pauta do Murilo.

- Bill, não existem mais repórteres. Os que estão hoje aí só têm ouvidos!

Estava meio triste, meio zangado. Conversamos mais um pouco, eu disse que era hora de voltar para o Rio, ele me abraçou e entrou na sala para a reunião da tarde. Foi nosso último encontro, quarenta e tantos anos depois daquele elogio do qual jamais me esqueci.

Guilherme Duncan, jornalista, integrante da equipe pioneira do JT, atualmente coordenador do prêmio esso de jornalismo

sábado, 27 de setembro de 2008

Murilinho, o Magnífico

Júlio Moreno

Para ser sincero, eu não fazia parte da corte da “Rainha”, ou seja, daquele grupo da redação do JT mais íntimo do Murilinho. Mas havia entre nós algo em comum: o interesse por São Paulo. Eu, “repórter de cidade” ingênuo, acreditava que o urbanismo e uma boa administração municipal seriam a salvação de todas nossas mazelas. Ele, com uma visão bem mais ampla do mundo, era mais cético – e estava com a razão.

Certa vez, Murilinho me perguntou sobre o que eu achava de uma determinada rua nos Jardins onde ficava um apartamento de seu interesse. Eu, prestimoso, passei-lhe algumas informações sobre o zoneamento da região, o que supostamente lhe garantiria um uso permanentemente residencial, por isto e por aquilo, blá-blá-blá. Hoje sei que fui ridículo, dando uma resposta técnica para uma pergunta que tinha outro sentido. Murilinho, pragmático, queria apenas saber se vidros blindados abafariam o barulho das avenidas próximas...

Eu no sonho, ele na realidade. Penso que o segredo de sua genialidade era justamente esse senso agudo do real, do qual se apossava para dedilhar uma manchete irretocável ou desenhar mais uma de suas páginas criativas. Com Murilinho, o JT não tinha primeira página: eram “capas”, como se revista fosse. Uma revista diária.

Inesquecível a valorização que sua criatividade deu a uma reportagem que fiz sobre 200 prédios considerados, na administração Olavo Setúbal, “bens culturais” da cidade. Foram duas páginas centrais, com as fotos de todos os 200 prédios, formando um mosaico que até o prefeito me confessou guardar em seu arquivo como guia.

Sob seu comando, o JT foi o precursor do jornalismo de serviços de lazer e de grandes reportagens sobre temas gerais de São Paulo. Quem não se lembra do “Divirta-se” ? – que ele, inclusive, tentou empreender como revista independente. A “Vejinha” é a sua versão atualizada. Quem não curtia (no sentido figurado da palavra) os textos igualmente curtidos (no sentido correto da palavra) por jornalistas de renome, alguns dos quais viraram autores de best-sellers.

Senhor do real, Murilinho era um hábil transformador de rotinas. Que o digam aqueles editores que ele submetia de tempos em tempos a uma dança de cadeiras, realocando o titular da Economia para a editoria de Esportes, o de Esportes para a Política, e assim por diante. Todos na redação sabiam que a um rodízio sucederia outro, mas o intervalo exato era sempre uma surpresa – essa, aliás, outra característica de Murilinho. Nem todos saiam contentes. Ouso dizer que a prática era mesmo o terror da corte, mas sem dúvida ela ampliou muito a versatilidade dos editores que captaram seu valor e deu a nós, repórteres, a oportunidade de vivenciar diferentes chefias e orientações. “Rainha” era só um apelido folclórico. Na universidade que foi o JT em sua época, o mais correto seria chamá-lo de “Magnífico Senhor Reitor”. Já estou vendo o movimento dos dedos de sua mão direita ensaiando uma contestação, traída por um sorrissinho que retratava bem o que se passava em seu ego...

Júlio Moreno (“Repórter de Cidades” e Chefe-de-Reportagem de Economia do JT nas décadas de 70 e 80)

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Aprendiz de feiticeiro

Vital Bataglia

Não sei dizer ao certo, mas ele não passava dos 55 quilos para seu metro e setenta - se tanto - talvez menos. Tinha os cabelos grisalhos, o que me fazia supor ser bem mais velho do que eu, por isso me surpreendi quando vi o seu necrológico. 67 anos?

Murilo Felisberto era o segundo homem da redação quando fui contratado, ainda no número zero do JT. O primeiro era Mino Carta, com seu salto carrapeta e gravatas estravagantes. Ambos desenhavam um novo jornal. Um deles era técnico, traços fortes, simétricos, títulos em egypcienne, caixa 72 ou 84, o outro, traços finos, títulos em futura light.

Ambos criando um novo paradigma do jornalismo.

Eu, um aprendiz.

Nos primeiros dias do jornal, disse ao meu editor que o presidente do Corinthians estava trazendo o jogador Garrincha, do Botafogo, para exames médicos. Se aprovado, seria contratado. As chances de ser aprovado eram iguais a zero.

Mino Carta me chamou. Disse-me para levar uma camisa do Corinthians ao aeroporto de Congonhas, onde Garrincha chegaria com Elza Soares às 9 da manhã. Fui para lá com o fotógrafo Amilton Vieira. Assim que Mané Garrincha desceu do avião eu lhe coloquei a camisa e Amilton fez uma foto linda, ele sorrindo, ajeitando a gola.

A manchete do JT foi esta:

-VEJA MANÉ CORINTHIANO!

Não é preciso dizer que meu texto, assim como o exame médico se tornaram absolutamente dispensáveis depois da foto de página inteira de Garrincha com esse título.

Imaginei que nada poderia ser mais criativo.
Me enganei.
No mês seguinte, fevereiro de 1966, Murilo Felisberto nos chamou.
Queria uma foto especial do casamento de Pelé e Rose. O casamento foi na casa de Pelé, na rua Almirante Cockrane, 123, Embaré. Pelé e Rose no altar, eles de mãos dadas às costas dela, aquele vestido branco, as mãos clarissimas constratando com o dorso da mão de Pelé. Foi a foto de primeira página do Murilo, se bem me lembro de
autoria de Alfredo Rizutti.Estávamos apenas no começo. Quando nasceu a filha deles, Kelly Cristina, o Murilo me chamou e
perguntou-me:

-Como ela é?

-A cara do pai. Eu respondi.

A manchete do jornal:

-Olhos de Pelé, nariz de Pelé, boca de Pelé.

Um dia, em 1968, Mino Carta saiu do JT para fazer a revista Veja.

Anos depois, sairam com o Mu do JT.

Então eu entendi que não tinha mais nada para fazer lá.

Pior agora.

Com a morte do MU, não há mais a menor possibilidade de se refazer a dupla, assim como nunca mais teremos Pelé e Garrincha no mesmo time.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Sem perdão

Eric Nepomuceno

Na verdade verdadeira, ao longo dos últimos anos foram poucos os nossos encontros. Nos falávamos por telefone, isso sim, a cada três, quatro meses. Murilo ligava só para perguntar como eu estava, queria saber de Martha, de Felipe, dizer que sentia saudades e disparar um par de malvadezas. Outras vezes, para contar de viagens. Ou para falar de nossos amigos ou de gente que conhecíamos. E então aproveitava, é claro, para largar outro par de malvadezas.

Os encontros, ultimamente, aconteciam ao acaso, em algumas de minhas poucas idas a São Paulo. E sempre em restaurantes. Comentávamos essa coincidência, combinávamos jantar juntos na próxima vez, e acabou que essa próxima vez não aconteceu.

Não importava: a cada reencontro eu dizia a ele que era como se tivéssemos nos visto uma semana antes. Ou seja, nada mudava ou mudou entre nós, nada nos distanciou, ao longo dos exatos 40 anos de uma relação do mais cálido afeto, de uma amizade sem tréguas. Murilo foi testemunha de meus anos jovens, os decisivos. E jamais deixou de me acompanhar. Eu sabia disso, ele também.

Não era preciso encontrar o Murilo para que ele continuasse a ocupar em minha vida o espaço que ocupou desde sempre.
Murilo, para mim, era uma espécie de joelho. Explico: quase nunca olho para os meus joelhos. Mas caminho graças a eles. Sei que estão onde estão, e isso me basta. Conto com eles para seguir em frente.

Assim era o Murilo na minha vida.

Agora, é de uma ironia amarga e dolorida perceber, como percebo, que não consigo escrever sobre ele.
Logo eu, que com Murilo aprendi tudo que sei de meu ofício, inclusive a escrever e a viver do que escrevo, não consigo. É como se quisesse guardar nossas histórias só para mim. Talvez porque em silêncio elas permaneçam intactas, inalcançáveis pelo tempo.

Então, vou dizer apenas que ao longo de toda a minha vida profissional, os anos cruciais, os melhores, foram aqueles passados no Jornal da Tarde, entre 1969 e 1976. Éramos todos absurdamente jovens, e sabíamos que estávamos participando, comandados pelo Murilo, de alguma coisa importante, que nos marcaria para sempre. São de lá minhas lembranças mais profundas. As intocáveis, as permanentes.

E quero também dizer que jamais me ocorreu a idéia de algum dia estar escrevendo sobre ele sabendo que, desta vez, Murilo não vai ler o texto para depois demolir tudo com afiada graça e pontaria certeira.

Eu nunca disse ao Murilo o quanto devo a ele. Eu não imaginei jamais o quanto sentiria sua falta, simplesmente porque nunca pensei que essa falta aconteceria alguma vez.

Agora isso já não importa. Murilo cometeu a indelicadeza suprema de ir embora. E de me deixar um vazio sem limite nem remédio.

Essa malvadeza, não vou perdoar jamais. Jamais.

Conheci murilo felisberto em 1968, e me orgulho ao dizer que foi amizade à primeira vista. lembro que ele tinha um carrinho esporte, um willys interlagos, que não funcionava nunca mas impressionava as moças. eu brincava dizendo que aquilo não era carro, era um devaneio. Só comecei a escrever para o jornal da tarde em 1970, e só fui contratado em 1971. Em 1973 fui para buenos aires, como correspondente. e, três anos depois, saí do jt e passei a ser correspondente da 'veja' (a daqueles tempos), primeiro em buenos aires, depois em madrid e finalmente, de 1979 a 1982, no méxico e américa central. Portanto, trabalhei com o murilo felisberto, lado a lado, entre meados de 1970 e o começo de 1973. e, à distância, até abril de 1976. De longe, acompanhei a ida do murilo para a dpz, sua breve passagem pelo jornal do brasil, seu retorno ao jt, seu regresso à publicidade, seu afastamento de tudo para se dedicar a ouvir música, ler aquela infinidade de revistas, à sua maneira de tratar com as fragilidades da vida. A partir da minha saída do jt, não tornamos a trabalhar juntos. Com isso, quero dizer que nossa amizade, que permaneceu intacta até o fim, não dependeu, em nenhum momento, de circunstâncias profissionais. Abandonei o jornalismo cotidiano em 1986 (ou fui abandonado por ele) e, desde então, me dedico a viver do que escrevo -- livros, traduções, eventuais trabalhos para documentários, de vez em quando alguma coisa para a imprensa. Ou seja, me dedico a viver de algo que aprendi, em boa parte, com o Murilo.

Murilo à primeira vista

Heloisa de Araujo Moreira

Senti uma mão muito leve no ombro, e alguém falou com um fio de voz: estava observando vocês da minha mesa. Eram típicos o sussurro, o chegar sorrateiro, a recusa da cadeira oferecida: preferia jantar sozinho, na mesa costumeira do restaurante Spot. Eu tenho minhas manias - ele explicou, como se precisasse. Voltou para se despedir e saiu andando um pouco encurvado, óculos na ponta do nariz, revistas embaixo do braço, devagar como se anda nas calçadas do interior de Minas Gerais.

Foi a última vez que vi Murilo Felisberto. Mas a imagem é a mesma da primeira, quando o conheci no final dos anos 60, estudante ainda, fascinada pelo Jornal da Tarde e pelas noitadas em cantinas paulistanas escutando conversas de redação. Alguém já o viu andar apressado? Sem revistas ou jornais embaixo do braço? Sem entremear a conversa com sorrisinhos irônicos cheios de significado, carregados da intenção de desarmar o interlocutor?

Só bem mais tarde convivi profissionalmente com Murilo, no breve Viver e no JT, onde minha primeira tarefa foi fazer um caderno de Natal. O convite foi feito noutra mesa, numa madrugada de 1976 em que lamentávamos o fechamento do jornal onde ele tinha investido suas economias. Sem-cerimônia, numa época em que o comércio de luxo era bem mais acanhado, além de presentes convencionais recheei o suplemento com sugestões extravagantes: colar de diamantes da Tadini, vasos de cristal Gallé, edições de livros raros, bengalas de castão de prata e pince-nez de ouro garimpados em antiquários do centro da cidade. Murilo adorou.

Tempos depois, noutra madrugada, noutra cantina, provocou: pensei muito em te despedir do JT ... você ousou questionar uma ordem minha. Ele se referia a um episódio já antigo, quando eu havia feito uma pergunta para entender uma decisão de redação. Murilo arquivava mágoas e recados escritos em pedaços de laudas. Ora, Murilo, jornalistas perguntam – argumentei, e bebemos mais uma garrafa de vinho.

Murilo era sofisticado, obcecado pela forma, pela precisão, pelo detalhe. Passou anos fazendo a reforma ideal de um apartamento. Comprou dezenas de CDs que colecionava sem ter onde tocar, à espera do aparelho de som perfeito. Desencantou-se com uma namorada quando ela cometeu o desatino de pendurar uma vulgar samambaia na sala. Viajou a Londres (ou foi a Paris?) para passar uma semana trancado no quarto do hotel e ler, ler sem parar, jornais e revistas que não encontrava no Brasil.

Ele não sobreviveria muito tempo a essa época de mesmices.

Trabalhei como repórter no Caderno de Variedades do JT entre 1976 e 1982. Fiz duas matérias para o Viver em 1976, que fechou antes das matérias serem publicadas.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Branco sobre branco

Sandra Abdalla

Considero que uma das sortes que tive na vida foi conhecer o Murilo.

Inteligente, curioso , um grande e querido amigo.

Logo que entrei no Jornal(da Tarde em 1970), o Murilo costumava levar os desenhistas até a sua casa.Toda branca. Ficavamos enlouquecidos com o volume de livros sensacionais, empilhados pelo chão.Enquanto folheavamos aquela maravilha, sem saber por onde começar, ele me perguntou o que eu gostava em música, já que em desenho o meu predileto era o Steinberg e o dele o André François. Disse que achava o Satie o mais próximo dos que gostam de desenho.Logo depois, o som da "Gymnopedie" invadiu a sala. Fui conferir qual LP, que também aos montes ficavam encostados nas paredes, estava tocando.

E lá estava o querido Murilim, tocando em seu piano de cauda também branco...

“Conheci o Murilo em 1969 e fui trabalhar no JT em 1970. Acho que fomos bastante próximos durante todo o tempo.
Mesmo quando ele saiu do jornal mantivemos um contato constante. Acompanhei as mudanças de endereço e reformas que ele fez pela vida. O Murilo foi uma pessoa de que gostei muito.Toda novidade que eu via quando viajava , tinha certeza que ele também se interessaria. Infelizmente nesta última viagem não deu tempo para a gente se encontrar e trocar figurinhas. É uma pessoa que faz falta.”

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Murilo

Marcos Magaldi

Nossa, como é difícil escrever sobre um amigo de mais de trinta anos!
O que falar? Outro dia, pensando no assunto, vi que não tinha nenhuma foto dele. Por falar nisto, apesar de termos trabalhado mais de trinta anos juntos e, em alguns momentos, com convivência praticamente diária, nunca fiz uma foto do Murilo.
Que engraçado....

Eu o conheci quando entrei no Jornal em 1973 mas, naquela época, ele era uma figura distante, editor chefe do JT, com quem, nós fotógrafos, tínhamos pouco contato. Quando saí do jornal em 1979, depois de uma fracassada greve dos jornalistas, fui trabalhar com ele na Revista Senhor Vogue, que ele estava editando naquela ocasião. Nunca conheci ninguém com o faro jornalístico dele. Basta lembrar que, já naquela época, a revista publicou a primeira grande matéria com o Lula, um ótimo perfil do Tancredo, sem esquecermos também da reportagem feita com ACM, muito antes de qualquer órgão de imprensa pensar no assunto. Quando escuto falar que o Murilo era apenas um bom diretor de arte, vejo como ele nem sempre foi compreendido na sua trajetória de homem de imprensa. Criador de títulos e seções dentro do JT, que até hoje são inesquecíveis, Murilo era também um ótimo coordenador de colaboradores, trabalhando muitíssimo bem com equipes de 200 ou mesmo de 15 pessoas.

Depois de sua saída da revista, em 1980, acabou se revelando também um excelente homem de criação em publicidade, onde foi responsável pela formação de uma geração de diretores de arte e redatores, até hoje seus discípulos fiéis.

Trabalhamos muito tempo juntos e hoje me parece curioso como pessoas tão diferentes como nós dois, pudessem conviver de maneira produtiva, mas era o que acontecia. Simplesmente nos entendíamos. Aprendi com ele a gostar de maneira quase obsessiva de revistas, não importando muito o gênero de publicação, apenas sua qualidade editorial.

Murilo também adorava informação de qualquer natureza, desde a fofoca mais trivial ,até o furo jornalístico internacional. Lia uma quantidade oceânica de publicações, mas nunca nutriu grande afeto pela tecnologia, ou pela Internet e só recentemente o vi falando em usar computador.

Como um homem de fases, quando reformou seu apartamento na praça Buenos Aires durante vários anos, ficou fanático por arquitetura e vivia com revistas especializadas de baixo do braço, para lá e para cá. É claro que o resultado não poderia ser mais impressionante, já que sua preocupação com detalhes chegava às raias da insanidade. Nesta ocasião conheci uma outra faceta do Murilo. Seu gosto por piano (Chegou a ter alguns ao mesmo tempo) e por música de câmara, além do seu enorme conhecimento de som. Com o tempo, virou inclusive um grande “audiófilo”, comprando uma aparelhagem inigualável, da qual tinha um inegável orgulho...

Estive com ele uma semana antes de se internado, num almoço onde ele era convidado mais uma vez par dirigir uma publicação. Não mostrou especial interesse, dizendo que estava retirado, que sua época terminara. Não me pareceu justo, mas infelizmente neste caso não era uma “boutade”. Nos despedimos rapidamente e não mais estive com ele. Talvez tenha sido melhor assim. De qualquer forma, ele fará muita falta...

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Nosso parquinho de diversões

Gabriel Manzano Filho

Americanos morrem no Vietnã, a ditadura acaba de cassar três deputados, o Corinthians em crise pega o Santos de Pelé e tudo isso é tão corriqueiro, tão enfadonho que ao chegar à redação, ali pelo meio-dia, Murilinho já vem de cara fechada e imaginando como será possível fazer um jornal diferente no dia seguinte.

Ele não entra na redação, ele se infiltra, como dizíamos naqueles anos 70. O passo miúdo, ombros encolhidos, jornais debaixo do braço, olhando de esguelha, corre direto pra sua sala lá no fundo. Se vier assobiando a 40 de Mozart, aqueles famosíssimos primeiros compassos, e sorrir para os dois primeiros que encontrar, é sinal de que o dia vai começar bem para todos. Mas se passar em silêncio e se tiver debaixo do braço o Jornal da Tarde do dia, dobrado e com um título ou texto circulado em vermelho, dentro de dez minutos vai sobrar uma bronca daquelas para alguém.

Sendo coisa grave, ele nem chama: manda recado. Como punição complementar, poderá ficar alguns dias sem falar com o vilão que lhe estragou o café da manhã. Manda a justiça que se diga: às vezes essa sibéria se estendia por semanas, e ai de quem não tivesse estrutura emocional para resistir. Murilo vivia o jornal com tal intensidade, os erros o incomodavam de tal modo que lhe parecia justo cobrar caro dos seus autores. "Não liga não, é o jeito dele", diziam uns para os outros.

Vistos assim de longe, aqueles bons anos, tão repletos de maus momentos, mais parecem um terrível vestibular do qual, hoje, a gente se orgulha. Não era medo de desemprego, essa praga ainda não existia. Era outro medo, o de ser expulso daquele divertidíssimo parque de diversões, com seu obsessivo campeonato de inteligência em que o melhor lead, a melhor piada ou o trocadilho mais criativo valiam gloriosos minutos de fama ao seu autor. Uns como estrelas, outros como aprendizes, jogávamos num time dos sonhos do qual nem o Ato 5, as cassações ou o terrorismo conseguiam nos tirar.

Mas, se às vezes faltava ao Murilo paciência para a diversidade, vamos relembrar o poeta: tudo valia a pena porque a vida, definitivamente, não era pequena. Havia, no ar, naquela redação, um permanente lobby contra a banalidade e em defesa da inteligência. Ali aprendemos todos, quase brincando, a arte de fazer perguntas, de inventar pautas inéditas todo dia, de só gostar de um texto depois de tê-lo mudado cinco ou dez vezes. Até o ambiente em volta colaborava: eram tempos do Santos de Pelé, dos Beatles e de Cassius Clay, dos festivais, da seleção de 70 no México... ou seriam os nossos olhos que achavam tudo em volta tão especial?

Foi esse o outro lado da moeda, e não foi pouco. Olhando em volta, hoje, tantos daqueles jornalistas tão bem-sucedidos, fico me perguntando quanto desse sucesso seria inevitável por força de talentos individuais. E quanto dele só aconteceu porque, naquela dourada década inicial do JT, implantada por Mino Carta - até que ele saísse para fazer a Veja, em 1968 - e mantida em estado de permanente inspiração pelo Murilo, todos se acostumaram a trabalhar sonhando e a fazer do esforço máximo uma rotina.

Gabriel foi pesquisador, redator e sub-editor do JT entre 1966-1968 e 1970-1975

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Dez anos

Simone Pessine Buhrer

Corpo frágil e judiado pela vida, precisando de colo, cuidados e disciplina; mente sábia, generosa e amiga.
Um grande desafio que se tornou aprendizado de 10 anos.
Disciplinar e cuidar de um corpo físico frágil, comandado por uma mente forte e completa, essa experiência muito me acrescentou e só tenho a agradecer.
Meu pai, meu amigo e meu querido paciente.....
Saudades e eterno carinho.

Simone é fisioterapeuta e atendeu o Murilo desde 1997.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Puro Espírito

Renato Pompeu

Mu não era simplesmente uma pessoa; era uma essência, tanto no sentido de ser uma forma abstrata e perfeita, de alma das coisas, como também no sentido de ser um perfume, um halo, uma aura que banhava as pessoas e que dele emanava. O conheci por volta de 1960, na redação das então Folhas, ele com 20, eu com 18 anos, e me impressionaram já o seu físico espirtualizado, esbelto, frágil, de ossos delicados, cabelos já grisalhos, seu rosto talhado como o de uma estátua, e sua alma de criador, ansioso pela beleza, que já então se destacava nos diagramas e nos temas que escolhia para o jornal. Ele já era então o líder espiritual da revolução jornalística que iria empolgar São Paulo a partir dos meados dos anos 1960. Como puro espírito, Mu estava sempre acima das mesquinhas condições materiais - eu, como jovem esquerdista, nem cheguei a considerar alienação o seu desinteresse pelas questões sociais: na verdade, ele estava mais preocupado do que os esquerdistas com as misérias da condição humana, só que tinha mais lucidez e, ao invés de lutar em vão para modificá-las, como nós, se fechou numa redoma de pura beleza e encanto, onde não havia feiúras. Dele emanava só beleza, só felicidade - foi sua contribuição para mudar o mundo. Tínhamos em comum a amizade da hoje professora de Ciência Política da USP Maria Hermínia Tavares de Almeida, na qual eu via uma militante trotskista - e ele, um anjo barroco. Ele tinha razão.

sábado, 6 de setembro de 2008

Meu tipo inesquecível

Luiz Paulo Horta

Murilo Felisberto: quem o conheceu bem, não vai esquecê-lo facilmente.
No meu caso, esse encontro aconteceu no “velho” Jornal do Brasil da avenida Rio Branco - prédio histórico dos primeiros tempos da avenida (na sua época, a mais alta estrutura de ferro da América Latina).
O prédio ainda tinha uma aura; e, ao mesmo tempo, naqueles começos da década de 60, era cenário de uma experiência que estava revolucionando a imprensa brasileira. Logo logo, tornou-se o jornal das pessoas inteligentes, o grande jornal do Rio de Janeiro.

Nesse contexto é que Alberto Dines teve a idéia de criar um Departamento de Pesquisa, encarregado de dar uma certa profundidade ao noticiário do dia-a-dia; e Murilo foi o seu primeiro e mais brilhante chefe. Ele tinha gosto pela notícia; mas também gostava de virá-la pelo avesso, de descobrir o que estava por trás dos fatos. Assim começamos nós, redatores, a trabalhar nessa linha;e a inspiração vinha do Murilo. Porque ele era a menosconvencional das criaturas: miúdo, branquinho, andandorente às paredes, era o contrário do jornalista barulhento e superficial. Tinha o gosto mais fino, em música como em literatura. Gostava do Octeto de Schubert, e daquele romance sombrio que é “Judas, o Obscuro”.

Havia alguma coisa, nele, de uma Minas Gerais eterna, descobrindo diamantes numa atmosfera de segredos e mistérios. Ele ia buscar seus diamantes nos colegas de profissão. Tinha um olho infalível para quem pudesse ir além do prosáico; e dava tudo por um bom texto. Podia ser incrivelmente minucioso - sem nunca perder a visão do conjunto. Com ele, fizemos textos detalhistas e textos panorâmicos (lembro de um, sobre a “grande sociedade” proposta por Lyndon Johnson, que ele editou com um talento gráfico que logo se tornaria proverbial).

Era um mineiro que se aclimatara em São Paulo, trabalhando nos inícios da “Folha”, e que resolvera experimentar o Rio. Não ficaria muito tempo por aqui - tendo sido convocado para o pontapé inicial do “Jornal da Tarde”. Acho que ele curtiu o Rio, num momento em que o nosso meio tinha muita riqueza humana. Mas também acho que era muito sol para ele, muita luminosidade. Acabaria voltando para São Paulo, sem que, por isso, o nosso contato diminuísse. Tínhamos muito o que conversar em matéria de música. Lembro que, no início, ele se contentava com o sistema de som mais rudimentar - uma vitrolinha portátil. Depois, foi sofisticando cada vez mais, e teve o prazer de mostrar aos amigos sistemas de som caríssimos que ele importava dos Estados Unidos. Era a sua maneira de ser, sempre em busca do melhor. Mas esses rasgos de sofisticação não o tornaram menos sensível à aventura humana. Era verdadeiro amigo dos amigos; e tinha um fôlego inesgotável para as conversas onde a amizade se desdobra e se exercita. Acima de tudo, ele era um original, até na maneira de olhar - levemente irônica, inquisitiva, atenta aos detalhes. Ele tinha algumas perguntas a fazer à vida - e não sei se encontrou as respostas. 

O “eterno feminino” fazia parte do seu mundo - e, nesse terreno, ele nunca deixou de ter boas companhias. Mas também preservava os seus espaços particulares, e talvez por isso, nesse mesmo terreno, não tenha construído ligações definitivas.

Os “espaços” do Murilo eram toda uma história - os apartamentos que ele reformava infindavelmente, vastos espaços, muitas vezes brancos, onde ele expandia seu talento de “designer”, e onde dificilmente faltava um piano. Em busca do raro, do extraordinário, ele chegou a descobrir um piano fascinante, sobretudo pela forma, que ele também mandou reformar. Sabia tocar um pouco, sempre planejava tocar mais - sonho que talvez não realizou pelo excesso de oferta na área do disco. É compreensível que gostasse de Schubert - esse músico tão raro, tão fora das normas, que morreu tão cedo. No lirismo delicadíssimo de Schubert, encontro um paralelo para o modo como o Murilo tratava a vida - na ponta dos dedos, fugindo de tudo o que fosse vulgar, feio, desagradável.

Ele foi um artista também do ponto de vista da vida de todos os dias; artista até a medula. E conviver com ele era descobrir sempre novas formas de ver a vida, de entender as pessoas. Ele foi o “meu tipo inesquecível”.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Murilinho, o Magnífico

Julio Moreno

Para ser sincero, eu não fazia parte da corte da “Rainha”, ou seja, daquele grupo da redação do JT mais íntimo do Murilinho. Mas havia entre nós algo em comum: o interesse por São Paulo. Eu, “repórter de cidade” ingênuo, acreditava que o urbanismo e uma boa administração municipal seriam a salvação de todas nossas mazelas. Ele, com uma visão bem mais ampla do mundo, era mais cético – e estava com a razão.

Certa vez, Murilinho me perguntou sobre o que eu achava de uma determinada rua nos Jardins onde ficava um apartamento de seu interesse. Eu, prestimoso, passei-lhe algumas informações sobre o zoneamento da região, o que supostamente lhe garantiria um uso permanentemente residencial, por isto e por aquilo, blá-blá-blá. Hoje sei que fui ridículo, dando uma resposta técnica para uma pergunta que tinha outro sentido. Murilinho, pragmático, queria apenas saber se vidros blindados abafariam o barulho das avenidas próximas...

Eu no sonho, ele na realidade. Penso que o segredo de sua genialidade era justamente esse senso agudo do real, do qual se apossava para dedilhar uma manchete irretocável ou desenhar mais uma de suas páginas criativas. Com Murilinho, o JT não tinha primeira página: eram “capas”, como se revista fosse. Uma revista diária.

Inesquecível a valorização que sua criatividade deu a uma reportagem que fiz sobre 200 prédios considerados, na administração Olavo Setúbal, “bens culturais” da cidade. Foram duas páginas centrais, com as fotos de todos os 200 prédios, formando um mosaico que até o prefeito me confessou guardar em seu arquivo como guia.

Sob seu comando, o JT foi o precursor do jornalismo de serviços de lazer e de grandes reportagens sobre temas gerais de São Paulo. Quem não se lembra do “Divirta-se” ? – que ele, inclusive, tentou empreender como revista independente. A “Vejinha” é a sua versão atualizada. Quem não curtia (no sentido figurado da palavra) os textos igualmente curtidos (no sentido correto da palavra) por jornalistas de renome, alguns dos quais viraram autores de best-sellers.

Senhor do real, Murilinho era um hábil transformador de rotinas. Que o digam aqueles editores que ele submetia de tempos em tempos a uma dança de cadeiras, realocando o titular da Economia para a editoria de Esportes, o de Esportes para a Política, e assim por diante. Todos na redação sabiam que a um rodízio sucederia outro, mas o intervalo exato era sempre uma surpresa – essa, aliás, outra característica de Murilinho. Nem todos saiam contentes. Ouso dizer que a prática era mesmo o terror da corte, mas sem dúvida ela ampliou muito a versatilidade dos editores que captaram seu valor e deu a nós, repórteres, a oportunidade de vivenciar diferentes chefias e orientações. “Rainha” era só um apelido folclórico. Na universidade que foi o JT em sua época, o mais correto seria chamá-lo de “Magnífico Senhor Reitor”. Já estou vendo o movimento dos dedos de sua mão direita ensaiando uma contestação, traída por um sorrissinho que retratava bem o que se passava em seu ego...

Júlio Moreno

“Repórter de Cidades” e Chefe-de-Reportagem de Economia do JT nas décadas de 70 e 80

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

A Aventura do Viver

Sergio Rondino

Do Murilo jornalista, qual de nós não se lembra? Para o Murilo publicitário, vale a mesma pergunta. Mas do Murilo dono de jornal, aposto que pouquíssimos se lembram, ou sabem. Por isso, vou contar.
Foi lá pelos idos de 75 e 76 do século passado. Paralelamente ao trabalho como chefe de redação do Jornal da Tarde, Murilo tinha criado uma empresa de comunicação. Tratava-se da Mu Comunicação, nome que, evidentemente, gerava diálogos estranhíssimos para quem atendia ao telefone. E geralmente quem atendia era o nosso Guimarães, também Guima ou Guiminha, assistente administrativo, financeiro, RH, executivo gráfico, braço direito e faz-tudo na empresa.
- Mu Comunicação, boa tarde.
- Como?
- MU! Mu Comunicação...
- Eme Uú?
- Não! É MU mesmo! Quem fala?
No início, a Mu cuidava das campanhas publicitárias do então nascente grupo Objetivo, do nosso amigo comum João Carlos Di Genio. Acho que o Murilo ganhou algum dinheiro com isso, pois logo em seguida se animou a lançar seu próprio jornal. Seria um semanário da cidade. É claro que, em se tratando do Murilo, não poderia ser só mais um semanário. Teria de ser especial, fruto de sua conhecida paixão por sofisticadas publicações do mundo todo.
Ainda me lembro: logo que fui contratado para ser seu editor-assistente, Murilo me passou para analisar uma montanha de revistas, como a americana New Yorker. Era curioso como ele sempre comentava acontecimentos de redações estrangeiras, até mesmo troca de cargos, como se estivessem acontecendo ali na esquina.
Sofisticado como as revistas que amava, Murilo era um perfeccionista nos conceitos, na definição do formato editorial, no visual gráfico, no estilo dos textos e dos títulos, em cada detalhe. E algumas histórias ligadas a esse perfeccionismo são as que mais ficaram nas lembranças que temos, eu e o Guiminha, daquele tempo tão bom. Hoje nos divertimos rememorando quanto tempo e esforços gastamos na busca pelo acerto de detalhes dos quais Murilo não abria mão.
Uma delas tem a ver com o título do jornal, que Murilo tinha na cabeça há longo tempo: VIVER. Nascera do próprio conceito do produto, também muito claro para ele. Cada seção e cada texto do jornal teria de ajudar o leitor a conhecer mais a cidade, sua história e seus tipos, a usufruir melhor de tudo o que a metrópole oferecia.
O problema foi sintetizar essa razão de ser do jornal num texto de apresentação que saísse como o Murilo queria. Acho que foram umas vinte tentativas, todas rechaçadas pelo Murilo com um "ainda não é bem isso". (Lembrai-vos de 75, que não tinha computadores e e-mails: aquele era o tempo das máquinas de escrever e das laudas que iam e vinham...) Até que, um dia, ele chegou com a frase síntese - e, para mim, salvadora: "Viver pretende ser uma espécie de manual de sobrevivência na cidade grande". Ufa! Acertado o texto, Murilo se vai e eu, aliviado, aviso a um Guiminha já agoniado com o deadline da gráfica:
- Fechou a página 3!
Guiminha rosna:
- Vocês enrolam demais! Por isso é que eu me fodo...
A reação dele era perfeitamente explicável por outra historinha exemplar: a da escolha do logotipo. Guiminha calcula que foram mais de 200 tentativas! Deve ser exagero, mas ele lembra que Murilo passava dias e noites com catálogos gráficos embaixo do braço, "namorando a cada hora um tipo ou uma fonte diferente". Lembrai-vos de novo de 75: naquele tempo não havia essa moleza de hoje, em que até um simples programa de digitação como o Word tem dezenas de tipos diferentes à escolha do freguês. Compor e imprimir provas dos logotipos exigia muitas idas e vindas a um estúdio gráfico, e custava uma nota preta. Imaginem as tais 200 tentativas atormentando o Guiminha...
Mas tem outra história do perfeccionismo - e essa deixou dores físicas ao pobre Guima. Chegara o grande dia de lançar o Viver. A impressão foi em um jornal de bairro de Pinheiros, e é claro que antes já perdêramos longas horas no paste up. (Lá vamos nós, outra vez, ao século passado: naquele tempo, a matriz de cada página era montada com estilete e cola sobre uma folha de cartolina, texto a texto, título a título, legenda a legenda. Texto maior tinha de ser cortado ali mesmo, título maior - dizíamos "estourado" - tinha de ser refeito, digitado de novo, colado outra vez. Era o tal paste up. Um sufoco.)
Impresso o jornal, achamos todos que ficou uma beleza. Tablóide, colorido, diagramação sofisticada, belas fotos... parecia revista. Era noite, hora de mandar para as bancas! Não, não era: Murilo achou que aquelas bordas meio serrilhadas que as rotativas deixam no papel jornal não ficariam bem no sofisticado "Viver". Mandou refilar tudo.
Não lembro mais a tiragem, mas era uma pequena montanha de jornais empacotados. Como refilar tudo aquilo, pacote por pacote, e àquela hora da noite? Sobrou para o Guiminha, claro. E lá se foi ele, acho que num caminhão, atrás de uma gráfica que o amigo Miguel Jorge arranjou. Passou a noite ao lado de uma guilhotina, desempacotando, refilando, empacotando de novo. Ficou com tanta dor nas costas que nem pôde trabalhar no dia seguinte.
Mas o "Viver" saiu, refilado e elegante. Chegou às bancas para uma gloriosa, porém curtíssima carreira, que terminou poucos números depois num gesto tão sofisticado como seu criador. Certa tarde, Murilo entrou na pequena redação, distribuiu taças à turma, estourou uma garrafa do champanhe mais caro da época e anunciou, sorrindo, que a nossa aventura terminava ali. Um brinde ao "Viver"!
Grande Murilo.

Sergio Rondino começou a carreira jornalística no Jornal da Tarde, em 1967, como repórter, quando o Murilo era secretário de redação. Saiu de lá em 1988 para fazer televisão, quando Murilo já estava na área publicitária. Aprendeu muito com ele nesses anos, convivendo dentro e fora das redações. E a ele deve vários progressos e promoções profissionais. Foi um amigo.

Horizontes

Alfredo Toledo

"O Murilo, embora sempre tenha visto a vida de frente, viveu atrás da estética, acho para amanar o concretismo dela. O seu conceito de estética e harmonia foram o estudo para com a realidade da existência."

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

“Ladrão é o Hiroito"

Sergio Oyama

Minha convivência com o Murilo não foi longa e nosso relacionamento nunca extrapolou o limite das conversas sobre assuntos profissionais. No entanto, ele foi o responsável por uma mudança radical e decisiva em minha vida.

Em 1959 eu era um jovem funcionário público (estava então com 20 anos) ainda à procura da minha vocação profissional. Foram incontáveis noites insones em que fiquei tentando decidir sobre que faculdade cursar. Entre as poucas opções que nunca haviam passado pela minha cabeça uma era o jornalismo. Mesmo porque, a única, e na época ainda desconhecida faculdade da área, era a Cásper Líbero.

Um dia, um grande amigo, o Emílio Matsumoto, que pouco tempo antes havia começado a trabalhar na Folha de S. Paulo como repórter, comunicou-me que o Murilo Felisberto estava procurando alguém que escrevesse bem para integrar a equipe de copy-desks da Local, editoria que ele comandava. Murilo estava empenhado em dar uma cara nova às suas páginas, e por isso procurava uma pessoa sem nenhuma experiência jornalística para poder treiná-lo sem ter que enfrentar o trabalho sacal de corrigir ou mudar estilos e vícios de linguagem para conseguir o texto que ele imaginava para as matérias. O Matsumoto achou que eu tinha o perfil requerido, já que toda a minha “experiência jornalística” se resumia em termos feito, eu e ele, um jornalzinho rodado em mimeógrafo e destinado aos jovens da igreja evangélica que freqüentávamos. Daí o Matsumoto conhecer também o meu texto, o que o fez recomendar-me ao Murilo. Como não havia nenhuma exigência quanto ao nível de escolaridade, lá fui eu para a Folha fazer um teste, no qual me saí razoavelmente bem, o suficiente para ser aprovado.

Lembro-me do Murilo dessa época como uma pessoa extremamente afável, sorriso maroto e com boa vontade para ensinar. Foi assim que me recebeu e me incentivou. Mas, acho que caí nas graças dele no dia em que preparei o texto de uma pequena nota sobre um furto cuja autoria, após descartados alguns suspeitos, a polícia atribuiu a um tal de Hiroito. O título, que me veio imediatamente à mente, foi: “Ladrão é o Hiroito”. Murilo adorou e saiu pela redação me elogiando: “O Oyama é bom!”. Não preciso dizer que foi meu minuto de glória.

Não fiquei muito tempo na Folha, creio que dois ou três anos... Ainda achava que o jornalismo não era a minha praia. Como continuava com meu emprego no funcionalismo público, pedi minha demissão e voltei para a rotina tranqüila da repartição.

Reencontrei o Murilo em 1966, quando, acompanhado de alguns colegas da Folha de S. Paulo, ele se juntou ao Mino Carta para criar o Jornal da Tarde. O evento novo me permitiu retornar às redações, e novamente sob o comando do Murilo. Ali, finalmente, encontrei um rumo para meu futuro profissional.

Lidar com o Murilo não era difícil. Hoje percebo que o que ele não gostava era de ser contrariado. Não me lembro de tê-lo visto algum dia alterado, perdendo o controle. A imagem que mais se fixou em minha memória é a dele curvado sobre a mesa, desenhando as páginas do jornal e sempre assoviando. Impressionava-me a velocidade com que as rabiscava, indicando as fontes e o tamanho das letras sem hesitar um segundo.

Em 1968, Mino Carta e parte de sua equipe no JT saíram para nova missão pioneira, fundar a revista Veja. Eu permaneci por mais algum tempo no jornal, mas meses depois acabei me juntando à turma do Mino. Depois disso perdi o contato com o Murilo..

Muitos anos depois, creio que já na década de 80, fui surpreendido por um telefonema dele. Murilo estava editando a recém-criada revista Vogue Homem e queria que eu escrevesse um artigo sobre uma experiência que fiz na redação de uma revista da Abril, ajudando um colega a zerar uma dívida financeira que se transformara em uma bola de neve. Fui vê-lo. Ele me recebeu com o sorriso de sempre, e mostrou-me com visível orgulho a última edição da Vogue Homem, pedindo minha opinião. Folheei a revista, realmente bem feita e bem a cara do Murilo. Elogiei o trabalho, e fiz uma observação, que nem me lembro qual foi, mas acho que dei uma de Jorge Horácio, o personagem do Minha nada mole vida, que se gaba de ser sincero, doa a quem doer. E parece que doeu no Murilo. Ele fechou a cara, e como já havíamos acertado o “frila” ele deu o encontro por encerrado. Dias depois entreguei o artigo e nunca mais nos encontramos.

Alguns anos atrás soube que ele havia retornado à direção do JT. A novidade chegou-me pelo meu filho, o Márcio, que me “sucedeu” no jornal e passou a trabalhar com o Murilo. Achei significativa essa coincidência...

Devo meu crescimento e aprimoramento como jornalista a pelo menos duas pessoas, com as quais compartilhei a maior parte dos meus mais de 40 anos de vida profissional: uma é o Emílio Matsumoto, já falecido, e o outro, o Ulysses Alves de Souza que, com o Matsumoto, foi também quem me indicou ao Murilo. E embora, como eu disse, minha convivência com o Murilo tenha sido relativamente pequena, eu sempre me lembro dele como a pessoa que, ao abrir a oportunidade para meu ingresso no jornalismo, livrou-me, sem o saber, da angustiante busca por uma profissão. Depois, conscientemente, me acolheu, orientou e incentivou.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Texto para ninguém ler

Carlos Brickmann

Tudo bem, jornalismo é informação. Mas foi o Murilinho que me mostrou uma outra faceta do que deve ser a imprensa: além de mexer com a imagem dos outros, para o bem ou para o mal, precisa também cuidar da própria imagem.

Eu era editor de Internacional do Jornal da Tarde. Fechávamos de madrugada, com uma esticada pela manhã; e o jornal ia às bancas por volta de meio-dia.

Apareceu-me uma notícia interessante: com a alta do preço dos combustíveis, o Japão estava desenvolvendo um novo navio petroleiro, especialmente econômico - um veleiro. Era um veleiro supermoderno, com localização via satélite, velas controladas por computador, motores auxiliares - se a velocidade caísse abaixo de determinado limite, os motores entrariam em ação. A idéia é que mais da metade da viagem fosse realizada só com os ventos.

Mais de cem anos depois, a volta dos veleiros! Enchi meia página com uma foto do Cutty Sark, um veloz veleiro inglês que fazia a rota da China. E preparei uma matéria sobre o papel dos veleiros nas comunicações e na guerra.

Por volta das três da manhã, o Murilinho chegou à Redação. Olhou a página, gostou da idéia, não gostou da diagramação. Resolveu mudar tudo, até a posição do jornal: deixou a página na horizontal, com o veleiro ocupando todo o espaço. E a matéria corria em volta do navio, uma linha avançando até a ponta da vela, outra um pouco menor, outra pequenininha, aí uma enorme - e, naturalmente, sem hífens, que o Murilinho não gostava disso.

O diagramador ficou mais de duas horas calculando a matéria linha por linha, cada uma com um tamanho diferente. Eu peguei a matéria pronta e refiz tudo nas novas medidas - fui terminar lá pelas nove da manhã.

Saiu linda. Mesmo assim, fui procurar o Murilo e mostrar-lhe que a matéria era ilegível: ninguém teria paciência de virar o jornal de lado e ler uma linha de 142 toques, depois outra de três toques, depois outra com 27. Para minha surpresa, ele concordou.

"Ninguém vai ler, Carlinhos. Mas todo mundo vai dizer: veja só como este jornal é bem feito".

Bingo: reforçava-se a idéia do mercado de que o Jornal da Tarde tinha um acabamento impecável, que era muito bem feito. E, cá entre nós, ninguém perdeu nada ao não ler a matéria sobre os veleiros. No fundo, não tinha importância nenhuma. E o tal veleiro japonês nunca mais apareceu no noticiário.

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Triste

Monja Coen

Fico me lembrando de sua figura esbelta e pálida, sempre carregando um guarda-chuvas, mesmo nos dias de sol.

Quando fui pedir emprego no JT, isso nos idos de 1968, ele me recebeu em sua sala. Fui poucas vezes a sua sala, talvez umas duas ou três vezes durante todo o pouco tempo (menos de três anos) em que trabalhei no JT.

Aprendi a respeitá-lo e de certa forma temê-lo. Por que? Eu não saberia dizer.

Depois de meses como estagiária, éramos três meninas - Murilo se inspirara nas meninas do JB do Rio - um dia tomamos coragem e fomos falar com ele. Eu estava muito nervosa, com vinte e um anos de idade, sem nenhuma experiência empregatícia, ter de ir falar com alguém se me contratava ou não pois estava chegando no pico do meu estresse.

Ele ouviu, sorriu, levantou os olhos e disse : “Mas vocês estão sendo contratadas este mês.”

Alguns meses mais tarde tivemos censura no jornal. E quanto todos nós repórteres decidimos fazer greve contra a censura, Murilo ficou com Dr. Rui e talvez mais uma ou duas pessoas e fecharam juntos todo o jornal.

Há alguns poucos anos, telefonei para ele. Murilo estava no JT novamente. Talvez fosse no ano 2000? Não pude ir.

Fiquei na saudade.

Havia em sua vida um piano. Será que eu o ouvi tocar, que o vi tocar um piano de cauda, negro?

Ou serão apenas fragmentos de memória perdidos nas histórias que me contavam?

Saudades do seu sorriso, da pele clara, dos dedos longos e da inteligência brilhante que parecia ver através de cada um de nós.

No meu caminho a passagem pela redação do JT, chefiada por ele, foi essenciall para a abertura de consicência da realidade e para minha transformação, hoje, em monja zen budista.

Profundos agradecimentos. Murilo Feliz berto.

Descanse em paz. Missão cumprida.

Formou jornalistas, formou pessoas, formou seres humanos integros e bons através de seu exemplo, de sua vida, manifesta em seu andar, seu olhar, sua fala mansa, baixa, firme, correta. Valeu.

Sempre indo, indo, tendo ido e já tendo chegado.

Na Terra Pura dos seres iluminados.

Mãos em prece
Monja Coen
(naqueles tempos Claudia Batista)

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Minhas Histórias do Mu

Toní Rodrigues

1- O RAFE MISTERIOSO

Uma das histórias do Mu, ele morreu sem saber, ou pelo menos sem saber a parte engraçada. Aconteceu no 5º andar da DPZ mais ou menos em 1987. Eu, o Carlão, o Delba e a Margô éramos assistentes lá, junto com o Jairo. O Mú ainda fazia dupla com o Toledão, o único dos aqui citados que eu não sei se tomou parte na trama.
Como todo mundo sabe, o Mu fazia uns rafinhos em papel manteiga bem pequenininhos, porém muito detalhados e cheios de informações, instruções e referências. Ia de tudo alí, desde o tipo a ser utilizado, com o tamanho, o corpo e a cor, até dicas do tipo “veja o livro do Lubalin”, tudo mais ou menos costurado por um desenho no traço tremidinho do Mu.
Um dia ao voltar do almoço, encontro na minha mesa uma revista Idea com um página marcada e nela, presa com durex, um dos rafinhos do Mu como os descritos acima e uma folha de papel sulfite com um título (supostamente do Toledão) para ser marcado no anúncio. Até aí tudo bem, mas ao ler o “job” melhor fui vendo que o Mu estava me pedindo um layout extremamente trabalhoso (dias pré Macintosh, tudo tinha que ser feito artesanalmente) e num canto do rafinho tinha o aviso fatal: “urgente, para as 3 horas”.
Entrei em pânico e fui falar com ele, perguntar se o prazo era aquele mesmo. A primeira coisa que ele me disse foi “Como assim, Toni? Eu não te passei trabalho nenhum...” voltei pra minha mesa, peguei tudo e mostrei pra ele, que imediatamente ficou pasmo.
Eu ainda não tinha percebido, mas nessa altura todo mundo em volta já estava saindo de fininho. Ele olhou pra mim, olhou pro rafe, olhou pra mim, olhou pro rafe, tirou os óculos, esfregou os olhos, olhou de novo pro rafe e finalmente me disse pra desencanar daquilo. Disse que era algo que ele tinha feito num outro dia, mas que o anúncio tinha sido descartado e que alguém deve ter achado aquilo por alí e colocado na minha mesa.
Abriu uma gaveta e fechou tudo lá dentro. Eu disse ok e voltei pra mesa. Passaram uns minutos e ouvi um sussurro: era o Delba (acho) me chamando pro café, onde todos riam de rolar. O rafe era falso, obra do talento de falsário do Carlão. O plano era eu ter um chilique com o prazo, mas ninguém contava que eu fosse mostrar o rafe pro Mu. Quando mostrei, todos prenderam a respiração, achando que tudo tinha ido pro caralho, mas ao perceberem que tinham enganado até ele, só restou sair de cena pra poder rir. Ficamos em dúvida se contávamos pro Mu, ou não. Achamos melhor não, afinal éramos crianças e ficamos com mêdo. Mas acho que se a gente tivesse contado ele teria dado risada junto com a gente.

2 - O JEITO DE PRONUNCIAR O MEU NOME

Meu nome, como já devem ter adivinhado, é Antonio, mas há muito tempo todo mundo que me conhece, fora do mundo da propaganda, me chama de Toní. No mundo da propaganda, por obra e graça do Mu, todos me chamam de Toní. Nem eu, nem ninguém nunca entendeu a razão disso, o Mu nunca explicou, mas de tanto insistir pegou. A tal ponto que quando minha mulher ligava pra mim e o telefone era atendido por outra pessoa, ela era frequentemente corrigida: “Você quer dizer Toní, né?”. Um dia, alguém perguntou pro Mu porque ele me tinha mudado meu nome de Toni para Toní e se isso não me incomodava, ao que o Mu teria respondido: “Se incomodar porquê? Por quê ele vai querer ser um Toni qualquer quando pode ser Toní?” Isso foi um cumprimento e tanto.

3 - O DATILÓGRAFO MAIS RÁPIDO DO MUNDO

Logo que a gente abriu o 7º andar, o Mu e eu fomos brindados com uma estagiária, daquelas que ganhavam estágio por serem filhas de cliente. Ainda não tinha redator trabalhando com a gente, o Stalimir estava pra vir da DPZ Rio (ele acabou indo pra W e o Fernandinho Teperdjian foi contratado, mas isso é outra história), mas enquanto isso não acontecia o Mu tinha a ajuda do Rique Freire, do Ruizão ou do Toledão, que continuavam no 5º andar. Mas ele também fazia redação (claro, pô, era o Mu) e pra isso tinha lá uma maquininha Olivetti Lettera 32. A nossa estagiária trouxe de casa a última moda entre os redatores da época: a primeira máquina de escrever elétrica pequena da Olivetti, que não era um trombolhão como aquelas IBMs de esfera e era o sonho de consumo de 9 entre 10 redatores da era pré-Word. Então ela começou a encher o saco do Mu, dizendo que não tinha mais cabimento se usar numa agência charmosa e moderna como a DPZ uma máquina de escrever como a que ele estava usando, que ainda por cima era muuuuuuuito mais lenta. O Mu então abaixou os óculos para a ponta do nariz e me vendo, deu um sorrisinho sacana. A seguir atacou as pretinhas com uma velocidade de metralhadora, que eu nunca tinha visto até então e datilografando com 2 dedos, catando milho, em menos de 1 minuto escreveu um texto mais ou menos do tamanho deste aqui, não me lembro mais sobre o que. A estagiária nunca mais reclamou. E depois disso eu pedi várias vezes para o Mu que fizesse aquilo de novo para que outras pessoas vissem como ele era rápido. Ele nunca me atendeu.

4 - NOSSO TIPO INESQUECÍVEL

O Mu era um grande conhecedor de tipografia, um verdadeiro expert nesta arte perdida.
Toda vez que o Mu pegava um job ele exercia em primeiro lugar o seu pensamento tipográfico. Que tipo ele ia escolher para compor o anúncio? Na era pré-Mac, pedir variações tipográficas de um título e um texto significava um volume bem grande de trabalho. Invariavelmente eu e os outros assistentes penávamos com isso, tinhamos que pedir os tipos em fotocomposição e compor o texto simulado com cópias fotográficas, quase sempre tendo que montar e remontar tudo várias vezes na base da faca, tesoura e cola benzina, abrindo o entrelinhamento e o espaço entre letras à mão, até satisfazer o Mu. Isso usando sempre três ou quatro famílias previamente escolhidas e não raro com pesos diferentes em cada uma. Às vezes ele se apaixonava por uma determinada fonte e a gente tinha que fazer de tudo com ela pra ele ver, eu ainda me lembro bem da paixão dele pela Benbo e do desprezo que teve pela Copperplate, que achava deselegantérrima. O louco é que na maioria das vezes todo esse esforço acabava num “vamos usar Futura Bold mesmo...” e isso me levava ao desespero. Porque diabos ele tinha me feito ter tanto trabalho pra acabar compondo tudo em Futura Bold? Só muito tempo depois eu saquei que ele estava era nos ensinando.
Eu e ele tinhamos uma brincadeira em comum, quando o job sobrava pra mim. Eu perguntava pra ele qual era o tipo inesquecível dele naquela semana, numa alusão à coluna “Meu tipo inesquecível” da antiga Seleções. Ele adorava. Da primeira vez que eu perguntei ele ficou surpreso e me perguntou como um garoto como eu conhecia aquela velharia, não lembro o que eu respondi, mas a bincadeira continuou. Até que teve um dia em que depois de uma dessas experimentações tipográficas com um tipo que parecia lindo no catálogo eu e ele chegamos a conclusão de que era melhor mesmo usar Futura Bold. Então eu disse assim: “É, Murilo, em certos tipos não se pode confiar...”. O Mu teve um ataque de riso e passou a repetir isso a torto e a direito, sempre que me via. Acho que ele gostou mesmo é porque eu não tinha dito aquilo sem pensar no óbvio duplo sentido da frase, que ele, sendo quem era, transformou numa coisa muito maior e melhor.