quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Extra! Extra!

Percival de Souza

Murilinho era repórter das Folhas (Manhã, Tarde, Noite), eu contínuo da redação.

As máquinas de escrever ficavam embutidas sob a tampa das mesas de madeira. Na hora em que quase todos escreviam, aquele barulho produzia um som incomparável, uma delícia como o cheiro de graxa na rotativa. Eu, adolescente, sabia que havia um time de repórteres de primeira linha no jornal. E Murilo sempre foi símbolo do bom texto, eterno produtor do espetáculo das palavras, esculpindo frases e parágrafos com esmero e capricho. E desenhando, quase solitariamente, naqueles tempos em que Maurício de Souza se empenhava mais nos desenhos do que em ser repórter policial do time comandado por Jarbas Lacerda e suas eternas gravatas borboletas. Havia, também, o chargista oficial da editoria de Política, Orlando Mattos, e o faz-tudo Nelson Coletti, irmão do chefe do Departamento Pessoal.

Meu sonho era ser, algum dia, como um daqueles repórteres que eu tanto admirava: José Hamilton Ribeiro, Neil Ferreira, Ennio Pesce, Roland Marinho Sierra... Comecei a produzir um jornalzinho de circulação interna, que - modéstia à parte - desbancou, numa parede dos fundos, o canto de avisos gerais, piadas e protestos, chamado "O Boato". Meu jornal trazia as fofocas da redação, tinha informantes nas reuniões dos editores, continha informações obtidas em primeira mão, "furos" até, e de vez em quando tinha o privilégio de contar com um desenho de Murilo Felisberto, que os produzia com certa rapidez, assobiando baixinho. Um contínuo pautava Murilo Felisberto! De repente, voltando de uma viagem a Londres, o diretor das Folhas, José Nabantino Ramos, mandou instalar um sino na redação. O sino tocava pontualmente em horários de reunião e fechamento.

Era réplica de um de redação inglesa. Contamos essa história em nosso jornal. Foi um sucesso.

Murilo, no início dos anos sessenta, trocou as Folhas pelo Jornal do Brasil, onde foi chefiar o Departamento de Pesquisa. O JB era a Bíblia de então. Ficamos felizes por Murilo: jovem e já no jornal-referência da imprensa brasileira.

Foi então que ele fez um artigo sobre o jornal do futuro. Era um texto agradável, antevendo avanços tecnológicos. Terminava dizendo que o chefe de redação seria uma espécie de robô. E, diariamente, o responsável pela manutenção chamaria o contínuo, no encerramento do expediente, e diria: "Por favor, Percival, não se esqueça de lubrificar o redator-chefe".

Todos se divertiram com essa história. Passei um telegrama para ele. Os termos: "Contínuo é a PQP". Acontece que estavam começando os anos de chumbo da ditadura militar e aquilo, suspeitou-se, poderia ser uma mensagem subversiva em código, circunstância que eu, já engatinhando no jornalismo, precisei explicar às autoridades competentes de maneira humorada e convincente.

Nossos destinos se encontrariam no Jornal da Tarde, que iríamos fundar em janeiro de 1966. Diretor, Mino Carta; Murilo, secretário de Redação. Era uma nova escola de texto e diagramação. Arte pura em dias memoráveis.

Murilo Felisberto tinha, entre outros, um dom especial: intuir aquela que seria uma grande matéria e desenhá-la antecipadamente. Certa vez, perguntou-me se seria possível fazer uma reportagem sobre tipos de crimes que mais acontecem ao longo dos meses do ano. Respondi que não havia pensado nisso, mas iria verificar. Descobri, na Polícia, que essas características existiam e se refletiam em variáveis de roubos, furtos, assassinatos, brigas, agressões. Murilo ouviu e horas depois me chamou para mostrar uma página desenhada, como título já pronto: "O Calendário do Crime". A arte lembrava mesmo um calendário, de janeiro a dezembro, com desenhos de ladrões, gente empunhando armas, pessoas estiradas no chão. Então, fiz a matéria com as informações necessárias, dentro do tamanho pré-determinado. Teve uma grande repercussão, até mesmo dentro da Polícia.

Outra reportagem assim, precedida de uma conversa sobre tráfico e consumo de drogas na alta sociedade, provocou um desenho de página anterior à matéria. E o título: "Society Cocaína". Foi tão bom esse título do Murilo que o usei para um livro, que escreveria anos depois.

Dizia-se, na redação, que aquele maço de jornais e revistas que ele sempre carregava como marca registrada pessoal, significavam a sua eterna busca por um texto impecável. Passou a circular uma história sobre tempos em que a Rainha - incrível, era este o apelido dele na redação - estava apaixonada por uma musa que, imaginávamos, seria irresistível. Tanto que tínhamos muita curiosidade em descobrir quem seria. E, segundo consta de fonte fidedigna, um amigo mais próximo foi merecedor das confidências de Murilo sobre o palpitar mais forte do coração. Ele teria descrito a moça com o encanto dos olhos, dos cabelos, da voz, da meiguice, as leveza dos movimentos. Arremate da confissão: "...e tem um texto!" Seria assim a mulher perfeita, segundo Murilo.

Por causa do bendito texto, ele contratou, na redação do JT, uma professora da Universidade de São Paulo, cuja tarefa diária era assinalar falhas de estilo, concordâncias se fosse o caso, e análise de texto nas matérias. A professora fazia isso em provas de páginas, todas marcadas implacavelmente com lápis vermelho. Murilo observava atentamente a cada análise crítica. Depois, chamava alguns dos editores e gargalhava de tanto divertir-se com as observações feitas. Diante dela, porém, sempre se mantinha circunspecto.

Em julho de 1972, ele escolheu algumas das reportagens que ele considerou as melhores da história do JT em seus primeiros dois mil números. E concebeu um suplemento, cujo título foi "Jornal da Tarde nº 2001". Elas foram reproduzidas e ilustradas - uma grande honra para os autores, senti-me orgulhoso de estar entre eles.

Algumas primeiras páginas históricas foram resultado do seu trabalho em examinar os assuntos principais do dia e definir, então, a capa do jornal. Uma delas era um jogo de camisas. Duas delas: uma de presidiário, para um industrial, apelidado de "Mau Patrão", condenado judicialmente. "Ponha essa camisa no mau patrão". Outra, de um jogador contratado por um dos times de futebol de São Paulo. "Vista a camisa de seu time nesse jogador". Uma criatividade incrível.

Quando a Polícia descobriu o lugar onde se fazia o encontro promovido pela União Estadual dos Estudantes (UNE), tínhamos nas mãos uma cobertura excepcional. O sítio em Ibiúna foi invadido pela Polícia ao amanhecer de um sábado. Tínhamos um repórter lá dentro e uma grande cobertura, de fora. O JT não circulava aos domingos. Fomos em comitiva ao apartamento do Murilo, sugerir que saísse uma edição extra. Ele não se entusiasmou, considerou inviável, argumentou que precisava um pouquinho mais de tempo para que a edição de segunda fosse impecável, imbatível. Seria mesmo. Mas saímos frustrados do apartamento, amaldiçoando a Rainha. Escrevemos sábado e domingo. E foi no domingo, ao me ver escrevendo que ele passou pela minha mesa e sorriu, como se dissesse que aquele tempo a mais era comprovadamente necessário. Provocou: "Eu não disse?" Minha reação foi de xingá-lo baixinho. Mas depois admiti que ele estava certo. O material era muito bom para ser fechado às pressas. E Murilo, atento na redação, demonstrava que sua indiferença era apenas aparente - mais uma vez estava sendo profundamente profissional.

Apareceu com seus jornais e revistas no lançamento de meu livro Eu, cabo Anselmo. Disse a ele que o seguinte, Autópsia do Medo, uma biografia do delegado Sérgio Fleury, seria ainda melhor. Ele sussurrou, como se aconselhando: "Calma, calma..." De fato, não me apressei. Segui as instruções da nossa Rainha.

Murilo Felisberto, no meu caso, foi a história de uma amizade de quase cinqüenta anos. Isso mesmo: meio século. De moleque a adulto. De contínuo a repórter. Murilo transformou-se em sua própria notícia.

Quando desaparece um jornalista como ele, nós morremos um pouco - não só porque os sinos dobram por todos, mas em razão de que haverá menos criatividade. Menos liberdade. Menos razão.

No momento supremo da prestação de contas da vida de Murilo Felisberto, podemos assinalar que o excepcional jornalista buscava ardentemente a perfeição. E conseguiu, tantas vezes, produzir obras que podem ser consideradas respeitas. Assim como se a folha de uma árvore pintada por um pincel que chegara à perfeição ganhasse vida de repente numa tela, encerrando nesse momento o espírito de todas as folhas.

Um jornalista como Murilo Felisberto, através de seus trabalhos realizados com tanta dedicação, arte e paixão pela profissão, encerra em si o espírito de todos os jornalistas do mundo.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

De lead em lead

Moacir Japiassú

Numa tarde de março de 1963, quando comuniquei aos colegas do Correio de Minas que Antonio Beluco Marra telefonara para avisar que a Última Hora me aguardava para integrar o copidesque de uma de suas inúmeras edições, Fernando Gabeira me entregou o telefone de um amigo:

“É o melhor jornalista de São Paulo, pode te ajudar muito”, disse-me. Telefonei, marcamos encontro.

Tratava-se de um rapaz magrinho e encurvado, sorridente, mineiro de Lavras, amigo de Gabeira desde os primeiros tempos em Juiz de Fora. Trabalhava na sucursal da Manchete. Eu o encontrei no “Clubinho”, um bar com aparência de bunker que havia na galeria do cine Metrópole e reunia boa parte da fauna paulistana da época. Sobre a mesa do solitário Murilo espalhavam-se jornais e revistas estrangeiros e jaziam, ainda intocados, um copo de vinho e uma fatia de queijo brie. O aparelho de som espalhava pelo salão lotado e ruidoso uns fragmentos da Ária na Corda de Sol.

Murilo me recebeu como se tivéssemos estudado juntos no Granbery de Juiz de Fora. Em minutos, éramos velhos amigos. Ele falava baixinho, em meio àquela balbúrdia que desrespeitava os sons de Bach, de modo que, de vez em quando, eu levantava a voz e perguntava: O quê?!?! Quem?!?!, Quando?!?!, Onde?!?!, Como?!?! Por quê?!?! -- e assim, de lead em lead, passamos a construir nossa amizade.

Nossos encontros eram ali ou no João Sebastião Bar, no Sirocco, no Gigetto, onde lhe preparavam uma salada de alface com algumas gotas de vinagre e um fio de azeite. Murilo quase não comia, além da indefectível fatia de queijo com vinho tinto. Apareciam garotas bonitas, que não o interessavam, porque o sóbrio comensal só pensava em jornalismo e garantia que nenhuma delas merecia atenção, porque não sabiam escrever.

Certa noite apareceu um amigo, cujo nome esqueci; contou que deixara a mulher por uma repórter do Diário Popular. Murilo ergueu o indicador, num gesto muito seu, que anunciava uma sentença recheada de seriedade: “A moça tem bom texto?”, perguntou ao apaixonado.

Quando lhe disse que deixaria São Paulo e a Última Hora para aventurar-me no Rio de Janeiro, pediu-me paciência, pois eu estava há apenas cinco meses na cidade. Estaria mal na UH? Não, estava bem até demais, a trabalhar sob as ordens do José Elias, excelente e honesto editor de política; eu apenas não suportava mais ter que vestir paletó e gravata para ir ao cinema, não agüentava o frio e estava cheio do edifício onde morava com um grupo de companheiros de trabalho, famoso balança-mas-não-cai escondido na Rua Paim, bem atrás do Teatro Maria Della Costa.

Durante alguns meses não nos vimos nem trocamos carta ou nos falamos, numa época em que era preciso esperar horas, dias, semanas por uma mísera linha telefônica. Porém, no final de abril ou maio de 1964, quando respirávamos os poluídos ares do golpe militar, a voz de Murilo me chegou pelo telefone; convidado por Alberto Dines, chefe de Redação do Jornal do Brasil, que apreciava seu trabalho na Manchete, estava de mudança para o Rio. “Vou assumir a editoria de Pesquisa e quero você comigo”, anunciou, para minha alegria, eu que penava na reportagem da sucursal do Diário de S. Paulo. Ia rever o amigo, trabalhar com ele num grande jornal e talvez ganhar, finalmente, um bom salário.

Murilo criou o verdadeiro Departamento de Pesquisa, contratou alguns jovens talentos, batalhou por salários dignos. Foi o menos exigente dos chefes que tive na vida, porque não ligava para horários, falava sempre baixinho, naquele mesmo tom emitido nas mesas de bar, e bastava que lhe entregassem um bom texto para esquecer até ofensas pessoais.

Agora, nosso Quartel General de todas as noites era o Bar Luís, na Rua da Carioca, tradicional abrigo de boêmios que precisavam tomar mais uma ou apenas forrar o estômago com salsichas e maionese de batatas, iguarias mais requisitadas do farto cardápio alemão. Sem contar, é claro, o chope sempre bem tirado e algumas doses de Steinhäger para corrigir o paladar.

No início de uma noite de inesquecíveis revelações, Murilo desapareceu da Pesquisa e faltou ao encontro na Rua da Carioca. No dia seguinte, durante o almoço no restaurante do JB, confessou: estava apaixonado por uma donzela que morava na Rua da Matriz, em Botafogo. Teria bom texto? Na verdade, nem jornalista era e o encantamento havia nascido ao primeiro olhar.

Então esse homem de 25 anos, que aparentava um pouco mais, talvez pelo andar retraído e a barbicha em formação, entregou-se a arrebatamentos de adolescente, e certa madrugada, embriagado de vinho e paixão, atirou às ondas de Copacabana a aliança que denunciava o noivado já antigo com moça de São Paulo. Foram semanas de justa aflição para ele e os amigos, os quais só enxergavam avisos de perigo naquela via de mão única – não havia correspondência àquele tão repentino desvario.

Murilo Agostini Felisberto, assim identificado na etiqueta colada à mala de viagem, voltou para São Paulo, casou-se com aquela da aliança ao mar e aliviou o peito sobre a mesa de trabalho no recém-criado Jornal da Tarde, onde nasceram as mais belas páginas da imprensa brasileira dos anos 60.

Quando nos encontramos novamente, meses depois de sua volta a São Paulo, Murilo me fez uma sólida proposta de trabalho. Eu tentava respirar o irrespirável ar da Bloch Editores, quase aceitei, porém assaltaram-me os enregelados fantasmas de 1963, da Rua Paim e adjacências, e ainda a execrável figura do lanterninha do cinema ordenando-me que vestisse o paletó.

Nas viagens ao Rio, sempre jantávamos juntos e a conversa nunca estava longe do que ocorria nas redações e oficinas. Uma bela primeira página nos ocupava até à sobremesa. Numa dessas noites, final de 1968, quando repassávamos as melhores capas sobre o AI-5, numa mesa do Antonio’s, acrescentei à conversa um dos poucos temas capazes de, digamos, modificar o cardápio murilista: a paixão pelas mulheres. Disse-lhe que iria me casar com a repórter Marcia Lobo, ex-Jornal do Brasil, agora minha companheira na revista Pais&Filhos; ele ergueu o indicador e aprovou: “Essa tem bom texto”.

Nos meses subseqüentes, ouvi outros convites do amigo, convites que tentavam o casal; havia abrigo no Jornal da Tarde para Marcia e eu. No final de 1969, recebi passagem de avião para conhecer o jornal e os futuros companheiros, entre os quais alguns bons amigos dos tempos do Correio de Minas. Voltei ao Rio disposto à mudança e Marcia gostou da idéia. Porém, resolvemos pensar e pensar e pensar, até que Jaquito, sobrinho de Adolpho Bloch, fez o favor de me demitir, indignado porque eu, chefe de Redação da revista, dera folga à equipe na sexta-feira da paixão de 1970.

Um mês depois estávamos em São Paulo, à véspera da Copa do Mundo, que o JT prometia cobrir com edições especiais e diárias. Fui trabalhar na editoria de esportes; e como, apesar do prometido, não existia vaga para Marcia, ela passou a fazer freelance na editoria de Variedades. Era muito, muitíssimo o trabalho num vespertino que ignorava horários, mas o casal sempre encontrava tempo para a vida de recém-casados. Ao convívio com Murilo, depois do expediente enlouquecido, preferíamos namorar em cenários mais românticos. Habituado aos séquitos, Murilo não gostou.

O divórcio entre Murilo e eu começou com o absenteísmo do outrora preferido. Tudo nos afastava e um dia, depois de séria discussão a respeito de uma reportagem produzida na sucursal do Rio sobre os vinte anos do atentado da Rua Tonelero, deixamos de nos falar. Algum tempo depois, nem nos olhávamos.

Mesmo assim, o pessoal da Redação achou bastante esquisita minha demissão do jornal, em 1977, a propósito de “contenção de despesas”, medida que atingiu vários companheiros. Marcia Lobo, que algum tempo antes havia conquistado a prometida vaga na Variedades e nada tinha a ver com minha desavença com Murilo, fazia parte da lista. Este foi o detalhe que denunciou o caráter pessoal da demissão e provocou justo desalento.

Alguns anos mais tarde, Marcia e eu bebíamos um drinque no bar-restaurante Pirandello, na Rua Augusta, quando Murilo surdiu ao lado de nossa mesa, estendeu a mão e disse, com a voz mais vigorosa do que o normal: “Acho que está na hora de fazermos as pazes”. Marcia fez que nem ouviu, mas eu, em nome da velha amizade, do muito que fizéramos juntos, em nome de tantos leads e sub-leads, apertei a esquálida mão oferecida.

Éramos amigos novamente.

Eterno Murilo

Antonio Manoel Alves de Lima

Do mesmo jeito que ele surgia da mesma forma partia sem ninguém perceber, discretamente, mas desta vez, infelizmente, para sempre.

Sua presença para mim sempre foi excitante, um previlégio de estar perante uma pessoa extremamente inteligente, refinada, tímida mas ao mesmo tempo amorosa.

Ao contrário do que se pode pensar, apesar da crença das "fofocas" que Murilo gostava de estar a par, no fundo era apenas para se dar uma dinâmica aos assuntos corriqueiros do dia a dia.

Contudo não conheci uma pessoa na minha vida mais discreta, leal e bom conselheiro como Murilo.

Sou muito grato a ele, pelo que fez a mim e aos meus irmãos principalmente a Ana Carolina, Alfredo e Meméia e posso dizer isso também pela minha sobrinha Michelle, e pelo meu irmão Jorge, além de me ter dado uma irmã maravilhosa, sua filha legítima Carlota.

Para mim e para tantos ele deixará eternas saudades, e posso dizer que sempre ele estará nos meus pensamentos e orações e aquele sorriso NOBRE e MAROTO que NUNCA MAIS esquecerei.

Com extrema admiração afeto e gratidão à você Murilo, Antonio Manoel, Lorenza, Lavinia e Ottavia ALVES DE LIMA

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Querido Murilinho*

Mauricio Kubrusly

Não é qualquer império que tem uma Rainha chamada Murilo. Ou vice versa. Na redação do JT, nós tínhamos. Ainda na rua Major Quedinho, aquela mistura de jornal e rádio com um hotel no meio, a chefia não tinha uma sala exclusiva. E isso, sem querer, ajudou muito - o avesso de tantas empresas, inclusive jornalísticas, com seu espaço dividido em baias e salas estanques.

O Estadão, que ficava do outro lado do Corredor do Tempo, oferecia privacidade aos comandantes da redação. Não sentíamos inveja - e até mesmo evitávamos cruzar o tal corredor, com receio de envelhecer alguns meses naqueles segundos. A crença quase unânime era: o retorno ao JT não representava desenvelhecer de imediato. E os idosos não eram bem-vindos no Dia do Acepipe, que marcava início da noite de sexta, quando a alegre equipe da Variedades armava um piquenique junto da porta do banheiro. (As páginas destinadas a artes, espetáculos, comportamento foram se multiplicando - felizmente! - sob o cetro da Rainha e o trabalho avançava pela madrugada). O Dia do Acepipe obedecia a regras: cada um trazia um pratinho de doces ou salgados. No final do convescote, todos votavam, pra eleger os melhores acepipes. Depois da apuração, quem tinha levado o melhor doce ou o melhor salgado ficava liberado de trazer petiscos na sexta seguinte. E o festivo lanchinho era exclusivo, apesar das investidas dos vizinhos, do Esporte.

E Elazinha gostava de rabiscar desenhos toscos durante as reuniões na mesa da Rainha, num dos cantos da redação. (Lembra que a chefia não tinha sala fechada?) Todos podiam ouvir o que se discutia e decidia, não havia porta pra fechar. A Rainha - de terno, muitas vezes de colete e gravata, um contraste radical com o visual da moçada das várias editorias - a Rainha desenhava também. A diferença é que ela sabia, era absurdamente informada a respeito de tudo do planeta das artes gráficas.

Era capaz de levar um tempo espichado antes de optar por esta ou aquela família de letras. O desenho da cada página do JT era uma de suas saudáveis obsessões. Aprendia-se muito acompanhando o seu fazer. E o mesmo valia para títulos, escolha das fotos, ilustrações, a sacada original no jeito de abordar o inevitável lugar comum da rotina de qualquer redação. Afinal, se bobear, o jornal repete, todos os anos, uma manchete assim: Não faltará peixe na Semana Santa. Todo ano tem Semana Santa e todo dia tem jornal. Mas o império da Rainha não tropeçava nessa preguiça. Afinal, se fazia naquele meio andar um diário que sacudiu a imprensa de todo país. Imagine: era um tempo em que era possível distribuir um jornal à tarde, com notícias da manhã, numa São Paulo com milhões de automóveis a menos. E a Rainha, às vezes, vinha pela manhã apenas para desenhar a primeira página. Mas também sumia durante outro dia. Coisas de majestade...

Era sofisticadíssima nas leituras, uma revelação por semana. Quem estava por perto recebia dicas e toques preciosos. Conversava sobre música clássica com Elazinha, uma paixão comum. Graaande Rainha... que se divertia com a mania de apelidos que tomava a redação do JT. Muitos foram batizados pelo Satã, mestre no apelido irrefutável. Fernando B. foi uma das vítimas - que acabou se tornando apenas B.

Claro que um ambiente nada ortodoxo assim só era possível a partir do comportamento da chefia. Sorte nossa, que estávamos lá. O jornal chegava às bancas direitinho, já convivendo com ensaios de imitação ali e aqui. E no meio de uma redação não convencional redação como aquela, o editor chefe não repetia a rotina padrão. Às vezes, não comparecia à reunião de pauta, ou virava a noite, ou mudava toda a diagramação em cima do fechamento na gráfica, ou sumia... temperamental como uma rainha.

Daí, o apelido do querido Murilinho .

* sim, muitos de nós o chamávamos assim, no diminutivo

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Poucos e bons

Carmo Chagas

Pelo segundo ano do JT, eu já estava informalmente encarregado do noticiário policial. Informalmente porque o Ulisses, meu editor, não me passou essa função. Aconteceu com o correr de cada dia, de cada fechamento. As matérias policiais vinham naturalmente parar na minha mão. De um ponto em diante comecei a me interessar também pela pauta policial, de modo que conhecia cada assunto desde a origem até a hora de copidescar o texto, fazer as legendas, os títulos, paginar.

Nesse processo, num dado momento trabalhei com uma das melhores equipes da reportagem policial de toda a imprensa brasileira. Faço essa afirmação não por mim, claro, mas pelos repórteres integrantes dessa equipe. Estavam lá: Percival de Souza, Octavio Ribeiro, Inajar de Souza, Antônio Carlos Fon e, como setorista no DEIC, Valdir Sanches. Quem conhece a reportagem brasileira confirma o que estou dizendo aqui. Eles compuseram uma das melhores equipes de reportagem policial já reunida por qualquer jornal brasileiro. Esse time ajuda a explicar, muito, o sucesso do JT nos primeiros anos.

Foi nessa época que me dei conta da importância do trabalho de equipe, em jornalismo. Conversávamos sobre isso, nos bares e botecos das vizinhanças do jornal, em encontros com colegas de outras redações. Um dos temas: quem tinha mais importância para o JT, o Mino Carta ou o Murilo Felisberto? O Mino era o número 1, o chefe da redação. Diagramava a primeira e as páginas mais importantes de cada dia. Comandava a operação com classe e algumas explosões de temperamento italiano. Mostrava a importância da ilustração para a boa edição de uma reportagem. Ensinava o cuidado com o uso exato e adequado dos termos e conceitos: se damos nota 10 para um cantor como o Roberto Carlos, que nota daremos ao ouvirmos um Caruso? Além de exigente, o jornalista precisa ser criterioso ao noticiar, ao analisar, insistia o Mino.

Já o Murilo, como número 2, secretário da redação, substituía o Mino nas ausências, também diagramava páginas importantes e insistia na necessidade de escrever direito, além de bonito, de apurar fundo, de trabalhar firme e com dedicação. Mas o grande mérito dele, no comecinho do jornal, tinha sido a formação da equipe. Ele conhecia os ninhos de talentos pelo Brasil. Tendo trabalhado antes no Rio, contava com aquela porosidade que então caracterizava o jornalismo carioca. Porque fora Capital e Corte até muito pouco tempo antes. Porque fora sede do Diário Carioca dos anos 40, matriz do novo jornalismo brasileiro. Porque era sede do Jornal do Brasil, marco maior do novo jornalismo nacional, Bíblia de todos nós.

Por tudo isso o Rio, mais que São Paulo, sabia na época onde estavam pelo país os jornalistas mais talentosos, os gênios mais promissores. E o Murilo sempre teve a mais fina percepção para localizar os bons valores. A maioria dos integrantes da redação do JT estava ali pelas mãos do Murilo. Então, a gente discutia: quem tem mais importância para o jornal, o Mino ou o Murilo? O que vale mais: dirigir uma redação ou fornecer os talentos dessa redação?

Participei de várias dessas tertúlias. Pensei muito sobre essa questão. Cheguei à conclusão de que uma função não existe sem a outra. De nada adianta reunir um timaço, apenas, sem contar com quem mantenha esse grupo unido e entusiasmado. Além do mais, devo registrar que vários dos principais integrantes da equipe estavam ali por obra do Mino. E que o Murilo, além de exímio garimpador de talentos, também contribuía para manter o time.

Uma outra discussão surgiu diante de mim pela primeira vez, naqueles tempos: o que é mais importante para um jornal, a opinião ou a informação?

Quem touxe o tema foi o Murilo, numa das ocasiões em que substituiu o Mino durante alguns dias (não me lembro, aliás, de o Mino tirar férias; ficava fora uns quatro ou cinco dias, muito esporadicamente). Além de tocar a edição de cada dia, o Murilo teve também que comparecer a uma reunião de diretoria com a participação do pessoal do Estado. Parece que, em dado momento, alguém disse que faltava ao JT o lastro que uma opinião confere. Aí outra pessoa argumentou que, no caso de um vespertino jovem, com noticiário voltado para a efervescência paulistana, a informação interessava mais. Desse ponto em diante todos passaram a discutir a prevalência entre opinião e informação.

Para nós, safra nova da profissão, não havia o que discutir. A informação em primeiro lugar. Ponto final. De minha parte, naquela época, pensava que a opinião só servia para atrapalhar. Às vezes tocava a mim baixar a página dos editoriais. Morria de vontade de reescrever aquilo tudo. Aqueles períodos longos demais, a enorme distância entre sujeito, verbo e objeto, o estilo tortuoso de expor um ponto de vista, tudo aquilo me parecia torturante para o leitor. Por que tanto meandro, por que tanta cerimônia, em vez de ir direto ao tema?

Mas a minha resistência aos editoriais não se devia apenas ao trabalho que às vezes me davam. Na verdade, eu nunca lia editoriais. Nem os do Jornal do Brasil, tão reverenciados em toda roda de jornalistas. Eu estava convencido, também, de que pouquíssimos leitores se davam esse trabalho de ler a opinião de seu matutino ou vespertino.

Sei, hoje, que continuam pouquíssimos os leitores de editoriais. Mas aprendi que os editoriais são escritos exatamente para esses pouquíssimos. Os empresários mais sólidos, os políticos mais perspicazes, os economistas mais consistentes, os intelectuais mais atentos constituem a elite interessada na opinião que vem todo dia impressa na imprensa. Ali se encontram as reações às notícias que mais preocupam, mais entusiasmam. O estilo do texto, para essa gente, conta muito; mas bem menos que a substância, o núcleo do pensamento exposto naqueles textos. A massa de leitores vai atrás das manchetes, das notícias mais quentes de cada dia. Atiram-se com sede à informação. A elite vai atrás das páginas de opinião com a mesma sede.

Naquele tempo, porém, nós da nova safra ainda não estávamos prontos para enxergar a importância da opinião. Escutamos como piada o relato do Murilo. Rimos e voltamos para o ofício de trabalhar cada legenda, cada título, cada texto, cada página com o maior esmero, com o maior carinho.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Dez vezes Murilo

Guilherme Duncan

Eu poderia começar assim: “Murilo Felisberto foi um gênio da criação gráfica, um editor de mão cheia, um pauteiro instigante, um sócio da confraria do bom texto, um tituleiro clássico. Sua trajetória profissional, ainda que entremeada por passagens pela Publicidade, brilhou notadamente no Jornalismo, alcançando o ponto mais alto na época em que pela primeira vez dirigiu a redação do Jornal da Tarde, quando consolidou o êxito de uma publicação que iria influenciar mudanças em toda a Imprensa brasileira”.

Estaria correto, Murilo Agostini Felisberto foi tudo isso mesmo.

Eu poderia também acrescentar alguns toques sobre sua personalidade, os desenhos minimalistas que rabiscava, as amizades leais e implicâncias pessoais (a propósito, por conta de uma certa caturrice acabou brigando, definitivamente ou não, com muita gente boa). Depois, viria o relato de seus principais trabalhos e realizações.

Uma estrutura de texto que agradaria ao próprio, se bem o conheci.

Mas não vou fazer desse jeito. Outros autores podem escrever com maior propriedade nesses termos. Quero simplesmente homenagear o Murilo contando algumas histórias que possam trazê-lo de volta, ainda que por fugazes momentos, à memória dos leitores que o conheceram. São episódios que lembram um pouco seu humor, suas manias e sua incrível capacidade de conhecer, de nome ou pessoalmente, gente de redações do Brasil e até do Exterior.

Além de tudo, se ele fosse o editor, tenho certeza de que iria escolher também esse formato.

1

Há quase 45 anos, Murilo já perseguia e obtinha informações sobre o que acontecia e “quem era quem” nas redações. Desculpem se esta é uma história em que o autor aparece bem, mas as coisas se passaram assim.

Fins de 1963 ou início de 1964. A Sucursal do “Jornal do Brasil” em São Paulo, na Barão de Itapetininga, estava recém-formada, com uma jovem e talentosa equipe de redação com Rolf Kuntz, Carlos Brickmann, Miguel Jorge, Laerte Fernandes, Ebrahim Ramadan, Bernardo Lerer, Antônio Carlos Schiavetto, Helio Fabri e certamente outros cujos nomes completos me escapam. Eu também era repórter lá. Na fotografia, Wilson Santos e Manoel Motta.

O JB vivia sua época de ouro. Murilo reinava no famoso Departamento de Pesquisa, no velho prédio da Av. Rio Branco, no Rio. Ele ainda não conhecia pessoalmente a maioria de nós.

Murilo foi visitar a sucursal. Era uma visita importante, provavelmente a primeira de alguém vindo da redação da Matriz. Imediatamente, formou-se uma rodinha em torno dele. A curiosidade era recíproca. A conversa acabou se encaminhando para o tema que o Murilo iria continuar debatendo nas quatro décadas seguintes: quem era melhor do que quem nas redações. Até que o grupo fez uma pergunta difícil de responder: qual era a melhor sucursal do JB, a de São Paulo ou a de Belo Horizonte? Ele não se fez de rogado diante de nossa presença: na sua opinião, a sucursal de BH era melhor. E explicou o motivo de sua preferência. No final, emendou uma ressalva:

- Mas a equipe de vocês é excelente. Tem um rapaz aí, por exemplo, que está começando agora, mas já li coisas dele, é muito bom. O Guilherme.

Era eu, um desconhecido iniciante. Evidentemente, o Murilo não sabia que eu estava presente. Seguiram-se as apresentações, nós dois até meio constrangidos. Foi o mais significativo elogio profissional que recebi na vida.

2

Aproximadamente uma década passada, na fase Jornal da Tarde, estávamos jantando após o fechamento. Murilo chegou ao restaurante já com aquele sorriso de “rainha”, que indicava novidades. E começou a falar, gesticulando como era seu hábito, com a mão direita balançando em movimentos curtos, o indicador em riste e os outros dedos fechados:

- Já souberam como terminou a disputa na redação?

Não tínhamos a menor idéia. Que disputa, que redação?

Cuidadosamente, depositou numa cadeira a pilha de jornais e revistas que carregava, e contou:

- No “New York Times”, ontem. Quem assumiu a Política foi ... (e declinava nome e sobrenome), atual responsável pelo noticiário de Cidade, um grande profissional, vai dar uma melhorada na editoria. Com isso, o comando da redação se fortalece; além de tudo, o ... (citava o nome do editor que caiu) era um cara muito mal humorado...

E por aí foi, falando com tal autoridade que parecia ter saído há pouco da redação do NYT, cuja sede só podia estar localizada ali perto, na Paulista ou numa daquelas alamedas que descem para os Jardins.

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Quem, por acaso, conseguisse bisbilhotar a pilha de jornais e revistas que Murilo freqüentemente carregava, certamente encontraria lá exemplares do “New York Times”, da “New Yorker”, “Graphis”, “Communications Arts”, “Le Monde”, “Time”, “Financial Times”, entre outros, para ficar só na lista das publicações estrangeiras mais compradas por ele (o livreiro Paulo, da Bux, era seu fornecedor). Devia gastar um dinheirão, mas, naquela época ainda distante da Internet, isso o mantinha atualizadíssimo sobre o movimento editorial nos principais centros do primeiro mundo.

Ai de quem ousasse mexer numa pilha intocada, nem que fosse apenas para ver as capas. Corria o risco de rompimento de relações.

Nesse quadro, certa vez (pouparei detalhes, mesmo porque a memória não ajuda) fui testemunha de uma cena de quase terror. Na mesa de um restaurante da moda, juntou-se a nós um conhecido do Murilo. Uma autoridade pública – municipal, creio eu. Bem falante, expunha com ênfase uma situação qualquer quando, de repente, para ilustrar sua argumentação, sacou de uma caneta e passou a escrever nas margens dos jornais da pilha, colocada sobre a mesa. Lívido, Murilo assistia à cena estupefato, sem qualquer poder de reação.

Depois do jantar, já fora do restaurante, é que pudemos perceber que os jornais maculados haviam sido deixados lá. Murilo foi comprar outros exemplares.

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Ao mesmo tempo em que era capaz de discorrer judiciosamente sobre as qualificações profissionais de colegas, não dispensava o lado frívolo das informações – ou, mais exatamente, uma boa fofoca. Quem estava namorando quem, em que redação, quem era a musa do momento e coisas assim.

Em meados dos anos 80, no Rio, numa reunião com diversos participantes, pedi a opinião dele sobre determinada jornalista considerada (por mim também) de muita competência – e que ele conhecia. Sua resposta ao plenário:

- Todo mundo diz que são as pernas mais bonitas da redação do JB.

Depois é que falou (bem) do trabalho dela.

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A propósito, no meio dessa conversa de saber quem era quem, quem era bom e quem não era, o Murilo costumava fazer uma brincadeira concedendo títulos imaginários de “melhor jornalista”, partindo do princípio de que cada um de seus amigos (ou não) deveria ser o melhor jornalista pelo menos da cidade onde nasceu.

Ele próprio se intitulava o melhor jornalista de Lavras (MG), sua terra natal. Pelo mesmo critério, Fernando Mitre era o melhor jornalista de Oliveira; Carmo Chagas era o melhor de Inhapim; Kleber de Almeida, o melhor de Guanhães; Rolf Kuntz, o de Antonina – e assim por diante. A mim, dizia que eu só não era o melhor jornalista de Campos (RJ), porque tinha na praça o Oldemário Touguinhó – grande repórter, saudoso amigo.

Alguns, cuja procedência não era o interior ou em cuja cidade natal habitavam conterrâneos mais famosos, conseguiam o título de “melhor jornalista da rua onde moravam”; outros podiam ser o melhor da rua, mas com restrições: “só do lado par, no trecho que vai da casa dele à esquina”.

Certa vez, durante uma avaliação desse tipo, comentou sobre um casal, ambos jornalistas, naturalmente morando juntos:

E o Fulano, hem? Não consegue ser o melhor jornalista nem na própria casa...

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Nos anos 70, um grupo de jovens jornalistas publicou um livro de contos intitulado “Isto o jornal não conta”. Eram diversos autores, quase todos repórteres do próprio JT que o Murilo chefiava, adentrando o perigoso terreno da ficção, cada um contando sua história. Murilo leu (ou, pelo menos, disse que leu) o livro e depois sentenciou, naquele estilo de “cometo uma injustiça mas não perco a piada”:

- É, isto jornal não conta mesmo. O meu, então, nem pensar ...

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Um editor do JT sugeriu a contratação de certo repórter prestes a deixar o jornal onde trabalhava. A justificativa era a de que a concorrência estava fortalecendo seu reportariado e era preciso acompanhar esse movimento. Como Murilo desaprovava o indicado, deu uma daquelas respostas típicas de quando queria dizer 'não' sem muitas explicações:

- Faz o seguinte: vê se indica esse nome para a concorrência. Se der certo, ele não fica desempregado e nossa equipe pula na frente.

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Sua paixão era sem dúvida o Jornalismo. Numa das vezes em que estava trabalhando em Publicidade, Murilo foi convidado por mim e pelo Ruy Portilho para integrar a Comissão de Julgamento do Prêmio Esso de Jornalismo, em 1996. Ele foi escolhido porque, antes de tudo, era uma autoridade na profissão e, mesmo temporariamente afastado das redações, continuava acompanhando o movimento editorial; além disso, tinha experiência como jurado do Prêmio Esso em anos anteriores, com exemplar atuação.

Sua resposta nos comoveu:

- Este convite de vocês foi a melhor notícia que recebi nos últimos tempos.

Era a volta dele, ainda que breve, para uma convivência e um ambiente que certamente o faziam mais feliz.

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Quem se lembrou dessa foi o Fernando Portela, repórter dos bons, escritor/editor pernambuco-paulistano que dá gosto de ler.

Foram avisar que determinado repórter, não um dos preferidos do Murilo, contou ter recebido uma proposta de suborno em plena apuração da reportagem que fazia.

- Murilo, sabia que estão tentando comprar o Fulano de Tal?

E ele, sem tirar os olhos do espelho de página que preparava: “Vende, vende...”

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No período de sua derradeira passagem pelo JT, um dia fui visitá-lo na redação. Encontrei-o inconsolável por causa de uma matéria que havia pautado sobre uma garota de rua que queria ser top model. Não me recordo o motivo dessa moça ter aparecido no noticiário nem seu nome, mas isso não importa muito. A idéia do Murilo era vestir a menina, usando diversos modelos, fotografá-la em locais diferentes da cidade e contar a história. A matéria não foi feita a tempo e um outro jornal se antecipou, publicando algo parecido. O furo derrubava a pauta do Murilo.

- Bill, não existem mais repórteres. Os que estão hoje aí só têm ouvidos!

Estava meio triste, meio zangado. Conversamos mais um pouco, eu disse que era hora de voltar para o Rio, ele me abraçou e entrou na sala para a reunião da tarde. Foi nosso último encontro, quarenta e tantos anos depois daquele elogio do qual jamais me esqueci.

Guilherme Duncan, jornalista, integrante da equipe pioneira do JT, atualmente coordenador do prêmio esso de jornalismo