terça-feira, 14 de outubro de 2008

Dez vezes Murilo

Guilherme Duncan

Eu poderia começar assim: “Murilo Felisberto foi um gênio da criação gráfica, um editor de mão cheia, um pauteiro instigante, um sócio da confraria do bom texto, um tituleiro clássico. Sua trajetória profissional, ainda que entremeada por passagens pela Publicidade, brilhou notadamente no Jornalismo, alcançando o ponto mais alto na época em que pela primeira vez dirigiu a redação do Jornal da Tarde, quando consolidou o êxito de uma publicação que iria influenciar mudanças em toda a Imprensa brasileira”.

Estaria correto, Murilo Agostini Felisberto foi tudo isso mesmo.

Eu poderia também acrescentar alguns toques sobre sua personalidade, os desenhos minimalistas que rabiscava, as amizades leais e implicâncias pessoais (a propósito, por conta de uma certa caturrice acabou brigando, definitivamente ou não, com muita gente boa). Depois, viria o relato de seus principais trabalhos e realizações.

Uma estrutura de texto que agradaria ao próprio, se bem o conheci.

Mas não vou fazer desse jeito. Outros autores podem escrever com maior propriedade nesses termos. Quero simplesmente homenagear o Murilo contando algumas histórias que possam trazê-lo de volta, ainda que por fugazes momentos, à memória dos leitores que o conheceram. São episódios que lembram um pouco seu humor, suas manias e sua incrível capacidade de conhecer, de nome ou pessoalmente, gente de redações do Brasil e até do Exterior.

Além de tudo, se ele fosse o editor, tenho certeza de que iria escolher também esse formato.

1

Há quase 45 anos, Murilo já perseguia e obtinha informações sobre o que acontecia e “quem era quem” nas redações. Desculpem se esta é uma história em que o autor aparece bem, mas as coisas se passaram assim.

Fins de 1963 ou início de 1964. A Sucursal do “Jornal do Brasil” em São Paulo, na Barão de Itapetininga, estava recém-formada, com uma jovem e talentosa equipe de redação com Rolf Kuntz, Carlos Brickmann, Miguel Jorge, Laerte Fernandes, Ebrahim Ramadan, Bernardo Lerer, Antônio Carlos Schiavetto, Helio Fabri e certamente outros cujos nomes completos me escapam. Eu também era repórter lá. Na fotografia, Wilson Santos e Manoel Motta.

O JB vivia sua época de ouro. Murilo reinava no famoso Departamento de Pesquisa, no velho prédio da Av. Rio Branco, no Rio. Ele ainda não conhecia pessoalmente a maioria de nós.

Murilo foi visitar a sucursal. Era uma visita importante, provavelmente a primeira de alguém vindo da redação da Matriz. Imediatamente, formou-se uma rodinha em torno dele. A curiosidade era recíproca. A conversa acabou se encaminhando para o tema que o Murilo iria continuar debatendo nas quatro décadas seguintes: quem era melhor do que quem nas redações. Até que o grupo fez uma pergunta difícil de responder: qual era a melhor sucursal do JB, a de São Paulo ou a de Belo Horizonte? Ele não se fez de rogado diante de nossa presença: na sua opinião, a sucursal de BH era melhor. E explicou o motivo de sua preferência. No final, emendou uma ressalva:

- Mas a equipe de vocês é excelente. Tem um rapaz aí, por exemplo, que está começando agora, mas já li coisas dele, é muito bom. O Guilherme.

Era eu, um desconhecido iniciante. Evidentemente, o Murilo não sabia que eu estava presente. Seguiram-se as apresentações, nós dois até meio constrangidos. Foi o mais significativo elogio profissional que recebi na vida.

2

Aproximadamente uma década passada, na fase Jornal da Tarde, estávamos jantando após o fechamento. Murilo chegou ao restaurante já com aquele sorriso de “rainha”, que indicava novidades. E começou a falar, gesticulando como era seu hábito, com a mão direita balançando em movimentos curtos, o indicador em riste e os outros dedos fechados:

- Já souberam como terminou a disputa na redação?

Não tínhamos a menor idéia. Que disputa, que redação?

Cuidadosamente, depositou numa cadeira a pilha de jornais e revistas que carregava, e contou:

- No “New York Times”, ontem. Quem assumiu a Política foi ... (e declinava nome e sobrenome), atual responsável pelo noticiário de Cidade, um grande profissional, vai dar uma melhorada na editoria. Com isso, o comando da redação se fortalece; além de tudo, o ... (citava o nome do editor que caiu) era um cara muito mal humorado...

E por aí foi, falando com tal autoridade que parecia ter saído há pouco da redação do NYT, cuja sede só podia estar localizada ali perto, na Paulista ou numa daquelas alamedas que descem para os Jardins.

3

Quem, por acaso, conseguisse bisbilhotar a pilha de jornais e revistas que Murilo freqüentemente carregava, certamente encontraria lá exemplares do “New York Times”, da “New Yorker”, “Graphis”, “Communications Arts”, “Le Monde”, “Time”, “Financial Times”, entre outros, para ficar só na lista das publicações estrangeiras mais compradas por ele (o livreiro Paulo, da Bux, era seu fornecedor). Devia gastar um dinheirão, mas, naquela época ainda distante da Internet, isso o mantinha atualizadíssimo sobre o movimento editorial nos principais centros do primeiro mundo.

Ai de quem ousasse mexer numa pilha intocada, nem que fosse apenas para ver as capas. Corria o risco de rompimento de relações.

Nesse quadro, certa vez (pouparei detalhes, mesmo porque a memória não ajuda) fui testemunha de uma cena de quase terror. Na mesa de um restaurante da moda, juntou-se a nós um conhecido do Murilo. Uma autoridade pública – municipal, creio eu. Bem falante, expunha com ênfase uma situação qualquer quando, de repente, para ilustrar sua argumentação, sacou de uma caneta e passou a escrever nas margens dos jornais da pilha, colocada sobre a mesa. Lívido, Murilo assistia à cena estupefato, sem qualquer poder de reação.

Depois do jantar, já fora do restaurante, é que pudemos perceber que os jornais maculados haviam sido deixados lá. Murilo foi comprar outros exemplares.

4

Ao mesmo tempo em que era capaz de discorrer judiciosamente sobre as qualificações profissionais de colegas, não dispensava o lado frívolo das informações – ou, mais exatamente, uma boa fofoca. Quem estava namorando quem, em que redação, quem era a musa do momento e coisas assim.

Em meados dos anos 80, no Rio, numa reunião com diversos participantes, pedi a opinião dele sobre determinada jornalista considerada (por mim também) de muita competência – e que ele conhecia. Sua resposta ao plenário:

- Todo mundo diz que são as pernas mais bonitas da redação do JB.

Depois é que falou (bem) do trabalho dela.

5

A propósito, no meio dessa conversa de saber quem era quem, quem era bom e quem não era, o Murilo costumava fazer uma brincadeira concedendo títulos imaginários de “melhor jornalista”, partindo do princípio de que cada um de seus amigos (ou não) deveria ser o melhor jornalista pelo menos da cidade onde nasceu.

Ele próprio se intitulava o melhor jornalista de Lavras (MG), sua terra natal. Pelo mesmo critério, Fernando Mitre era o melhor jornalista de Oliveira; Carmo Chagas era o melhor de Inhapim; Kleber de Almeida, o melhor de Guanhães; Rolf Kuntz, o de Antonina – e assim por diante. A mim, dizia que eu só não era o melhor jornalista de Campos (RJ), porque tinha na praça o Oldemário Touguinhó – grande repórter, saudoso amigo.

Alguns, cuja procedência não era o interior ou em cuja cidade natal habitavam conterrâneos mais famosos, conseguiam o título de “melhor jornalista da rua onde moravam”; outros podiam ser o melhor da rua, mas com restrições: “só do lado par, no trecho que vai da casa dele à esquina”.

Certa vez, durante uma avaliação desse tipo, comentou sobre um casal, ambos jornalistas, naturalmente morando juntos:

E o Fulano, hem? Não consegue ser o melhor jornalista nem na própria casa...

6

Nos anos 70, um grupo de jovens jornalistas publicou um livro de contos intitulado “Isto o jornal não conta”. Eram diversos autores, quase todos repórteres do próprio JT que o Murilo chefiava, adentrando o perigoso terreno da ficção, cada um contando sua história. Murilo leu (ou, pelo menos, disse que leu) o livro e depois sentenciou, naquele estilo de “cometo uma injustiça mas não perco a piada”:

- É, isto jornal não conta mesmo. O meu, então, nem pensar ...

7

Um editor do JT sugeriu a contratação de certo repórter prestes a deixar o jornal onde trabalhava. A justificativa era a de que a concorrência estava fortalecendo seu reportariado e era preciso acompanhar esse movimento. Como Murilo desaprovava o indicado, deu uma daquelas respostas típicas de quando queria dizer 'não' sem muitas explicações:

- Faz o seguinte: vê se indica esse nome para a concorrência. Se der certo, ele não fica desempregado e nossa equipe pula na frente.

8

Sua paixão era sem dúvida o Jornalismo. Numa das vezes em que estava trabalhando em Publicidade, Murilo foi convidado por mim e pelo Ruy Portilho para integrar a Comissão de Julgamento do Prêmio Esso de Jornalismo, em 1996. Ele foi escolhido porque, antes de tudo, era uma autoridade na profissão e, mesmo temporariamente afastado das redações, continuava acompanhando o movimento editorial; além disso, tinha experiência como jurado do Prêmio Esso em anos anteriores, com exemplar atuação.

Sua resposta nos comoveu:

- Este convite de vocês foi a melhor notícia que recebi nos últimos tempos.

Era a volta dele, ainda que breve, para uma convivência e um ambiente que certamente o faziam mais feliz.

9

Quem se lembrou dessa foi o Fernando Portela, repórter dos bons, escritor/editor pernambuco-paulistano que dá gosto de ler.

Foram avisar que determinado repórter, não um dos preferidos do Murilo, contou ter recebido uma proposta de suborno em plena apuração da reportagem que fazia.

- Murilo, sabia que estão tentando comprar o Fulano de Tal?

E ele, sem tirar os olhos do espelho de página que preparava: “Vende, vende...”

10
No período de sua derradeira passagem pelo JT, um dia fui visitá-lo na redação. Encontrei-o inconsolável por causa de uma matéria que havia pautado sobre uma garota de rua que queria ser top model. Não me recordo o motivo dessa moça ter aparecido no noticiário nem seu nome, mas isso não importa muito. A idéia do Murilo era vestir a menina, usando diversos modelos, fotografá-la em locais diferentes da cidade e contar a história. A matéria não foi feita a tempo e um outro jornal se antecipou, publicando algo parecido. O furo derrubava a pauta do Murilo.

- Bill, não existem mais repórteres. Os que estão hoje aí só têm ouvidos!

Estava meio triste, meio zangado. Conversamos mais um pouco, eu disse que era hora de voltar para o Rio, ele me abraçou e entrou na sala para a reunião da tarde. Foi nosso último encontro, quarenta e tantos anos depois daquele elogio do qual jamais me esqueci.

Guilherme Duncan, jornalista, integrante da equipe pioneira do JT, atualmente coordenador do prêmio esso de jornalismo

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