Moacir Japiassú
Numa tarde de março de 1963, quando comuniquei aos colegas do Correio de Minas que Antonio Beluco Marra telefonara para avisar que a Última Hora me aguardava para integrar o copidesque de uma de suas inúmeras edições, Fernando Gabeira me entregou o telefone de um amigo:
“É o melhor jornalista de São Paulo, pode te ajudar muito”, disse-me. Telefonei, marcamos encontro.
Tratava-se de um rapaz magrinho e encurvado, sorridente, mineiro de Lavras, amigo de Gabeira desde os primeiros tempos em Juiz de Fora. Trabalhava na sucursal da Manchete. Eu o encontrei no “Clubinho”, um bar com aparência de bunker que havia na galeria do cine Metrópole e reunia boa parte da fauna paulistana da época. Sobre a mesa do solitário Murilo espalhavam-se jornais e revistas estrangeiros e jaziam, ainda intocados, um copo de vinho e uma fatia de queijo brie. O aparelho de som espalhava pelo salão lotado e ruidoso uns fragmentos da Ária na Corda de Sol.
Murilo me recebeu como se tivéssemos estudado juntos no Granbery de Juiz de Fora. Em minutos, éramos velhos amigos. Ele falava baixinho, em meio àquela balbúrdia que desrespeitava os sons de Bach, de modo que, de vez em quando, eu levantava a voz e perguntava: O quê?!?! Quem?!?!, Quando?!?!, Onde?!?!, Como?!?! Por quê?!?! -- e assim, de lead em lead, passamos a construir nossa amizade.
Nossos encontros eram ali ou no João Sebastião Bar, no Sirocco, no Gigetto, onde lhe preparavam uma salada de alface com algumas gotas de vinagre e um fio de azeite. Murilo quase não comia, além da indefectível fatia de queijo com vinho tinto. Apareciam garotas bonitas, que não o interessavam, porque o sóbrio comensal só pensava em jornalismo e garantia que nenhuma delas merecia atenção, porque não sabiam escrever.
Certa noite apareceu um amigo, cujo nome esqueci; contou que deixara a mulher por uma repórter do Diário Popular. Murilo ergueu o indicador, num gesto muito seu, que anunciava uma sentença recheada de seriedade: “A moça tem bom texto?”, perguntou ao apaixonado.
Quando lhe disse que deixaria São Paulo e a Última Hora para aventurar-me no Rio de Janeiro, pediu-me paciência, pois eu estava há apenas cinco meses na cidade. Estaria mal na UH? Não, estava bem até demais, a trabalhar sob as ordens do José Elias, excelente e honesto editor de política; eu apenas não suportava mais ter que vestir paletó e gravata para ir ao cinema, não agüentava o frio e estava cheio do edifício onde morava com um grupo de companheiros de trabalho, famoso balança-mas-não-cai escondido na Rua Paim, bem atrás do Teatro Maria Della Costa.
Durante alguns meses não nos vimos nem trocamos carta ou nos falamos, numa época em que era preciso esperar horas, dias, semanas por uma mísera linha telefônica. Porém, no final de abril ou maio de 1964, quando respirávamos os poluídos ares do golpe militar, a voz de Murilo me chegou pelo telefone; convidado por Alberto Dines, chefe de Redação do Jornal do Brasil, que apreciava seu trabalho na Manchete, estava de mudança para o Rio. “Vou assumir a editoria de Pesquisa e quero você comigo”, anunciou, para minha alegria, eu que penava na reportagem da sucursal do Diário de S. Paulo. Ia rever o amigo, trabalhar com ele num grande jornal e talvez ganhar, finalmente, um bom salário.
Murilo criou o verdadeiro Departamento de Pesquisa, contratou alguns jovens talentos, batalhou por salários dignos. Foi o menos exigente dos chefes que tive na vida, porque não ligava para horários, falava sempre baixinho, naquele mesmo tom emitido nas mesas de bar, e bastava que lhe entregassem um bom texto para esquecer até ofensas pessoais.
Agora, nosso Quartel General de todas as noites era o Bar Luís, na Rua da Carioca, tradicional abrigo de boêmios que precisavam tomar mais uma ou apenas forrar o estômago com salsichas e maionese de batatas, iguarias mais requisitadas do farto cardápio alemão. Sem contar, é claro, o chope sempre bem tirado e algumas doses de Steinhäger para corrigir o paladar.
No início de uma noite de inesquecíveis revelações, Murilo desapareceu da Pesquisa e faltou ao encontro na Rua da Carioca. No dia seguinte, durante o almoço no restaurante do JB, confessou: estava apaixonado por uma donzela que morava na Rua da Matriz, em Botafogo. Teria bom texto? Na verdade, nem jornalista era e o encantamento havia nascido ao primeiro olhar.
Então esse homem de 25 anos, que aparentava um pouco mais, talvez pelo andar retraído e a barbicha em formação, entregou-se a arrebatamentos de adolescente, e certa madrugada, embriagado de vinho e paixão, atirou às ondas de Copacabana a aliança que denunciava o noivado já antigo com moça de São Paulo. Foram semanas de justa aflição para ele e os amigos, os quais só enxergavam avisos de perigo naquela via de mão única – não havia correspondência àquele tão repentino desvario.
Murilo Agostini Felisberto, assim identificado na etiqueta colada à mala de viagem, voltou para São Paulo, casou-se com aquela da aliança ao mar e aliviou o peito sobre a mesa de trabalho no recém-criado Jornal da Tarde, onde nasceram as mais belas páginas da imprensa brasileira dos anos 60.
Quando nos encontramos novamente, meses depois de sua volta a São Paulo, Murilo me fez uma sólida proposta de trabalho. Eu tentava respirar o irrespirável ar da Bloch Editores, quase aceitei, porém assaltaram-me os enregelados fantasmas de 1963, da Rua Paim e adjacências, e ainda a execrável figura do lanterninha do cinema ordenando-me que vestisse o paletó.
Nas viagens ao Rio, sempre jantávamos juntos e a conversa nunca estava longe do que ocorria nas redações e oficinas. Uma bela primeira página nos ocupava até à sobremesa. Numa dessas noites, final de 1968, quando repassávamos as melhores capas sobre o AI-5, numa mesa do Antonio’s, acrescentei à conversa um dos poucos temas capazes de, digamos, modificar o cardápio murilista: a paixão pelas mulheres. Disse-lhe que iria me casar com a repórter Marcia Lobo, ex-Jornal do Brasil, agora minha companheira na revista Pais&Filhos; ele ergueu o indicador e aprovou: “Essa tem bom texto”.
Nos meses subseqüentes, ouvi outros convites do amigo, convites que tentavam o casal; havia abrigo no Jornal da Tarde para Marcia e eu. No final de 1969, recebi passagem de avião para conhecer o jornal e os futuros companheiros, entre os quais alguns bons amigos dos tempos do Correio de Minas. Voltei ao Rio disposto à mudança e Marcia gostou da idéia. Porém, resolvemos pensar e pensar e pensar, até que Jaquito, sobrinho de Adolpho Bloch, fez o favor de me demitir, indignado porque eu, chefe de Redação da revista, dera folga à equipe na sexta-feira da paixão de 1970.
Um mês depois estávamos em São Paulo, à véspera da Copa do Mundo, que o JT prometia cobrir com edições especiais e diárias. Fui trabalhar na editoria de esportes; e como, apesar do prometido, não existia vaga para Marcia, ela passou a fazer freelance na editoria de Variedades. Era muito, muitíssimo o trabalho num vespertino que ignorava horários, mas o casal sempre encontrava tempo para a vida de recém-casados. Ao convívio com Murilo, depois do expediente enlouquecido, preferíamos namorar em cenários mais românticos. Habituado aos séquitos, Murilo não gostou.
O divórcio entre Murilo e eu começou com o absenteísmo do outrora preferido. Tudo nos afastava e um dia, depois de séria discussão a respeito de uma reportagem produzida na sucursal do Rio sobre os vinte anos do atentado da Rua Tonelero, deixamos de nos falar. Algum tempo depois, nem nos olhávamos.
Mesmo assim, o pessoal da Redação achou bastante esquisita minha demissão do jornal, em 1977, a propósito de “contenção de despesas”, medida que atingiu vários companheiros. Marcia Lobo, que algum tempo antes havia conquistado a prometida vaga na Variedades e nada tinha a ver com minha desavença com Murilo, fazia parte da lista. Este foi o detalhe que denunciou o caráter pessoal da demissão e provocou justo desalento.
Alguns anos mais tarde, Marcia e eu bebíamos um drinque no bar-restaurante Pirandello, na Rua Augusta, quando Murilo surdiu ao lado de nossa mesa, estendeu a mão e disse, com a voz mais vigorosa do que o normal: “Acho que está na hora de fazermos as pazes”. Marcia fez que nem ouviu, mas eu, em nome da velha amizade, do muito que fizéramos juntos, em nome de tantos leads e sub-leads, apertei a esquálida mão oferecida.
Éramos amigos novamente.
quarta-feira, 22 de outubro de 2008
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