quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Poucos e bons

Carmo Chagas

Pelo segundo ano do JT, eu já estava informalmente encarregado do noticiário policial. Informalmente porque o Ulisses, meu editor, não me passou essa função. Aconteceu com o correr de cada dia, de cada fechamento. As matérias policiais vinham naturalmente parar na minha mão. De um ponto em diante comecei a me interessar também pela pauta policial, de modo que conhecia cada assunto desde a origem até a hora de copidescar o texto, fazer as legendas, os títulos, paginar.

Nesse processo, num dado momento trabalhei com uma das melhores equipes da reportagem policial de toda a imprensa brasileira. Faço essa afirmação não por mim, claro, mas pelos repórteres integrantes dessa equipe. Estavam lá: Percival de Souza, Octavio Ribeiro, Inajar de Souza, Antônio Carlos Fon e, como setorista no DEIC, Valdir Sanches. Quem conhece a reportagem brasileira confirma o que estou dizendo aqui. Eles compuseram uma das melhores equipes de reportagem policial já reunida por qualquer jornal brasileiro. Esse time ajuda a explicar, muito, o sucesso do JT nos primeiros anos.

Foi nessa época que me dei conta da importância do trabalho de equipe, em jornalismo. Conversávamos sobre isso, nos bares e botecos das vizinhanças do jornal, em encontros com colegas de outras redações. Um dos temas: quem tinha mais importância para o JT, o Mino Carta ou o Murilo Felisberto? O Mino era o número 1, o chefe da redação. Diagramava a primeira e as páginas mais importantes de cada dia. Comandava a operação com classe e algumas explosões de temperamento italiano. Mostrava a importância da ilustração para a boa edição de uma reportagem. Ensinava o cuidado com o uso exato e adequado dos termos e conceitos: se damos nota 10 para um cantor como o Roberto Carlos, que nota daremos ao ouvirmos um Caruso? Além de exigente, o jornalista precisa ser criterioso ao noticiar, ao analisar, insistia o Mino.

Já o Murilo, como número 2, secretário da redação, substituía o Mino nas ausências, também diagramava páginas importantes e insistia na necessidade de escrever direito, além de bonito, de apurar fundo, de trabalhar firme e com dedicação. Mas o grande mérito dele, no comecinho do jornal, tinha sido a formação da equipe. Ele conhecia os ninhos de talentos pelo Brasil. Tendo trabalhado antes no Rio, contava com aquela porosidade que então caracterizava o jornalismo carioca. Porque fora Capital e Corte até muito pouco tempo antes. Porque fora sede do Diário Carioca dos anos 40, matriz do novo jornalismo brasileiro. Porque era sede do Jornal do Brasil, marco maior do novo jornalismo nacional, Bíblia de todos nós.

Por tudo isso o Rio, mais que São Paulo, sabia na época onde estavam pelo país os jornalistas mais talentosos, os gênios mais promissores. E o Murilo sempre teve a mais fina percepção para localizar os bons valores. A maioria dos integrantes da redação do JT estava ali pelas mãos do Murilo. Então, a gente discutia: quem tem mais importância para o jornal, o Mino ou o Murilo? O que vale mais: dirigir uma redação ou fornecer os talentos dessa redação?

Participei de várias dessas tertúlias. Pensei muito sobre essa questão. Cheguei à conclusão de que uma função não existe sem a outra. De nada adianta reunir um timaço, apenas, sem contar com quem mantenha esse grupo unido e entusiasmado. Além do mais, devo registrar que vários dos principais integrantes da equipe estavam ali por obra do Mino. E que o Murilo, além de exímio garimpador de talentos, também contribuía para manter o time.

Uma outra discussão surgiu diante de mim pela primeira vez, naqueles tempos: o que é mais importante para um jornal, a opinião ou a informação?

Quem touxe o tema foi o Murilo, numa das ocasiões em que substituiu o Mino durante alguns dias (não me lembro, aliás, de o Mino tirar férias; ficava fora uns quatro ou cinco dias, muito esporadicamente). Além de tocar a edição de cada dia, o Murilo teve também que comparecer a uma reunião de diretoria com a participação do pessoal do Estado. Parece que, em dado momento, alguém disse que faltava ao JT o lastro que uma opinião confere. Aí outra pessoa argumentou que, no caso de um vespertino jovem, com noticiário voltado para a efervescência paulistana, a informação interessava mais. Desse ponto em diante todos passaram a discutir a prevalência entre opinião e informação.

Para nós, safra nova da profissão, não havia o que discutir. A informação em primeiro lugar. Ponto final. De minha parte, naquela época, pensava que a opinião só servia para atrapalhar. Às vezes tocava a mim baixar a página dos editoriais. Morria de vontade de reescrever aquilo tudo. Aqueles períodos longos demais, a enorme distância entre sujeito, verbo e objeto, o estilo tortuoso de expor um ponto de vista, tudo aquilo me parecia torturante para o leitor. Por que tanto meandro, por que tanta cerimônia, em vez de ir direto ao tema?

Mas a minha resistência aos editoriais não se devia apenas ao trabalho que às vezes me davam. Na verdade, eu nunca lia editoriais. Nem os do Jornal do Brasil, tão reverenciados em toda roda de jornalistas. Eu estava convencido, também, de que pouquíssimos leitores se davam esse trabalho de ler a opinião de seu matutino ou vespertino.

Sei, hoje, que continuam pouquíssimos os leitores de editoriais. Mas aprendi que os editoriais são escritos exatamente para esses pouquíssimos. Os empresários mais sólidos, os políticos mais perspicazes, os economistas mais consistentes, os intelectuais mais atentos constituem a elite interessada na opinião que vem todo dia impressa na imprensa. Ali se encontram as reações às notícias que mais preocupam, mais entusiasmam. O estilo do texto, para essa gente, conta muito; mas bem menos que a substância, o núcleo do pensamento exposto naqueles textos. A massa de leitores vai atrás das manchetes, das notícias mais quentes de cada dia. Atiram-se com sede à informação. A elite vai atrás das páginas de opinião com a mesma sede.

Naquele tempo, porém, nós da nova safra ainda não estávamos prontos para enxergar a importância da opinião. Escutamos como piada o relato do Murilo. Rimos e voltamos para o ofício de trabalhar cada legenda, cada título, cada texto, cada página com o maior esmero, com o maior carinho.

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