terça-feira, 21 de outubro de 2008

Querido Murilinho*

Mauricio Kubrusly

Não é qualquer império que tem uma Rainha chamada Murilo. Ou vice versa. Na redação do JT, nós tínhamos. Ainda na rua Major Quedinho, aquela mistura de jornal e rádio com um hotel no meio, a chefia não tinha uma sala exclusiva. E isso, sem querer, ajudou muito - o avesso de tantas empresas, inclusive jornalísticas, com seu espaço dividido em baias e salas estanques.

O Estadão, que ficava do outro lado do Corredor do Tempo, oferecia privacidade aos comandantes da redação. Não sentíamos inveja - e até mesmo evitávamos cruzar o tal corredor, com receio de envelhecer alguns meses naqueles segundos. A crença quase unânime era: o retorno ao JT não representava desenvelhecer de imediato. E os idosos não eram bem-vindos no Dia do Acepipe, que marcava início da noite de sexta, quando a alegre equipe da Variedades armava um piquenique junto da porta do banheiro. (As páginas destinadas a artes, espetáculos, comportamento foram se multiplicando - felizmente! - sob o cetro da Rainha e o trabalho avançava pela madrugada). O Dia do Acepipe obedecia a regras: cada um trazia um pratinho de doces ou salgados. No final do convescote, todos votavam, pra eleger os melhores acepipes. Depois da apuração, quem tinha levado o melhor doce ou o melhor salgado ficava liberado de trazer petiscos na sexta seguinte. E o festivo lanchinho era exclusivo, apesar das investidas dos vizinhos, do Esporte.

E Elazinha gostava de rabiscar desenhos toscos durante as reuniões na mesa da Rainha, num dos cantos da redação. (Lembra que a chefia não tinha sala fechada?) Todos podiam ouvir o que se discutia e decidia, não havia porta pra fechar. A Rainha - de terno, muitas vezes de colete e gravata, um contraste radical com o visual da moçada das várias editorias - a Rainha desenhava também. A diferença é que ela sabia, era absurdamente informada a respeito de tudo do planeta das artes gráficas.

Era capaz de levar um tempo espichado antes de optar por esta ou aquela família de letras. O desenho da cada página do JT era uma de suas saudáveis obsessões. Aprendia-se muito acompanhando o seu fazer. E o mesmo valia para títulos, escolha das fotos, ilustrações, a sacada original no jeito de abordar o inevitável lugar comum da rotina de qualquer redação. Afinal, se bobear, o jornal repete, todos os anos, uma manchete assim: Não faltará peixe na Semana Santa. Todo ano tem Semana Santa e todo dia tem jornal. Mas o império da Rainha não tropeçava nessa preguiça. Afinal, se fazia naquele meio andar um diário que sacudiu a imprensa de todo país. Imagine: era um tempo em que era possível distribuir um jornal à tarde, com notícias da manhã, numa São Paulo com milhões de automóveis a menos. E a Rainha, às vezes, vinha pela manhã apenas para desenhar a primeira página. Mas também sumia durante outro dia. Coisas de majestade...

Era sofisticadíssima nas leituras, uma revelação por semana. Quem estava por perto recebia dicas e toques preciosos. Conversava sobre música clássica com Elazinha, uma paixão comum. Graaande Rainha... que se divertia com a mania de apelidos que tomava a redação do JT. Muitos foram batizados pelo Satã, mestre no apelido irrefutável. Fernando B. foi uma das vítimas - que acabou se tornando apenas B.

Claro que um ambiente nada ortodoxo assim só era possível a partir do comportamento da chefia. Sorte nossa, que estávamos lá. O jornal chegava às bancas direitinho, já convivendo com ensaios de imitação ali e aqui. E no meio de uma redação não convencional redação como aquela, o editor chefe não repetia a rotina padrão. Às vezes, não comparecia à reunião de pauta, ou virava a noite, ou mudava toda a diagramação em cima do fechamento na gráfica, ou sumia... temperamental como uma rainha.

Daí, o apelido do querido Murilinho .

* sim, muitos de nós o chamávamos assim, no diminutivo

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