quinta-feira, 31 de julho de 2008

Mal Entendido

Rondon Fernandes

Certo dia na DPZ, o Murilo desliga o telefone, abaixa a cabeça, põe a mão na testa, olha para o lado sem tirar a mão, e diz, meio aflito, meio quase rindo.
— Não acredito! Eu não acredito!! Me ajuda achar aquela pasta com uns anúncios horrorosos . Uma pasta que eu tinha guardado em um desses armários.
— Essa aqui?
— Essa mesmo. Você acredita que esse cara andou dizendo para todo mundo que eu falei que ele inventou um novo estilo de propaganda? E as pessoas estão acreditando…
Parênteses importantes.
Essa pasta era normal. Simples, pequena, com folhas de plástico transparente recheadas de anúncios em página simples cujo layout eram título informativo+imagem de fábrica+complemento de texto. O que a pasta tinha de mais marcante era o fato de que todos os anúncios, maioria para mineradoras, eram de uma caretice fora da média.
Um dos anúncios dizia algo do tipo “50 anos de competência, confiança e tradição na exploração do minério de ferro”
Na verdade, eram anúncios criados por um jornalista conhecido sem muito trejeito ainda para a linguagem publicitária e que queria saber se na avaliação do Murilo Felisberto— no caso, mais que respeitada inclusive porque ele migrou com sucesso do jornalismo para a propaganda — ele tinha jeito para a coisa.

Entreguei a pasta e perguntei: — Mas você disse isso, Murilo?
— Não!!!!! (risos) Quando um outro amigo jornalista perguntou o que eu tinha achado dos anúncios dele, eu só falei “só se ele tá inventando um novo tipo de propaganda”.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Eh! Cambada!

Roberto Duailibi

O Murilo era tão discreto que, devo confessar agora, não me lembro de muitas coisas dele. Apesar de haver trabalhado ao seu lado durante sete anos, lembro-me apenas que, bem humorado, referia-se a seus colegas fofoqueiros dizendo “Eh, Cambada!” Lembro-me apenas que, quando eu vinha com o nome de um prospect para o qual queríamos fazer uma campanha vencedora, ele desenhava vários layouts num pedacinho de papel que, depois, se transformavam numa campanha memorável.
Lembro-me da admiração que ele tinha por Tom Waits e por suas duas pequenas obras, “No One Knows I’m Gone” e “I’m Still Here”, dois títulos que parecem, hoje, se referir ao próprio Murilo. E como ele apreciava John Caples, o New York Times e o The Economist e seus títulos. E ainda como conhecia o Brasil.
Lembro apenas, tão discreto era o Murilo, que ele estava sempre rodeado de alguns jovens redatores e jovens diretores de arte, ilustradores e tipógrafos, que, sob sua liderança, criavam grandes campanhas. Lembro-me do Aron Sutton, do André Laurentino do Ilan Kow, do Robson, da Corina Crawford, do Daniel Kondo, do Tião Bernardes, do Fernando Tepedjian, do Luciano Zuffo, da Rita Corradi, do Raul Orfão, da Karen Sá Rego, − gente que hoje ganha prêmios por seu talento. Tão discreto era o Murilo, tão mineiro, que, lembro-me apenas, nunca falava quão importante era na definição do novo jornalismo brasileiro. O Murilo Felisberto era realmente uma pessoa discreta. Tão discreta, mas tão talentosa, que causava ciúmes em alguns outros profissionais. Lembro-me como fiquei escandalizado quando, na DPZ, pegando um elevador com ele, vi entrar um diretor de arte de um outro andar e virar as costas para o Murilo. Até hoje esse gesto está atravessado em meu coração. Justo com o Murilo! O Murilo era tão maravilhosamente discreto que, cada vez que eu estava angustiado, ia até a mesa dele (e trabalhámos no mesmo andar por sete anos!) e, no meio de dezenas de jornais e revistas, em sua mesa, via-o levar-me até a salinha do café e descobrir o que me deixava puto! E do papo com Murilo lembro-me sair sempre com um sorriso, pois a convivência com ele era um privilégio tão grande, um momento tão especial em nossas vidas, que sua simples presença era, em si mesmo,um prêmio que o destino nos dava. Há pessoas assim, cuja proximidade devemos olhar como um prêmio. Poder conversar com o Olavo Setubal, com o Mauro Santayana, com o Tancredo Neves, Said Farah, Sylvia, Keith Reinhard, Zaragoza, com gente que viveu aventuras incríveis, momentos tão especiais, como as que Murilo viveu. O simples fato de estar perto deles faz com que você sinta quão privilegiados somos como criaturas humanas. Outra coisa que me lembro do Murilo é que ele fazia questão de atribuir a criação aos verdadeiros criadores, recusando-se, algumas vezes, até de aparecer como Diretor de Criação. Dizia que era horrorosa essa história de algumas pessoas enfiarem o seu nome na criação dos outros, e criticava particularmente aqueles publicitários que já eram donos de agências e faziam questão que seu nome aparecesse em primeiro lugar nas fichas técnicas. “É o pior patrão”, dizia ele, “o que rouba a criação do empregado”. O Murilo era tão discreto que escolheu viver sózinho a partir de um certo momento. E a solidão deliberada, apenas o encontro casual de uns bons amigos, é a escolha definitiva, o cosmopolitanismo mais radical, o prazer supremo.

Meu mestre faixa preta

Theo Rocha

Nunca me esqueço do projeto gráfico do jornal da tarde.
Todos os finais de semana durante seis meses.
Só nós dois no 7º andar.
Frequentemente o silêncio durava a manhã inteira.
Nenhuma palavra.
As poucas vezes em que ele se pronunciava era quando eu ficava ali do seu lado com o layout em mãos esperando o melhor momento para interrompe-lo.
De trás do jornal ele esticava sua mãozinha branca e delicada, puxava o layout para dentro do seu mundo e devolvia, sem sair dele, com as seguintes palavras: “é theo, é theo…” e eu já sabia. Isso significava que ainda não estava bom.
Voltava pra minha mesa num certo nervosismo porque na maioria das vezes não tinha a menor idéia do que não estava bom.
Mais tarde, na hora em que saíamos para almoçar, entre um comentário e outro sobre pessoas que eu não fazia a menor idéia de quem eram, ele me explicava seu descontentamento com o “t” da tipografia que estávamos usando, comentava suas dúvidas sobre usar a entre-letra menos 0.4 ou 0.5 e reclamava dos constantes ajustes que ele tinha que fazer em seu som.
Foi assim entre um silêncio e outro que o Murilo me ensinou. Foi assim que viramos amigos. E foi assim que aprendi quase tudo que sei sobre direção de arte, muito sobre a vida e um pouco sobre a diferença entre a entre-letra 0.4 e 0.5.

terça-feira, 29 de julho de 2008

Citizen Mu

Neil Ferreira

Dos dois Sidneys que mais gosto no cinema, o Pollack e o Lumet, escolheram o Lumet para este trabalho. Suo frio, tenho medo dele, é um perfeccionista. A primeira coisa que faz é uma reunião com a equipe para definir “o que estamos fazendo aqui”. Quer o ponto de vista de cada um. “Será um depoimento, the subject (eu) sentado ali, aqui câmera fixa, luz rebatida lateral, tentaremos som direto sem dublagem posterior”, resuniu e decidiu. Respirei aliviado, “piece of cake”, vai ser moleza, pensei. Gelei de novo quando acrescentou “Nessas tomadas geralmente the subject (eu de novo) atrapalha-se todo, vamos tentar ter mais paciência desta vez”. “Desta vez”, poxa, já perderam a paciência uma vez..
Para mm: “Relaxe, seja natural, se quiser se mexer pode, deixe a história fluir, se gaguejar não tem importância, você não é um boneco”.

“... roll camera ... aaand... Action !”

(Encaro a câmera, começo a falar. Não paro mais.)
Como é mesmo o nome daquele italiano do “Assim é se lhe parece”, esqueci. Estou na mira do “serial killer” islâmico especializado em explodir indefesos quadros sobreviventes da terceira idade. Vocês devem ter ouvido falar, é o Al Zheimer, obriga-me a esquecer quase tudo. (Árabe sempre começa com al, al-fabeto, al-ameda, al-cool, al-zheimer).
Minha filha Ju me chama de “Baronesa”, personagem de uma novela que tinha uma vilã deliciosa (jogava os desafetos escada abaixo) e um bicheiro gordo engraçadíssimo. A “Baronesa” curtia pegar um colar de brilhantes, o último restinho da sua fortuna, colocar no pescoço, olhar-se no espelho e depois esquecia onde o tinha deixado. Sou eu. Se tivesse um colar de brilhantes, já teria perdido. Ou, irresponsável, passado nos cobres para gastar em Paris.
Eu queria lembrar o italiano para mudar a frase dele, que quase todo mundo já ouviu ou leu, para “Assim é se me parece”.
O Mu não é o que vou falar. O Mu me parece o que vou falar. Tenho sorte de não submeter isto a ele. Mandaria cortar os dois ou três minutos iniciais por ser uma forma antiga de fazer jornalismo. Não me permitiria dizer que não sou jornalista e esta é a forma que escolhi para contar uma história, não para fazer uma reportagem. Talvez por isso, lamento nunca ter submetido nada a ele. Ambos perdemos as chispas que voariam.
Quando ele for assassinado, tenho uma centena de suspeitos que de bom grado acertariam contas com ele por textos, idéias, fotos, ilustrações recusados apenas com o olhar, sem um som, uma explicação, um gesto, um suspiro que fosse.
É para ser como se estivessemos na mesma mesa do mesmo bar, todas as noites das quinta-feiras, jogando conversa fora, salvando a imprensa e a propaganda da burrice coletiva, ou puxando angústia porque aquela menina que acabou de chegar a bordo de um fotógrafo famoso e com cara de sujinho, nunca deu para mim, nem vai dar.
Como o Mu, sou um animal de hábitos sistemáticos, o Mu e a minha Gata Velha e Gorda. Não frequento bares, quanto mais na mesma mesa e na mesma noite da semana. Não fumo, não suporto fumaça de cigarros e bares são ambientes cheios de fumaça desagradável. Na minha anti-lei, a fumaça sempre acha o nariz de quem não fuma, o meu nariz. Fico em casa, escolho o som, a marca do uísque que gosto está lá, embora não experimente uma gota há anos. Quem quiser fumar que vá para a varanda. Lá fora pode. Não teria como contar esta história a ele. Ainda bem.
Uma coisa sei que o Mu ouviria com prazer. Conheço-o desde os anos 60, mais de 40 anos. Não o conheço. Mu mostra-se aos poucos, um pouco para cada um, como se fosse o Jack “The Ripper” dele mesmo. Estou familiarizado só com algumas partes. Um pedaço do rosto aqui, meio sorriso ali, uma nesga de ironia mais à frente, seriedade fúnebre numa balangada inesperada para trás, uma ex-mulher anos depois.
Um diabólico esfregar das mãos finas, frágeis, daqui a pouco quebram, com um sorrisinho (hã-hã-hã) carregado de veneno quando a fofoca, se espalhada, resultaria em demissão, quebra-pratos de casais, junção de namorados, desjunção de amantes. A primeira menina do meio que comia outra, fiquei sabendo pela boca do Mu. Até hoje não sei se era a sério ou a brinca, ele não foi claro, foi reticente. Cool. Mineiro.
Nosferatu redivivo. Rei da fofóca. “Rainha” da redação. Torquemada da forma, condenava os pecadores aos infernos e quem por milagre sobrevivesse à inquisição, ia direto para o céu. Traço beat, como Feiffer. Sovaco Mais Bem Informado do Mundo, com revistas e jornais o tempo todo. Artista.
Apenas partes incompletas de uma imagem pública cuidadosamente construida e a identidade real cuidadosamente escondida, pelo menos dos meus olhos. Nunca vi o Mu nu, nem conheço quem tenha visto. Mas sei que ele é como os Beatles. O todo é maior do que a soma das partes. Ninguém que eu conheço conhece o todo. Tento iluminar as partes que acho que vi e penso que entendi.

Vinte anos esta noite.

Só soube a idade do Mu um dia destes, 67 anos. Pego a calculadora e faço um “flash-back” de 45 anos. Ao meu lado um menino magrinho, olhos e cabelos claros já então parecendo ralos, ligeiramente encurvado, jornais e revistas sob o braço, ele vinte e pouquíssimos anos eu vinte amanhã. Andamos na rua 7 de Abril vazia, quase meia noite, ouviamos os sons dos nossos passos.
Convoco o viciado em livros e amante de cinema que mora dentro mim para testemunhar sobre aquela noite.
Cavoco num canto da memória “Le Feu Follet”, de Drieu de la Rochelle, e uma lata com o filme que Louis Malle tirou do livro. “Le Feu Follet” é mais ou menos “fogo fátuo”, que brilha intensamente, ilumina tudo e apaga-se em segundos. O livro é nada menos do que genial. O filme é melhor ainda.
Drieu foi colaboracionista durante a ocupação da França na segunda guerra. A Resistência marcou-o como traidor. Suicidou-se na derrocada do nazismo.
Malle foi resistente. Brilhante cineasta de esquerda. Fez um filme apaixonado.
O livro e o filme vieram ao Brasil com o nome “30 anos esta noite”. Não perca se tiver chance. É a história da noite em que o personagem completa 30 anos. A advertência hippie “Nunca confie em ninguém com mais de 30 anos” ainda não tinha sido escrita, mas parece que já valia. Não conto mais.
A partir dessa noite, percebi que Mu brilharia intensamente. Iluminou tudo por 45 anos em pouquíssimos segundos. Fogo fátuo, “Le feu follet”. Não há nada no jornalismo e depois na propaganda que não tenha recebido sua luz.
A conversa dessa noite durou até amanhecer e espichou-se pelos dois anos seguintes, quando trabalhamos na redação da Folha de S. Paulo.
Se os federais nos grampeassem com a desenvoltura com que grampeiam hoje, seriamos pegos e internados separados, um em cada manicômio. Era uma conversa atropelada, um falando em cima da fala do outro, sem pausa para respiração, eu maníaco por saber como escrever bem e quem escrevia bem. Mu, visão mais ampla, para quem o texto era apenas um detalhe (muito mais tarde o Parreira definiu o gol como apenas um detalhe), queria saber como juntar o texto, as fotos, os tipos, o tom, o jeitão, para chegar a um todo original, único, fora do comum, supreendente.
Eu recitava textos de Tom Wolfe, Jimmy Breslin, Gay Talese, Truman Capote, Norman Mailer, Brendan Gill e sua equipe da revista New Yorker e quase tudo o que passou a se chamar “New Jounalism”.
Mu recitava nomes e o trabalho de editores de arte, fotógrafos, ilustradores, chargistas, diretores de tipos, designers de jornais e revistas norte-americanos e europeus. Dos francêses e inglêses, aprendia a inteligência, beleza, elegância. Dos norte-americanos, sugava a emoção, a busca da velocidade na informação, a briga para chegar e sair antes da cena da ação e de chegar antes na redação. Mas sobretudo a busca de um jornal que desse um susto no leitor e levasse o concorrente à beira do suícidio.
No dia seguinte na Folha nós é que beiravamos o suicídio. A análise diária, a discussão interminável do que haviamos feitos ontem era de matar. A gente na hora “largava esta merda de emprego”, reclamava o que podia, desabafava. Os caras do copy e da diagramação eram agentes infiltrados do inimigo, queriam nos ferrar. “Aquele cara fodeu a minha matéria !” era o que se ouvia. “Aquele cara”, quem quer que fosse, corria o risco de levar um cacete quando “largava” (o trabalho) nas madrugadas frias, silenciosas, solitárias e ainda serenas.
A nossa “Mesa no Algonquin” era no boteco pé sujo da esquina. Tinha um H. L. Mencken das frases tortas, mal humoradas e engraçadas, o repórter José Hamilton Ribeiro, o melhor dos melhores, que mais tarde perderia um pé num mau passo dado sobre uma mina terrestre, ao cobrir a guerra do Vietnã. Não havia menina tão bela e maledicente como Dorothy Parker, a “Big Loira”. Pena.
Mu, guru, jogava gasolina e tocava fogo na insatisfação quase em silêncio, só com olhares de desaprovação ou aprovação. Quanto mais indignados nos via, mais aprovava. “Não é profissão de conformistas” sentenciava. “Conformistas vão ser bancários, ver novela da Globo”, desprezava.
A liderança exercida mansamente, diria silenciosamente, sem imposição, vinha da luz. Já emanava luz, não percebíamos.
E começava tudo de novo. Hoje é outro dia, uma nova oportunidade, as coisas não param de acontecer, quem sabe estoura mais um escândalo de corrupção no governo ou cai um avião lotado em algum lugar do mundo, um Tsunami dos bons, um belo Katrina. Filhotinhos de urubus crocitando como adultos.
Em 1964, no dia 1º. de abril, as ruas congestionadas por tanques de guerra, eu tinha deixado a Folha. Havia trocado o jornalismo pela publicidade. Estava na janela da Standard Propaganda, na Praça Roosevelt, na lateral da Igreja da Consolação, vendo a tropa passar. Meu primeiro dia de trabalho. Não fiz nada.
Mu tinha nada menos do que um golpe de Estado para fazer o jornal brilhar. Fez.

“Rainha” da redação.

Época de ouro do Jornal da Tarde, vespertino que durante anos foi o melhor jornal que se fez no Brasil. Atrevido, irreverente, inovador. O Diretor de Redação era uma lenda do jornalismo. Mu e sua quadrilha de mineiros, cada um melhor do que o outro, conferia realismo ao dia-a-dia da lenda. Leitor e torcedor, ficava hoje com o JT na mão imaginando o que esses caras vão fazer amanhã. Tinham que parir a cada dia, 9 meses em algumas horas, o novo filho, bonito e saudável a ser entregue nas bancas daqui a pouco.
Via as capas e me emocionava, algumas pregava na parede, como obras de arte que eram. A do comício das “Diretas Já”, na página inteira a multidão que foi às ruas exigir democracia. Virou um poster hoje amassado, rasgado e semi-desmanchando que ainda tenho em casa. A que anunciou a derrota da emenda das “Diretas Já”, tudo negro, escancarando o luto nacional. Quando perdemos a Copa do Mundo da Espanha com o divino time do Telê, o garotinho com a camisa amarela da seleção, uma lágrima escorrendo pelo rosto em página inteira, a mesma lágrima que escorreu nos nossos rostos depois dqueles 3 gols fatídicos do Paolo Rossi.
Sentia que tinha visto de pertinho e nem percebido a cabeça do Mu engravidar desse tipo de pensar, de criar, de fazer, de cobrar, de cobrar-se.
Mu aprendeu com o Mu. Não havia escola e nem quem ensinasse o que ele ia aprendendo, como o comandante Mao mandou: “uma revolução se aprende fazendo”. Colocou inteligência e beleza no trabalho. Cultura também. Nesse tempo, os culturatti escreviam para jornal, não faziam jornal.
Um dia o JT apareceu com uma reportagem de página inteira e meteu o dedo na ferida, que então começava a incomodar a cidade. Hoje incomoda mais ainda. A foto, uma obra-prima, tinha carros estacionados na rua e à frente um menino quase andrajoso, em atitude de desafio encara a câmera com olhar duro. No ombro, uma flanelinha como símbolo da sua autoridade sobre o mundo. Um guerrilheiro. O título “A Nova Classe”, um resumo preciso e cirúrgico do livro “A 25ª. Hora”, do romeno C. Virgil Gheorghiu , que desvendou o poder da burocracia soviética segundo a visão de um camponês quase analfabeto. São chamados de “flanelinhas”. Ninguém sabe o que fazer com eles. Sabemos que os tememos. Pagamos proteção a eles.
Quando os anos chumbo pesaram demais da conta, a censura foi enganada, denunciada e ridicularizada com a publicação de receitas de bolos no lugar das notícias censuradas. Mu nunca deixou escapar qual o seu pensamento político. “Minas está onde sempre esteve e daqui não arredará pé por nada deste mundo”. Ele escreveu este texto antes mesmo de nascer. “Este texto”, registro. Puro medo do Mu. Ele dizia “A quem pede para ser redator, faço o teste do “este” e do “esse”. Se não souber usar um ou outro, está morto e sepultado”.
As receitas eram a cara dele. Fingindo de sérias na maior ironia, dizendo uma coisa e significando outra. Compatriota do Tostão, dribla tão bem quanto Tostão driblava. Pedalou na cara dos censores. Claro que pode ter sido idéia de outro. Mas é coisa do Mu. Se não for, Mu criou o clima para esta flor florescer. Criador de climas, vi profissionais mais que maduros de olhos marejados quando se referem “ao clima”.
“Rainha”, nunca entendi. Talvez pelo poder absolutista, discricionário que exercia. Talvez pela corte de súditos que então o cercava. “Sans cullotes” de vez em quando almejavam uma guilhotinazinha ali naquele Versailles cinzento, às margens do Tietê. “Rainha” da redação, ouvi tantas vezes a lenda urbana que admito que pode ser verdadeira. “Repetition reputation”.

Veja ilustre passageiro.

Não tenho anotações, mas alguma coisa me diz que foi há vinte anos, em 1987, que pela primeira vez vi o Mu na DPZ, onde eu trabalhava com o Z. O grande jornalista buscou o caminho que eu havia percorrido, entrou numa agência de propaganda. Ele criou o grupo do D, que não existia. Trabalhar na DPZ, o que fiz com enorme prazer em duas vezes que somam quase vinte anos, é andar numa interminável montanha russa sem cinto de segurança, entre uma letra e as outras, subindo com tremenda dificuldade e despencando com extrema facilidade e em desabalada carreira na estrada do sucesso. Isso para o comum dos mortais, como eu e você. Mu nunca teve esse problema.
Mu é um joalheiro da palavra, como o D sempre foi. Um artista das Artes, como o P e o Z sempre foram. Mu é tão bom quanto cada um deles nos seus respectivos “pontos de Força”, diria o bruxo D. Juan, do Castañeda. Mu tem a Força, tem a luz. Se necessário, mostra. Mostrou na DPZ.
No nosso primeiro dia de trabalho em agências diferentes mas vizinhas, eu era da Z e ele da D, quem sabe até aliadas, disso nunca tive muita certeza, cruzamos num corredor, ele olhou-me nos olhos e falou “Tem alguma coisa para me dizer sobre como isto (a vinda dele para a agência) pode dar certo? ” Simples, eu disse. Faça a mesma coisa que fazia no JT. Ele fez. Durou todo o tempo que quis.
Fez mais. Trabalho inspirado, especialidade do Mu, não era exceção na DPZ. Ela foi criada para sempre fazer o melhor possivel. Ruim também tinha, era da vida. O que o Mu fez de mais impressionante foi descobrir talentos, criar equipes. Os ovinhos da Serpente estão espalhados pelos jornais, revistas e agências de propaganda. Tocados pela luz, iluminavam-se. Espalham a luz.

Xanadu

Mu fez o seu castelo, que só conheço de ouvir dizer. Nem sei se é tudo verdade comprovável, ou se é mais um ilusionismo, “F for Fake”, a mão é mais rápida dos que os olhos, “now you see, now you don´t”. É um apartamento que foi reformado por uns 8 anos conforme o narrador, se discreto, ou por uns 10, se o narrador for chegado a um superfaturamento temporal. Nunca fui convidado para visitar a obra, nem o endereço fiquei sabendo, seria alguma coisa vaga como “praça Buenos Aires”. A única pessoa viva que conheço ao vivo que entrou naquele apartamento é o Tião Cannabis, detto Bernardi, que disfarçava sua vocação de empreiteiro com a falsa profissão de redator de propaganda.
Tião Cannabis, geralmente sob o efeito, contou-me que reunia-se com o Mu três vezes por semana para discutir o capolavoro deles, a Obra Prima, mas a discussão não chegava nem ao começo quanto mais ao fim. Mu, o Arquiteto, enfrentava Mu, o Cliente, no saloon do velho Oeste, olho no olho, mão no coldre. Como sempre o Cliente, dono da grana, sacava mais rápido e acertava o Arquiteto com um balaço certeiro no peito. Igualzinho na propaganda. Nesse pedaço, Tião desaparecia numa nuvem de fumaça (efeito especial) e viajava à Cloud Nine para encontrar o George Harrison e eu ficava sem saber o fim. Uma coisa ou outra eu entendia. A sala de som, separada do mundo real da rua e da vida real do resto da casa por isolamento especial, é perfeita para receber o piano, o equipamento e a coleção de raridades. Os pisos vieram de Milão, você precisaria entrar plantando bananeiras apoiando-se nas mãos, é proibido pisar neles. Não sei mais.
Xanadu ficou pronto. Não deveria ter ficado, deveria ser como catedral, uma Obra em Obra Permanente. Tião Cannabis foi emparedado vivo num dos cômodos e cessaram os vazamentos dos segredos do palácio do Faraó.
Conversei seriamente certa vez com os dois juntos, Mu e Tião, sobre essa diversificação profissional para o mercado das reformas, que faziam nos esconsos. Levei-os a um apartamento que eu tinha nos Jardins, um Lindenbergh super simpático de 180m2, um por andar, alameda Casa Branca 1012, bem em frente a rua Oscar Freire, um prédio de tijolos aparentes e janelas brancas. Você já deve ter passado em frente e dado uma namoradinha nele.
Os dois olharam por fora e por dentro, quase cuspiram em mim, fingi que não tinha reparado. Comadres-beatas, cochicharam em voz baixa. Dispensaram-me como cliente. As reformas a que se acostumaram custavam mais que meu apartamento valia. Sinto-me pobre até hoje quando escuto falar neles.
No dia em que uma ex-mulher separou-se dele, minha grande amiga até hoje, passou a tarde na minha casa. Fazia muito frio, a lareira acesa, ela chupou dúzias de mexericas, tomou quase uma garrafa de conhaque francês. O que contou está sob privilégio que protege as conversas entre paciente e terepeuta.
Nem mandado judicial consegue abrir esse segredo. Adianto que nunca estive tão perto de uma relação tão estranha, delicada, incompreensível. Artistas.

A carteira do Mu.

Nunca vi a carteira do Mu.

“... and Cut !”

Lumet encerra a tomada. Talvez para me agradar, chama-a de “Principal Photography”. Faz cara de impaciência. Tremo nas bases de novo. “Dispensem the subject (eu), vamos dar jeito nisso na sala de montagem, todos os filmes se fazem na sala de montagem. Tudo aqui é pure crap (puro lixo), mas há uma coisa que dá para aproveitar e tem o tempo certinho que the subject (eu) merece, 5 valiosos segundinhos. É aquela fala “Nunca vi a carteira do Mu”. O resto a gente joga. Pegamos os depoimentos daquelas pessoas interessantes que estão todas aqui em volta, damos uma olhada no roteiro do Herman Mankiewicz e do Orson Welles, que ganhou Oscar em 1941,ah sim, “Citizen Kane”. Montamos como Robert Wise montou “Citizen Kane”, pronto. Temos o Mu que ninguém ficará sabendo quem realmente é. Ninguém soube quem era Kane. Pensam até hoje que “Rosebud” era o trenó, parece que não sabem que “Rosebud” na verdade é o clitóris da Marion Davis, a amante dele”.

Ritinha e Delba na Young

Delba

Jose D' Elboux










Os "Gêmeos Arquitetos de Sacanagens" foi uma série de várias ilustrações. Deve ser do fina dos anos 80. O Murilo dizia que tinha conseguido me sublimar finalmente em desenho, e todas as caricaturas que ele fazia minha eram cópias dessa, onde ele só alterava a posição do olhar. Como sou arquiteto de formação as sacanagens vinham sempre com referências arquitetônicas.

segunda-feira, 28 de julho de 2008

murilofelisbertiano

Luiz Fleury

Não vá dar cano, Luiz Antonio. Hoje é quinta-feira, quase meia-noite, um pouco mais tarde do que o seu horário, Mu. Mas se você estivesse num dia animado, ficaria até mais tarde com “os meninos”. Principalmente se a noite estivesse agitada e o Spot cheio de mulheres bonitas. Aí eu pediria mais uma caipirinha. Toda vez que eu pedia uma caipirinha, repetia a mesma frase, que uma vez eu disse e que você se divertiu ao ouvir: “De pinga. Gelo, limão e açúcar, sem frescura.” Aí a garçonete perguntava qual cachaça e você mesmo respondia por mim: “Espírito de Minas”. E abria um sorriso murilofelisbertiano (isso quando o cara do bar não fazia a caipirinha antes mesmo de eu pedir e estragava tudo).
Mais um cafezinho, por favor. E uma água sem gás. Você reclamava muito dos meus furos na nossa mesa. E me ligava para almoçar, para compensar. Acho que ultimamente a gente estava mais almoçando e se falando pelo telefone do que se encontrando no lugar de sempre.
Putz, hoje nem sinal da praga da Corina. Quem será que teria nos atendido hoje? Se fosse um homem, estaríamos de péssimo humor. A não ser que ele trouxesse sua bola de sorvete num prato raso, sem errar. Sem você ter que pedir duas vezes.
Me conta uma novidade, Luiz Antonio. Mu, hoje eu tenho novidades, sim. Pediram para eu escrever um texto sobre você. Para eu contar alguma coisa interessante que tenha vivido ao seu lado, sabe? Não, não é bobagem. Você estava de saco cheio do mundo, mas o mundo não estava nem um pouco de saco cheio de você. Acho que precisava da sua lucidez mais do que nunca. E, por isso, aqueles que o conheceram querem deixar esse registro. Acho que, no fundo, você gostaria. Principalmente se o Danielzinho fizer o livro como frila e não como job. Seu Murilo, você não me engana: você também dizia odiar aniversários mas ficava feliz quando as pessoas ligavam para dar os parabéns.
Quer me irritar? Mu, não é nada fácil escrever sobre você. Aposto que essa conclusão está em vários outros textos do livro. No mínimo, ela passou pela cabeça da maioria das pessoas que colaboraram aqui. Porque, se fica difícil resumir qualquer pessoa em poucas linhas, no seu caso isso fica quase impossível (desculpe o lugar-comum, sei que se fosse usado por outra pessoa você até xingaria).
Não me venha com subliteratura. É, seu Murilo, escrever pede o uso da razão, um certo afastamento da emoção. Até quando queremos emocionar alguém com um texto, temos que ser racionais na ordem das letrinhas, na escolha das palavras, no encadeamento das sentenças. E isso dá muito trabalho. Um trabalho exaustivo, já que é extremamente difícil afastar essa tal de emoção quando a gente perde um grande amigo.
Luiz Antonio, vamos ver se você é um bom repórter. Decidi o seguinte, Mu: não vou dizer como você era, nem falar da sua complexidade, da sua genialidade, seu conhecimento, seu humor. A gente conversou quase todas as semanas nesses 10 anos de convívio. Nos primeiros anos, você como Diretor de Criação e eu como um moleque que achava que era redator. Depois, como amigos. O “board” original (Tião e Lu) e provavelmente o Ilan eram as pessoas mais próximas a você, mas chegamos a ter uma boa amizade, a ponto de eu conhecer bem suas idiossincrasias. Por isso, não se preocupe, não vou ser indiscreto e contar aqui alguma história confiada a mim em segredo. E muito menos alguma que exponha amigos. Vou escrever, no máximo, algumas historinhas divertidas que eu acompanhei de perto.
Tô puto. Pois é, Mu, eu também ando meio puto, só que comigo. Queria ilustrar meu textinho com algumas das caricaturas que você desenhou. Você não vai acreditar, tenho várias delas guardadas até hoje. Só não sei onde. Estão em alguma caixa, junto com recordações, recortes de jornais, revistas, livros. Você acompanhou de perto minhas três mudanças de emprego e três mudanças de casa, Mu- sabe que não é fácil achar as coisas no meio de tanta tranqueira. Quem estiver lendo isso aqui pode não entender. Mas, conhecendo suas caixas e sua bagunça, sei que você entenderia.
Tenho andado meio triste, Luiz Antonio. Eu também, Mu.

1- Companhia Teatral Murilo Felisberto

Logo no começo, ainda na DPZ, me caiu uma ficha: éramos todos personagens de uma peça escrita e dirigida pelo Murilo. Ele escolhia os atores e, depois, o personagem de cada um.
Com o tempo, pude ver que não fazia parte de apenas uma peça. O Murilo montou um Grupo Teatral, uma Companhia, que ao longo dos anos montou vários textos. Que Royal Shakespeare Company, TBC, Oficina, Living Theater, CPT, que nada. Os textos do Mu buscavam uma simplicidade absurda, suas montagens não tinham frescura. Eram peças cheias das pequenas coisas que importam à alma humana. Qualquer peça de Moliére é uma peça de iniciante se comparada a “O Galináceo”. “Santa Joana dos matadouros” não chega aos pés de “Ritinha, seu cão e o Santo”. “A Morte do Caixeiro Viajante”? Ridícula perto de “Nosso Lu”. E o que é “Vestido Noiva” perto de “As roupas de Rafael”?
Rafael, Ilan, Tião (Galináceo), Luciano Zuffo, Ritinha, Robson, Corina, Heitor, Danielzinho, Denis Kakazu (“contemplando o Monte Fuji”), Karin, Fabião, Toni e muitos outros tiveram o privilégio de atuar na CTMF na sua fase de atores-publicitários.

2- Reunião da revista

Danielzinho, pega a última edição da revista Carolina* e escaneia para mim.
Murilo Felisberto estava de péssimo humor naquele dia. Ele já não agüentava mais os constantes pedidos de refações feitos por um cliente. Na verdade, uma cliente (editora de uma revista). Eram sempre modificações sem sentido, alterações de lay-out que davam trabalho e não levavam a nada.
Ele aparentava uma idade muito maior que a real. Curvado, a cabeça calva e com manchas, os fios restantes completamente brancos. Sua aparente fragilidade escondia uma personalidade forte, que todas as equipes com a qual trabalhou conheciam bem. Ajeitou seus pequenos óculos redondos de armações grossas e arregaçou as mangas, literalmente. Dobrou até os cotovelos cada braço de sua camisa azul clara com listras escuras bem finas e caminhou no seu passo curto e rápido até a mesa de Daniel Kondo. O hoje ilustrador, na época, não sabia exatamente o que fazer. Mas o chefe sentou-se ao lado do pequeno japonês e começou a pedir algumas coisas. Em pouquíssimo tempo, Murilo Felisberto tinha refeito toda a capa da revista. De uma capa bagunçada e cheia de informações desnecessárias ela tinha se transformado em uma que não devia em nada para as revistas que são referências mundiais em lay-out. O autor da façanha abriu um sorriso sacana e não conteve um auto-elogio:
- Ficou bonitinho, né?
Uma reunião tinha sido marcada para o dia seguinte na editora. Assim que Murilo e sua dupla mais júnior chegaram à reunião, a cliente foi recebê-los. Uma senhora elegante, mas que por vários motivos não agradava em nada ao Murilo. Ele carregava, como sempre, suas revistas, um livrinho e um envelope pardo.
Adélia*, como você adora mudar os lay-outs e títulos dos nossos anúncios, a gente resolveu fazer umas coisinhas na sua capa também. De presente, para você!
Murilo colocou sua mão levemente manchada dentro do envelope e de lá retirou a capa criada por ele usando os braços do Danielzinho. A cliente espumou de raiva por dentro, a dupla júnior não sabia onde se enfiar e Murilo ficou esperando uma reação. A cliente, entendendo onde Murilo queria chegar, se mostrou mais inteligente do que o esperado. Acalmou-se, se recompôs e fingiu aceitar o presente, dizendo que ia mostrar a sugestão para o pessoal responsável pela direção de arte.
Murilo nunca foi a pessoa mais interessada do mundo em reuniões. Mais de noventa por cento de uma reunião é falação dispensável, não passa de tempo perdido e de teatro de segunda. O senhor Felisberto fazia questão de mostrar isso para as pessoas. Em todas as reuniões ele passava a maior parte do tempo de cabeça baixa, usando sua lapiseira sobre o papel. Dava rápidas olhadas para as pessoas na sala, mas somente para “pegar” seus melhores ângulos e momentos e registrá-los em caricaturas. Isso acontecia sempre. E estava acontecendo também naquela reunião, só que ainda mais ostensivamente. Enquanto a cliente contava seus “importantes” projetos para o próximo ano, ele interrompeu sem cerimônia a fala da mulher, mostrando com orgulho uma de suas caricaturas para a dupla.
Os jovens publicitários não sabiam o que fazer. Mas ainda assim Adélia conseguiu manter a compostura. Continuou falando, agora mais rápido e mais alto, tentando não acusar o golpe. Até que Murilo fez algo sensacional. Virou sua cadeira quase que de costas para a cliente e abriu seu livro. Em plena reunião, ele começou a ler tranqüilamente, como se estivesse na sala de sua casa ouvindo música. A cliente começou a mudar de cor, como em um desenho animado. Falava muito e alto, desesperadamente. Até que desistiu e encerrou a reunião por ali.
Na saída, enquanto esperava o elevador, Murilo tirou sua arma do bolso e falou baixo e calmamente, satisfeito:
Muito bom esse livrinho.

*Para preservar pessoas, os nomes foram trocados por outros que são completa, absurda e totalmente diferente. Datas também não são verdadeiras, nem locais. Na verdade, essa história nem foi bem assim.

3- Este, esse, neste, nesse

Poucas pessoas sabem usar essas quatro palavrinhas do jeito certo. O Murilo, além de jornalista, redator, diretor de arte e diretor de criação, era também um grande revisor.
Então, quando apresentei algumas vezes títulos ou textos com ESTE e ele mudou para ESSE, sempre fazendo uma careta por baixo dos seus óculos na ponta do nariz, achei normal.
Até que, numa dessas correções, tive certeza de que ele estava errado. Fui até o Ilan e perguntei o que ele achava. O Ilan, que estava mais acostumado com as canetadas do Murilo nos títulos do que eu (antes que me interpretem mal, aviso já: ele sempre foi o que melhor escreveu no sétimo andar, mas estava lá há bem mais tempo), na hora, respondeu:
Não adianta, eu não consigo entender essa porra de ESTE, ESSE do Murilo. Ele não segue regra.
Com o tempo, aprendi a não colocar essas palavras nos meus textos, por via das dúvidas. Mas observava ele corrigindo, às vezes, algumas pessoas. E descobri que o Ilan estava errado. O Murilo tinha, sim, uma regra. E ela era bem simples: se o senhor Murilo Felisberto estivesse de bom humor e de bem com você, ele deixava passar até os ESTES, ESSES, NESTES, NESSES que estivessem visivelmente mal empregados. Agora, se tivesse dentista marcado ou simplesmente querendo foder a sua vida por algum motivo, essa era mais uma das armas do bonzinho Murilo para te atormentar.


4- Festa junina

Um espetáculo fantástico acontecia todos os anos na DPZ: a festa junina. Mas não a da agência, que eu nem me lembro se existia. A festa junina da Escola Morumbi.
A Escola Morumbi ficava (e ainda fica) do outro lado da Avenida Cidade Jardim, quase em frente à DPZ. E, por algum motivo, nessa data, as criancinhas da escola visitavam a agência levando alguns docinhos.
Elas invadiam os andares, cheias de felicidade e barulho. Derrubando coisas, rindo, olhando com curiosidade para todos.
O Murilo tinha alergia àquelas crianças. Era automático: era só um daqueles pequenos seres entrar por uma porta que o Murilo saía por outra, não sem antes pegar sua revista ou jornal e enrolar debaixo do braço. Ele saía no mesmo passo que elas, apressado e irritado como uma criança mimada. E, como não podia deixar de ser, justificava isso com uma frase murilística: “adoro crianças, mas só em fotos”.

'aM/pM'

Rafael Urenha


Todo mundo, quando pára um minuto e olha para trás no tempo, consegue identificar um momento, um acontecimento que mudou sua vida para sempre. Um ponto na trajetória de cada um em que uma fração de tempo, um encontro, uma conversa, uma ligação mudou de vez o curso dos fatos, da história. Tenho certeza que para a maioria das pessoas que escrevem este livro, senão todas, o primeiro encontro ou a primeira conversa com o Murilo foi um desses pontos fundamentais. Tudo a partir dali seria diferente. Ou seja, aM/pM: antes do Murilo e pós Murilo.
A minha história começou com uma ligação. Não minha, mas da minha namorada na época. Além de namorada, ela também era redatora e fazia dupla comigo na primeira agência em que eu trabalhei, recém saído da faculdade. Ela ligou para a DPZ e, por um desses caprichos dodestino, foi atendida diretamente pelo Murilo. Ele era então um dos diretores de criação da agência. Todas as ligações passavam pela Andréa, sua secretária. E apenas parte delas o Murilo escolhia atender. Esta ele atendeu, e numa conversa rápida, descobriu que quem estava ali querendo marcar uma entrevista era a neta de uma antiga colega de jornal. Murilo adorou a coincidência e a entrevista foi marcada. Raramente ele via portfólios sem que alguém lhe tivesse indicado. Chegou o tal dia e ele adorou mais ainda quando uma jovem bonita, loira, toda arrumada entrou no sétimo andar. Afinal, ele estava "pontuando". Durante a entrevista, analisou a pasta com curiosidade. De quem é esse lay-out? É do Rafa. E esse aqui? É do Rafa. E esse outro? Também é do Rafa. Mas quem é esse Rafa? Meu namorado, ela disse. Uma vaia enorme ecoou pelo andar. Pronto, para ele, a visita tinha sido um sucesso. Só um pedido antes que ela fosse embora: peça para o Rafa dar um pulo aqui. Ganhei um emprego, perdi a namorada.
Desse dia até hoje, passaram-se dez anos. Durante muito tempo fui apenas o personagem desta história. Ele adorava contar pra todo mundo que aparecia no andar e apontar pra mim.
Depois, muitas outras histórias vieram. Muitos cafés ele me convidou a pagar na copinha do sétimo andar. Muitas noites de quinta no Spot vieram. Ele sempre querendo saber qual era a última fofoca da DPZ, qual era a marca da última camisa que eu tinha comprado (se ela tinha "se pagado"), qual era a última mulher com quem eu tinha saído, qual era o último cd que eu tinha comprado, qual era o último corte de cabelo, qual era o último show que eu tinha viajado pra ver. Ele queria sempre uma história nova. E eu me esforçava para não decepcioná-lo. Assim, como ele mesmo dizia, ele foi me inventando. Esse era era seu maior talento. Ele transformava pessoas. Ele inventava pessoas melhores.
Como no jornalismo e na publicidade, ele era um exímio editor. Sabia separar o bom do ruim, o bonito do feio, o engraçado do sem graça, o inteligente do medíocre, o importante do supérfluo.
Fazia isso com as pessoas com quem ele convivia. Fez isso comigo. Foi meu chefe, meu amigo, mestre, conselheiro, confidente, figura paterna. É um orgulho enorme ser um dos pupilos do Murilo. É um privilégio olhar pra trás e perceber que um dos personagens principais da minha história foi ele.
Obrigado, Mu. Que falta que você faz. Um beijo.
Rafa

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Murilo por Robsinho























Robson Alves de Oliveira

Vou começar a minha história no ponto em que começo a trabalhar com o Murilo. Mesmo tendo iniciado na DPZ no 5º andar onde o Mu era “apenas” diretor de arte, duplando com o Ricardo Freire, o trabalho tomou formato de escola quando ele assume a direção de criação do 7º andar e eu sou convidado a ser seu assistente. Eu nem fazia idéia da pessoa brilhante que, já naquela época, era Murilo Felisberto. Fui, aos poucos, aprendendo não só a trabalhar, mas a ver a vida de forma diferente. Vendo como ele lidava com as mais diferentes temáticas, como a reforma do seu apartamento (que, aliás, levou quase 10 anos), os melhores selos de música clássica, as mais completas revistas de audiófilos, e principalmente se eu sabia o que tinha acontecido na noite anterior com o Arminio Albuquerque Mendes de Caldeira ou outro nome qualquer.
Mas em todos esses quase 11 anos em que eu tive o privilégio de trabalhar diretamente com o Murilinho, o que vai permanecer gravado em minha mente era o que realmente importava para ele: as pessoas. E muitas pessoas tiveram a sorte de perceber isso e orbitaram em torno dele como mariposas em volta de uma lâmpada. Talvez em busca do calor da sua aprovação, talvez pela luz da sabedoria ou simplesmente porque as mariposas combinavam. Sim, isso era impressionante, a capacidade do Mucas misturar as pessoas mais diferentes e conseguir tirar delas o que elas tinham de melhor.
Hoje ele já não mais está aqui, mas quero levar comigo essa convicção de que o que realmente importa são pessoas e os relacionamentos que são construidos, independente de cargos, funções ou habilidades. Quero instigar as pessoas a viajarem, lerem, se divertirem, serem autênticos e críticos assim como ele fez por mim, porque assim estarei mantendo ele vivo e poderei continuar escrevendo a minha história.
História essa, que venho escrevendo ao longo destes anos com 4 letras, DPZ e M.

Obrigado Murilinho.

Seria bom tomar um café da manhã ali no Maksoud mais uma vez.

Saudades

Robson

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Meus Murilos

Moisés Rabinovici




















O tipo que marcou o nosso reencontro, na última fase da vida do Murilinho, foi o Gulliver, do holandês Gerard Unger, que também fez o Coranto, usado pelo jornal Valor. Pena que não o tenha agora para vestir este tributo. Então, vamos adiante mesmo com o Georgia, que é um dos meus preferidos atualmente.

Havia tempo que não trabalhávamos juntos. Separamo-nos quando Mu passou para a publicidade, e eu continuei no JT/ Estadão/Eldorado, correspondente oito anos em Israel, seis em Washington e mais dois anos em Paris, então para a Época – quase 20 anos sem nos ver, falar ou escrever.

Foi o Murilo quem me tirou de Belo Horizonte, no final de 1965, para formar a equipe que fundaria o JT no começo de 1966, e também do Brasil, para o Oriente Médio, em 1977, quando o presidente egípcio Anuar Sadat visitou Jerusalém, iniciando o processo de paz com Israel, ainda hoje muito longe de ser concluído.

- Vai e espera a paz – ele me pediu.

Agora estávamos de volta ao JT para recriá-lo, sob a direção de Fernão Mesquita. Reencontrei Murilinho excitado com o trabalho, como nos primeiros tempos. Mas sua saúde estava fragilizada, desde um escorregão feio na neve, em Nova York. Quebrou uma perna. Ficou um tempo hospitalizado, até voltar a São Paulo. Já não carregava mais jornais e revistas debaixo do braço, a sua antiga marca registrada. E mancava. Saía da redação para sessões de fisioterapia. E parecia ainda mais encurvado que antes. Tomava uma cápsula dissolvida em água, e alguns outros comprimidos, mas não os apresentava nem os explicava a ninguém. Já não ria da hipocondria que costumava projetar nos amigos. Nem se vangloriava de sua terapia ortodoxa.

- O Samuel anda de farmácia em farmácia perguntando: chegou alguma novidade da Bayer? – era um de seus casos preferidos. Ele próprio tinha se revelado um hipocondríaco sofisticado ao perguntar ao “Dr. Lisboa”, na verdade apenas um jornalista: “Existe câncer no coração?” Uma vez, a bordo de seu Opala branco, todo branco por dentro, como as paredes e os sofás de sua sala na redação, atravessou a Rebouças distraído. Um carro o pegou. Perdeu a memória por quase um mês. E recomeçou a viver com muito medo da morte. Tornou-o público, em conversas com amigos.

Mudou de assunto – não mais a morbidez que o perseguia. Quando não falava de jornalismo, contava da interminável reforma em seu apartamento. Interessava-se por qualquer obra em andamento. Queria saber de pisos, maçanetas, pias, azulejos. E dava palpites, tão informado quanto em sua outra incontestável especialidade, os aparelhos de som. Pedia-me para entrar em sites suecos, ele que ainda não sabia navegar na internet, para ficar apreciando válvulas. E se deleitava. Prometia que logo compraria um computador, só que antes queria ter certeza: Mac ou PC? Não tinha email. Ele gostava é de bilhetes em laudas, quanto mais comprometedores melhor. Colecionava-os. Uma vez me surpreendeu trazendo todos os meus pedidos de demissão, alguns amarelecidos pelo tempo.

A primeira missão que recebi no nosso reencontro foi a de descobrir qual era, afinal, aquele tipo usado no USA Today. A reforma do Murilo já estava andando quando voltei ao JT. Eu recuperava os anos de separação rapidamente. Muita coisa continuava igual. Redatores paparicados ontem, hoje desprezados. Tensão nas relações, nas reuniões e pelos corredores. Reclamações zangadas. Novo layout na redação para afastar quem tinha se tornado vizinho inconveniente da chefia. E a musa. Numa redação de Murilo havia que ter uma. Assim foi no Departamento de Pesquisa do JB. E no JT. Tudo temperado por muita fofoca, venenos inventados que criavam um clima no qual ele se sentia bem à vontade. Assédio moral? Não, isso não existia, mesmo que não o tratassem mais como um déspota, a “Rainha”, o célebre apelido que acabou ao se colorir a fase do puro branco.

Foi facílimo me desincumbir da primeira missão. Bastou um rápido telefonema para o Departamento de Arte do USA Today. “Gulliver”, respondeu quem atendeu. Nem nos apresentamos. Pus o nome do tipo no Google e cheguei a Gerard Unger, em Amsterdã. O negócio foi fechado alguns dias depois – e, se não me engano, por 25 mil dólares. Para se ter uma idéia, comprei uma fonte nova para o jornal que hoje dirijo – esta, Palatino Linotype, por apenas 90 dólares. A outra que ainda comprarei, Miller, está orçada abaixo de 500 dólares.

Que não se pense que o Murilo, ao ter o Gulliver em todos os computadores da redação, adotou-o assim, sem mais nem menos. Colocou-o em testes. Combinou inúmeras variações. Casamentos entre tipos diferentes. Encomendou centenas de provas. Queria estabelecer o espaçamento ideal entre as letras. E regras de uso. E eis que um dia, enfim, quando estávamos todos exaustos do laboratório gráfico, o Gulliver apareceu para os caros leitores do JT. O jornal se vestia de primeiro mundo numa roça que pouco ou nada o percebeu. Não houve cartas de leitores emocionados.

Importante é que o Murilo estava contente. Agora vai, todos torcíamos. Nem mesmo o sumiço da lapiseira com que sempre desenhava a capa do jornal arrefeceu o seu ânimo. Substituiu-a por uma das comuns, amarelas, uma daquelas que a gente descobre ter sido clonada na China. Ficou de ótimo humor por alguns dias. Assobiava Mozart, e não porque estivesse morrendo de ódio, como antigamente, na primeira fase do JT. Era só ouvir Mozart, e todos saíamos de perto. Vivaldi também.

Murilo era um tipo de manias. Seria assim como a fonte Kristen, associada à instabilidade, mas também à criatividade, ao feminino, à rebeldia e à excitação, como concluiu um estudo de percepção de fontes divulgado recentemente nos principais blogs de designers nos Estados Unidos. Sempre foi também ritualista, metódico. Repetia os restaurantes de que gostava, se possível sentando na mesma mesa, atendido pelo mesmo garçom, comendo o mesmo prato. Nos primórdios do JT, era o Gigeto. Depois, o Giovani Bruno, onde nem precisava pedir.

Nessa época, ele bebia vinho, e vinho importado, para desespero dos repórteres que o acompanhavam e com quem ele dividia a conta. Para nós, bastaria um chope, ou uma caipirinha. Nos últimos tempos freqüentava o Spot. Comigo gostava de comer bacalhau no La Bourse, na Bolsa de Valores, no velho centrão, onde nos reencontrávamos as sextas-feiras, depois que ambos deixamos o JT. Quando ainda havia pregão, encontrávamos os corretores jogando numa mesa de fundo do restaurante. Ele ficava fascinado, vendo-os. Tinha muito de sua economia pessoal em jogo ali naquele prédio, movimentado talvez por aqueles jogadores.

Outra mania notável do Murilinho o levou a conhecer os expedientes dos jornais internacionais. Guardava como um tesouro a coleção completa da revista alemã Twen, do revolucionário Willy Fleckhaus, que idolatrava. Falava com desenvoltura de mudanças em redações em Nova York e Londres. Sabia das últimas do mundo editorial. Do redesenho no Financial Times, que ele aplaudiu. Do nascimento do Sun NY, pró-israelense, que achava apenas correto, “todo certinho”. (Nunca vi ninguém querer tanto ser judeu... Sabia o significado das principais festas judaicas. E perguntava quando estourava mais uma crise no Oriente Médio: “Como é que estamos?” – por nós, entenda-se, os israelenses. Pensei em escolher para este texto fontes hebraicas - Aharoni, David, Miriam, Guisha, Levenim... Mas nem todas têm caracteres ocidentais. Seria uma forma de homenagear essa faceta dele que remetia a Woody Allen.

Murilo e Mino Carta deram uma lição única ao jornalismo brasileiro com o JT. Na maioria dos jornais, até hoje, repórter e redator preenchem módulos pré-moldados pela diagramação. A realidade que se adapte aos formatos, ou se limite aos tamanhos disponíveis. No JT, não: cada página era uma. O editor a desenhava depois de ler o texto e ver as fotos, muitas vezes já tendo um título pronto. Eu aprendi a desenhar páginas como se escrevesse um texto. Mas dei muitas rabinadas, como eram chamados os meus erros. E fugia constantemente do padrão: ai já era um neilismo, em homenagem a Neil Ferreira, com quem eu almoçava às vezes num restaurante macrobiótico, no Largo do Arouche. Os dois trabalharam juntos na Folha e depois na DPZ, um com o D e o outro com o Z. Também fui rabininho, nos acertos. E rabinóia, se baixasse em mim a paranóia de que estava sendo perseguido, aliás normal em judeus.

Mino não cultuava tanto o formalismo como o Murilo. Desenhava páginas também, e boas, mas era mais conteúdo. Sentava-se ao lado de repórteres com que topava travados em textos, pela madrugada, quando já ia embora, e ficava um pouquinho mais para socorrê-los. Um dia me pegou, procurando sem achar uma abertura, e me perguntou: “Mas qual foi a última coisa que aconteceu nesta sua matéria?” Depois, emendou: “Comece com ela...” Simples! Usei a ‘técnica’ para escrever num telex em Beirute que podia usar só por meia-hora por dia. Com uma agravante: telex não tem retorno, arrependimento. Escreveu, está escrito. Depois da primeira palavra, digita-se a segunda, então a terceira e assim até o final. Sem correções.

Murilo dava idéias ótimas de pauta, títulos certeiros e criava capas excepcionais. Mas pouco ou nada escrevia, além de legendas e olhinhos durante o fechamento. Ditava para o redator, na maioria das vezes. Na verdade, só li um texto dele, ótimo, publicado na revista Senhor: “A História das Histórias em Quadrinhos”. Vi em seu apartamento um belo piano de cauda. Também nunca o flagrei tocando. Amigos me disseram que tocava, sim, e até bem.

Os dois mestres brigaram uma noite no Gigeto, quando não trabalhavam mais juntos. Murilo levantou-se de sua mesa e foi cochichar em outra uma maldade sobre o Mino, e para – é claro! – o próprio Mino. Fofoca era irresistível para ele. Sucumbia à tentação sem medir conseqüências. Mesmo que o preço fosse alto. Acho que os dois nunca se reconciliaram. Nem na morte. Nós também brigamos uma única vez, neste reencontro no JT. Mas fizemos as pazes em seguida numa conversa no corredor, quando eu já ia embora.

Armava-se um vendaval no Grupo Estado. E nos separamos assim que ele desabou. Murilo foi o primeiro a ser abatido, por gente praticamente trazida, formada e mantida por ele desde os áureos tempos do JT. Nada profissional, apenas sórdida perseguição. Eu o vi saindo, encurvado e humilhado, e senti uma imensa tristeza. Lá ia o homem que tentava recriar o jornal de sucesso que criou décadas atrás. Partia sem volta. Para sempre. Quanta dor não terá sentido! Eu me antecipei, avisando que iria embora para dirigir o Diário do Comércio, publicado pela Associação Comercial de São Paulo. Era um novo desafio para mim. Não tinha aceitado o convite antes a pedido do Murilo. Agora sem ele, e indignado com o que lhe fizeram, era a única escolha. Mas me pediram que ficasse um pouco mais, tocando o jornal.

Murilo virou um poço de amargura. Escandalizava-se com o rumo popularesco dado ao JT, na contramão de tudo o que recomendava uma pesquisa feita ainda ao seu tempo. Numa sexta-feira de bacalhoada, que agora nos unia, paramos numa banca de jornal. Estava lá o jornal exposto. Não nos identificamos nenhum milímetro com o que vimos.

- Assim, o JT vai acabar – ele prognosticava. Mas agora eu acho que era ele, Murilo, que já estava morrendo. Suas visitas ao Diário do Comércio rareavam. Ele gostava de rever algumas das vítimas do vendaval no Estadão incorporados à minha equipe, ouvia meus impasses tipográficos sem opinar e nunca criticou o jornal, embora o recebesse toda manhã. Sumiu. Amigos comuns contavam: “ele comprou um Mac, finalmente”; “acabou a reforma infindável em seu apartamento”; “viajou para Lavras” (a sua cidade, em Minas); “o irmão morreu...”

Fui atrás do Murilo. Marcamos um bacalhau. Ele pediu: “convida a Tatiana”. Em cima da hora, nós já caminhando para o La Bourse, tocou meu celular: não estava bem, não viria. “Tudo que engulo embrulha meu estômago”. Na quinta-feira seguinte, voltou a chamar: “Não estou bem ainda. Acho que é um remédio que está me fazendo mal. Vamos tentar a próxima sexta”. E na próxima sexta eu é que liguei. Atendeu a filha, Carlota: - Papai acabou de morrer!

Rabininho - Moises Rabinovici

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Washington por Murilo Felisberto

Washington Olivetto

Sou péssimo fotografado (a culpa é minha) e raramente gosto das fotos em que apareço. Esta é uma exceção que eu adoro. Foi criada e produzida por Murilo Felisberto, parodiando a clássica foto do compositor Igor Stravinsky feita por Arnold Newman em 1946.

Mil novecentos e oitenta e pouco.
A gente trabalhava na DPZ e todo início de noite saíamos para beber.
Os bares eram invariavelmente dois: ou o Plano's, na Oscar Freire, ou O Anexo, no prédio da Dacon, bem ao lado da agência.
Murilo e eu éramos os mais assíduos nessas very happy hours.
Murilo estava sempre com sua inseparável pilha de jornais e revistas debaixo do braço.
Naquela época, nós bebíamos whisky em grande quantidade e, por isso mesmo, preferíamos os mais leves, ou “de meninas”, como a gente costumava dizer.
Nossas preferências eram o Cutty Sark, o Black & White e o JB.
Pentelho que só eu, no mínimo três vezes por semana, no início dessas incursões alcoólicas, eu fazia o mesmo comentário, e o Murilo sorria satisfeito, como se estivesse ouvindo aquela bobagem pela primeira vez: "Murilo. Ainda bem que a gente só vai a bares onde te conhecem, porque, com esse teu layout e esse monte de jornais e revistas debaixo do braço, se você for a qualquer bar em que você não é conhecido e pedir um JB, o garçom vai te trazer um jornal."

Pequena estória de uma grande amizade

Luciano Zuffo


Um belo dia recebi uma ligação para mostrar a pasta na DPZ. Ligaram em nome de Murilo Felisberto. Confesso que foi a primeira vez que escutei aquele nome. Eu nunca poderia imaginar que trabalharia lá por 4 anos e que faria uma amizade de quase 20. Como chefe, me ensinou muito sobre a profissão. Como amigo, me ensinou muito sobre a vida.

Obrigado por tudo, Murilo

Felipe Machado














No último domingo, 11 de maio, fez um ano que morreu Murilo Felisberto, um profissional a quem devo toda minha vida profissional. Se você está lendo esse texto agora, pode ter certeza de que a 'culpa' é dele. Murilo não me deu apenas um emprego: ele me deu uma carreira.

Aconteceu tanta coisa nesse ano que passou, tanta coisa que eu gostaria de ter contado a ele, de poder ouvir sua opinião... Aqui está, em homenagem ao mestre que se foi, o post que escrevi sob grande emoção no dia de sua morte, em 11 de maio de 2007.

Murilo, que com muito orgulho eu tinha intimidade para chamar de Mu, foi a pessoa mais interessante que já conheci. Primeiro, na DPZ, como Diretor de Criação, em 1997. Fui mostrar minha pasta (horrível) de redator, e não sei por que nem como, mas ele me convidou para ficar. Ele deve ter visto alguma coisa ali; não sei dizer o que era, porque o Murilo tinha isso de ser meio misterioso. Ou tímido, dizem alguns. Algumas vezes eu mostrava uma série com dezenas de títulos para anúncios; ele lia, olhava para mim e me devolvia o papel sem dizer nada. Era frustrante? Muito. Mas aí eu percebia que tinha que adivinhar o que era bom e o que era um lixo. Acredite, isso ensina muito.

Ensinar, aliás, é o que ele fazia de melhor. Por linhas tortas, mas ainda assim eram grandes aulas. Não no sentido professoral da palavra - ele não tinha paciência para isso -, mas no modo de contar uma história qualquer e ressaltar o que era importante e o que não era. Um detalhe pequeno, que você nem dava bola, podia ser a coisa mais interessante do mundo; bastava saber olhar. E isso foi uma coisa que o Murilo ensinou não apenas a mim, mas às dezenas de profissionais que choraram como eu na última sexta-feira: é preciso prestar atenção nas coisas importantes. Mesmo que elas estejam no pé da página.

Na DPZ, mais precisamente no 7º andar, o Murilo criou uma turma que mantém pouco contato mas muito carinho até hoje: Ilan, Dani, Rafa, Luiz Antonio, Fabião, Theo, Robson, Corina, Karin, Andréa, eu e vários outros. A gente se fala de vez em quando; gostaria que fosse mais frequente.

Saudades dói pra burro (ele ia odiar ler 'pra' em vez de 'para')... já estou com saudades de ver o Murilo olhando por cima dos óculos redondos de aro de tartaruga; das lapiseiras e canetas amontoadas no bolso da camisa; das revistas e jornais debaixo do braço ou se acumulando em pilhas e pilhas na sua mesa; do jeito com que ele conversava com você e, sem mais nem menos, sacava a lapiseira do bolso e rabiscava seu rosto num pedaço de papel em 15 segundos. E ficava genial. Ainda bem que guardei os meus desenhos.

Nada, no entanto, dava mais prazer ao Mu do que uma bela fofoca. E isso não tem nada de pejorativo. Murilo transformou a fofoca em forma de arte superior. Hoje vejo que aquilo não era fofoca: era uma base de informações pessoais sobre gente conhecida. E é o que move o mundo, acredite.

A última vez que falei com o Murilo foi no dia 28 de abril de 2007, dois dias antes de ele ser internado. Liguei para contar algumas novidades profissionais, mas nem precisava: ele já sabia de tudo. E com detalhes. Ele queria outros detalhes, outras histórias de amigos em comum, outros detalhes de histórias de amigos em comum. "Ando meio caseiro", contei.
Hoje eu me arrependo: eu deveria ter contado mais histórias, eu deveria ter ligado mais para ele, eu deveria ter frequentado mais a tradicional mesa do Spot das quintas-feiras. Eu deveria ter ficado mais próximo do meu querido amigo e mestre Murilo Felisberto. Mas a vida é assim, a gente nunca sabe o que nos espera na manhã seguinte. Nunca dá tempo para nada, tudo que realmente importa é deixado para amanhã. Ou para a semana que vem.

Em 2000, o Murilo voltou ao Jornal da Tarde, inventado por ele, e me contratou como repórter. A cada texto, a cada frase que eu escrevia, eu imaginava o Murilo lendo e comentando. Às vezes, vinham broncas reais, sempre com razão. A culpa era sempre minha, mas eu só percebia os erros depois que ele me apontava onde eles estavam. E lá ia eu para o próximo texto, tentando imaginar o que eu poderia fazer para impressioná-lo, para que ele me chamasse na sala e dissesse: 'aí, Felipão, gostei da matéria', ou algo do tipo. Mas isso também não acontecia com frequência. Às vezes ele me chamava e dizia: "leia bem isso que você escreveu". E só. Eu tinha que adivinhar o que era. Nem sempre adivinhava, mas a vida é assim mesmo.

Estou um pouco perdido em um mundo onde gente como o Murilo é cada vez mais rara. Sei que temos a obrigação de sermos os Murilos de amanhã, mas a responsabilidade é muito grande. Assusta.

Agora só resta fechar os olhos, continuar a trabalhar e parar de vez em quando para se perguntar: "o que será que o Murilo acharia deste texto?" Ele abaixaria os óculos, olharia de volta para mim e não diria nada.

http://blog.estadao.com.br/blog/palavra/

Sobre Mu

Dedé Laurentino

Não é preciso aqui descrever quem, ou como, era o Murilo. Todos sabemos. E sabemos bem. Um dos segredos para a gente gostar dele era o prazer em ir aprendendo, devagarinho, cada uma das manias dele.
Por exemplo: no restaurante, o Murilo pedia sopa de capeletti sem o capeletti. O mais curioso é que ele achava que não precisava explicar. O garçom é que devia entender que, quando o Murilo pede capeletti, na verdade ele não quer o capeletti. Para quem estava na mesa com ele, só restava torcer para o garçom não errar. Ou se divertir se ele errasse. Porque o Murilo de mau humor era ainda mais Murilo.
Aliás, um dos grandes prazeres dele era passar seu mau humor para alguém. Geralmente quando descobria o alto salário de um amigo. A primeira coisa que fazia era ligar para os outros amigos e contar a novidade. Quanto mais triste a gente ficasse, maior era sua alegria.
E de todas as paixões do Murilo, uma era definitivamente a maior. Não era a reforma do apartamento, não era o exemplar da StereoSound, nem um romance de pulp fiction. Era a fofoca. Viesse de onde viesse. Desde o namoro da vizinha, até os bastidores do alto escalão.
Os amigos mais diligentes chegavam a anotar num papelzinho a lista de fofocas para divertir o Murilo. E os amigos mais escolados fingiam sempre saber de quem ele estava falando, quando contava os segredos.
Uma das histórias que ele adorava terminou virando um bordão que ele volta e meia repetia. Era a história de um rapaz do jornal. Um dia, o chefe chamou e o demitiu. Mesmo assim, ele continuou indo trabalhar normalmente. Toda a redação achou aquilo estranhíssimo. Mas o rapaz ia trabalhar de segunda a sexta, apesar da demissão. Até que o Murilo foi lá perguntar: “ô fulano, você não foi demitido?” E o rapaz: “quer me irritar, é tocar neste assunto”.
Esta é uma boa resposta que o Murilo nos ensinou. Quando alguém vier nos perguntar se estamos sentindo muito a falta dele, respondamos: quer me irritar, é falar neste assunto.
Porque ele vai estar sempre com a gente, nas nossas melhores lembranças. Mesmo que elas possam estar encharcadas de saudade.
Vamos desejar que o Murilo descanse em paz, junto com os nossos mais sinceros agradecimentos por tanta coisa boa que ele representa para cada um de nós.
Muito obrigado, Murilo.

blog dos amigos do Murilo



















Esse blog é  para que os amigos do Murilinho se encontrem, se esbarrem, e, principalmente, escrevam. O primeiro post é o do Dedé. 
A ilustração, é minha, no estilo 'elwood smith', que o Murilo mais gostava. 
Irei publicando aos poucos as mensagens que os amigos escreveram nesses tempos de saudade.
Simbora cambada!!!!