segunda-feira, 28 de julho de 2008

murilofelisbertiano

Luiz Fleury

Não vá dar cano, Luiz Antonio. Hoje é quinta-feira, quase meia-noite, um pouco mais tarde do que o seu horário, Mu. Mas se você estivesse num dia animado, ficaria até mais tarde com “os meninos”. Principalmente se a noite estivesse agitada e o Spot cheio de mulheres bonitas. Aí eu pediria mais uma caipirinha. Toda vez que eu pedia uma caipirinha, repetia a mesma frase, que uma vez eu disse e que você se divertiu ao ouvir: “De pinga. Gelo, limão e açúcar, sem frescura.” Aí a garçonete perguntava qual cachaça e você mesmo respondia por mim: “Espírito de Minas”. E abria um sorriso murilofelisbertiano (isso quando o cara do bar não fazia a caipirinha antes mesmo de eu pedir e estragava tudo).
Mais um cafezinho, por favor. E uma água sem gás. Você reclamava muito dos meus furos na nossa mesa. E me ligava para almoçar, para compensar. Acho que ultimamente a gente estava mais almoçando e se falando pelo telefone do que se encontrando no lugar de sempre.
Putz, hoje nem sinal da praga da Corina. Quem será que teria nos atendido hoje? Se fosse um homem, estaríamos de péssimo humor. A não ser que ele trouxesse sua bola de sorvete num prato raso, sem errar. Sem você ter que pedir duas vezes.
Me conta uma novidade, Luiz Antonio. Mu, hoje eu tenho novidades, sim. Pediram para eu escrever um texto sobre você. Para eu contar alguma coisa interessante que tenha vivido ao seu lado, sabe? Não, não é bobagem. Você estava de saco cheio do mundo, mas o mundo não estava nem um pouco de saco cheio de você. Acho que precisava da sua lucidez mais do que nunca. E, por isso, aqueles que o conheceram querem deixar esse registro. Acho que, no fundo, você gostaria. Principalmente se o Danielzinho fizer o livro como frila e não como job. Seu Murilo, você não me engana: você também dizia odiar aniversários mas ficava feliz quando as pessoas ligavam para dar os parabéns.
Quer me irritar? Mu, não é nada fácil escrever sobre você. Aposto que essa conclusão está em vários outros textos do livro. No mínimo, ela passou pela cabeça da maioria das pessoas que colaboraram aqui. Porque, se fica difícil resumir qualquer pessoa em poucas linhas, no seu caso isso fica quase impossível (desculpe o lugar-comum, sei que se fosse usado por outra pessoa você até xingaria).
Não me venha com subliteratura. É, seu Murilo, escrever pede o uso da razão, um certo afastamento da emoção. Até quando queremos emocionar alguém com um texto, temos que ser racionais na ordem das letrinhas, na escolha das palavras, no encadeamento das sentenças. E isso dá muito trabalho. Um trabalho exaustivo, já que é extremamente difícil afastar essa tal de emoção quando a gente perde um grande amigo.
Luiz Antonio, vamos ver se você é um bom repórter. Decidi o seguinte, Mu: não vou dizer como você era, nem falar da sua complexidade, da sua genialidade, seu conhecimento, seu humor. A gente conversou quase todas as semanas nesses 10 anos de convívio. Nos primeiros anos, você como Diretor de Criação e eu como um moleque que achava que era redator. Depois, como amigos. O “board” original (Tião e Lu) e provavelmente o Ilan eram as pessoas mais próximas a você, mas chegamos a ter uma boa amizade, a ponto de eu conhecer bem suas idiossincrasias. Por isso, não se preocupe, não vou ser indiscreto e contar aqui alguma história confiada a mim em segredo. E muito menos alguma que exponha amigos. Vou escrever, no máximo, algumas historinhas divertidas que eu acompanhei de perto.
Tô puto. Pois é, Mu, eu também ando meio puto, só que comigo. Queria ilustrar meu textinho com algumas das caricaturas que você desenhou. Você não vai acreditar, tenho várias delas guardadas até hoje. Só não sei onde. Estão em alguma caixa, junto com recordações, recortes de jornais, revistas, livros. Você acompanhou de perto minhas três mudanças de emprego e três mudanças de casa, Mu- sabe que não é fácil achar as coisas no meio de tanta tranqueira. Quem estiver lendo isso aqui pode não entender. Mas, conhecendo suas caixas e sua bagunça, sei que você entenderia.
Tenho andado meio triste, Luiz Antonio. Eu também, Mu.

1- Companhia Teatral Murilo Felisberto

Logo no começo, ainda na DPZ, me caiu uma ficha: éramos todos personagens de uma peça escrita e dirigida pelo Murilo. Ele escolhia os atores e, depois, o personagem de cada um.
Com o tempo, pude ver que não fazia parte de apenas uma peça. O Murilo montou um Grupo Teatral, uma Companhia, que ao longo dos anos montou vários textos. Que Royal Shakespeare Company, TBC, Oficina, Living Theater, CPT, que nada. Os textos do Mu buscavam uma simplicidade absurda, suas montagens não tinham frescura. Eram peças cheias das pequenas coisas que importam à alma humana. Qualquer peça de Moliére é uma peça de iniciante se comparada a “O Galináceo”. “Santa Joana dos matadouros” não chega aos pés de “Ritinha, seu cão e o Santo”. “A Morte do Caixeiro Viajante”? Ridícula perto de “Nosso Lu”. E o que é “Vestido Noiva” perto de “As roupas de Rafael”?
Rafael, Ilan, Tião (Galináceo), Luciano Zuffo, Ritinha, Robson, Corina, Heitor, Danielzinho, Denis Kakazu (“contemplando o Monte Fuji”), Karin, Fabião, Toni e muitos outros tiveram o privilégio de atuar na CTMF na sua fase de atores-publicitários.

2- Reunião da revista

Danielzinho, pega a última edição da revista Carolina* e escaneia para mim.
Murilo Felisberto estava de péssimo humor naquele dia. Ele já não agüentava mais os constantes pedidos de refações feitos por um cliente. Na verdade, uma cliente (editora de uma revista). Eram sempre modificações sem sentido, alterações de lay-out que davam trabalho e não levavam a nada.
Ele aparentava uma idade muito maior que a real. Curvado, a cabeça calva e com manchas, os fios restantes completamente brancos. Sua aparente fragilidade escondia uma personalidade forte, que todas as equipes com a qual trabalhou conheciam bem. Ajeitou seus pequenos óculos redondos de armações grossas e arregaçou as mangas, literalmente. Dobrou até os cotovelos cada braço de sua camisa azul clara com listras escuras bem finas e caminhou no seu passo curto e rápido até a mesa de Daniel Kondo. O hoje ilustrador, na época, não sabia exatamente o que fazer. Mas o chefe sentou-se ao lado do pequeno japonês e começou a pedir algumas coisas. Em pouquíssimo tempo, Murilo Felisberto tinha refeito toda a capa da revista. De uma capa bagunçada e cheia de informações desnecessárias ela tinha se transformado em uma que não devia em nada para as revistas que são referências mundiais em lay-out. O autor da façanha abriu um sorriso sacana e não conteve um auto-elogio:
- Ficou bonitinho, né?
Uma reunião tinha sido marcada para o dia seguinte na editora. Assim que Murilo e sua dupla mais júnior chegaram à reunião, a cliente foi recebê-los. Uma senhora elegante, mas que por vários motivos não agradava em nada ao Murilo. Ele carregava, como sempre, suas revistas, um livrinho e um envelope pardo.
Adélia*, como você adora mudar os lay-outs e títulos dos nossos anúncios, a gente resolveu fazer umas coisinhas na sua capa também. De presente, para você!
Murilo colocou sua mão levemente manchada dentro do envelope e de lá retirou a capa criada por ele usando os braços do Danielzinho. A cliente espumou de raiva por dentro, a dupla júnior não sabia onde se enfiar e Murilo ficou esperando uma reação. A cliente, entendendo onde Murilo queria chegar, se mostrou mais inteligente do que o esperado. Acalmou-se, se recompôs e fingiu aceitar o presente, dizendo que ia mostrar a sugestão para o pessoal responsável pela direção de arte.
Murilo nunca foi a pessoa mais interessada do mundo em reuniões. Mais de noventa por cento de uma reunião é falação dispensável, não passa de tempo perdido e de teatro de segunda. O senhor Felisberto fazia questão de mostrar isso para as pessoas. Em todas as reuniões ele passava a maior parte do tempo de cabeça baixa, usando sua lapiseira sobre o papel. Dava rápidas olhadas para as pessoas na sala, mas somente para “pegar” seus melhores ângulos e momentos e registrá-los em caricaturas. Isso acontecia sempre. E estava acontecendo também naquela reunião, só que ainda mais ostensivamente. Enquanto a cliente contava seus “importantes” projetos para o próximo ano, ele interrompeu sem cerimônia a fala da mulher, mostrando com orgulho uma de suas caricaturas para a dupla.
Os jovens publicitários não sabiam o que fazer. Mas ainda assim Adélia conseguiu manter a compostura. Continuou falando, agora mais rápido e mais alto, tentando não acusar o golpe. Até que Murilo fez algo sensacional. Virou sua cadeira quase que de costas para a cliente e abriu seu livro. Em plena reunião, ele começou a ler tranqüilamente, como se estivesse na sala de sua casa ouvindo música. A cliente começou a mudar de cor, como em um desenho animado. Falava muito e alto, desesperadamente. Até que desistiu e encerrou a reunião por ali.
Na saída, enquanto esperava o elevador, Murilo tirou sua arma do bolso e falou baixo e calmamente, satisfeito:
Muito bom esse livrinho.

*Para preservar pessoas, os nomes foram trocados por outros que são completa, absurda e totalmente diferente. Datas também não são verdadeiras, nem locais. Na verdade, essa história nem foi bem assim.

3- Este, esse, neste, nesse

Poucas pessoas sabem usar essas quatro palavrinhas do jeito certo. O Murilo, além de jornalista, redator, diretor de arte e diretor de criação, era também um grande revisor.
Então, quando apresentei algumas vezes títulos ou textos com ESTE e ele mudou para ESSE, sempre fazendo uma careta por baixo dos seus óculos na ponta do nariz, achei normal.
Até que, numa dessas correções, tive certeza de que ele estava errado. Fui até o Ilan e perguntei o que ele achava. O Ilan, que estava mais acostumado com as canetadas do Murilo nos títulos do que eu (antes que me interpretem mal, aviso já: ele sempre foi o que melhor escreveu no sétimo andar, mas estava lá há bem mais tempo), na hora, respondeu:
Não adianta, eu não consigo entender essa porra de ESTE, ESSE do Murilo. Ele não segue regra.
Com o tempo, aprendi a não colocar essas palavras nos meus textos, por via das dúvidas. Mas observava ele corrigindo, às vezes, algumas pessoas. E descobri que o Ilan estava errado. O Murilo tinha, sim, uma regra. E ela era bem simples: se o senhor Murilo Felisberto estivesse de bom humor e de bem com você, ele deixava passar até os ESTES, ESSES, NESTES, NESSES que estivessem visivelmente mal empregados. Agora, se tivesse dentista marcado ou simplesmente querendo foder a sua vida por algum motivo, essa era mais uma das armas do bonzinho Murilo para te atormentar.


4- Festa junina

Um espetáculo fantástico acontecia todos os anos na DPZ: a festa junina. Mas não a da agência, que eu nem me lembro se existia. A festa junina da Escola Morumbi.
A Escola Morumbi ficava (e ainda fica) do outro lado da Avenida Cidade Jardim, quase em frente à DPZ. E, por algum motivo, nessa data, as criancinhas da escola visitavam a agência levando alguns docinhos.
Elas invadiam os andares, cheias de felicidade e barulho. Derrubando coisas, rindo, olhando com curiosidade para todos.
O Murilo tinha alergia àquelas crianças. Era automático: era só um daqueles pequenos seres entrar por uma porta que o Murilo saía por outra, não sem antes pegar sua revista ou jornal e enrolar debaixo do braço. Ele saía no mesmo passo que elas, apressado e irritado como uma criança mimada. E, como não podia deixar de ser, justificava isso com uma frase murilística: “adoro crianças, mas só em fotos”.

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