terça-feira, 29 de julho de 2008

Citizen Mu

Neil Ferreira

Dos dois Sidneys que mais gosto no cinema, o Pollack e o Lumet, escolheram o Lumet para este trabalho. Suo frio, tenho medo dele, é um perfeccionista. A primeira coisa que faz é uma reunião com a equipe para definir “o que estamos fazendo aqui”. Quer o ponto de vista de cada um. “Será um depoimento, the subject (eu) sentado ali, aqui câmera fixa, luz rebatida lateral, tentaremos som direto sem dublagem posterior”, resuniu e decidiu. Respirei aliviado, “piece of cake”, vai ser moleza, pensei. Gelei de novo quando acrescentou “Nessas tomadas geralmente the subject (eu de novo) atrapalha-se todo, vamos tentar ter mais paciência desta vez”. “Desta vez”, poxa, já perderam a paciência uma vez..
Para mm: “Relaxe, seja natural, se quiser se mexer pode, deixe a história fluir, se gaguejar não tem importância, você não é um boneco”.

“... roll camera ... aaand... Action !”

(Encaro a câmera, começo a falar. Não paro mais.)
Como é mesmo o nome daquele italiano do “Assim é se lhe parece”, esqueci. Estou na mira do “serial killer” islâmico especializado em explodir indefesos quadros sobreviventes da terceira idade. Vocês devem ter ouvido falar, é o Al Zheimer, obriga-me a esquecer quase tudo. (Árabe sempre começa com al, al-fabeto, al-ameda, al-cool, al-zheimer).
Minha filha Ju me chama de “Baronesa”, personagem de uma novela que tinha uma vilã deliciosa (jogava os desafetos escada abaixo) e um bicheiro gordo engraçadíssimo. A “Baronesa” curtia pegar um colar de brilhantes, o último restinho da sua fortuna, colocar no pescoço, olhar-se no espelho e depois esquecia onde o tinha deixado. Sou eu. Se tivesse um colar de brilhantes, já teria perdido. Ou, irresponsável, passado nos cobres para gastar em Paris.
Eu queria lembrar o italiano para mudar a frase dele, que quase todo mundo já ouviu ou leu, para “Assim é se me parece”.
O Mu não é o que vou falar. O Mu me parece o que vou falar. Tenho sorte de não submeter isto a ele. Mandaria cortar os dois ou três minutos iniciais por ser uma forma antiga de fazer jornalismo. Não me permitiria dizer que não sou jornalista e esta é a forma que escolhi para contar uma história, não para fazer uma reportagem. Talvez por isso, lamento nunca ter submetido nada a ele. Ambos perdemos as chispas que voariam.
Quando ele for assassinado, tenho uma centena de suspeitos que de bom grado acertariam contas com ele por textos, idéias, fotos, ilustrações recusados apenas com o olhar, sem um som, uma explicação, um gesto, um suspiro que fosse.
É para ser como se estivessemos na mesma mesa do mesmo bar, todas as noites das quinta-feiras, jogando conversa fora, salvando a imprensa e a propaganda da burrice coletiva, ou puxando angústia porque aquela menina que acabou de chegar a bordo de um fotógrafo famoso e com cara de sujinho, nunca deu para mim, nem vai dar.
Como o Mu, sou um animal de hábitos sistemáticos, o Mu e a minha Gata Velha e Gorda. Não frequento bares, quanto mais na mesma mesa e na mesma noite da semana. Não fumo, não suporto fumaça de cigarros e bares são ambientes cheios de fumaça desagradável. Na minha anti-lei, a fumaça sempre acha o nariz de quem não fuma, o meu nariz. Fico em casa, escolho o som, a marca do uísque que gosto está lá, embora não experimente uma gota há anos. Quem quiser fumar que vá para a varanda. Lá fora pode. Não teria como contar esta história a ele. Ainda bem.
Uma coisa sei que o Mu ouviria com prazer. Conheço-o desde os anos 60, mais de 40 anos. Não o conheço. Mu mostra-se aos poucos, um pouco para cada um, como se fosse o Jack “The Ripper” dele mesmo. Estou familiarizado só com algumas partes. Um pedaço do rosto aqui, meio sorriso ali, uma nesga de ironia mais à frente, seriedade fúnebre numa balangada inesperada para trás, uma ex-mulher anos depois.
Um diabólico esfregar das mãos finas, frágeis, daqui a pouco quebram, com um sorrisinho (hã-hã-hã) carregado de veneno quando a fofoca, se espalhada, resultaria em demissão, quebra-pratos de casais, junção de namorados, desjunção de amantes. A primeira menina do meio que comia outra, fiquei sabendo pela boca do Mu. Até hoje não sei se era a sério ou a brinca, ele não foi claro, foi reticente. Cool. Mineiro.
Nosferatu redivivo. Rei da fofóca. “Rainha” da redação. Torquemada da forma, condenava os pecadores aos infernos e quem por milagre sobrevivesse à inquisição, ia direto para o céu. Traço beat, como Feiffer. Sovaco Mais Bem Informado do Mundo, com revistas e jornais o tempo todo. Artista.
Apenas partes incompletas de uma imagem pública cuidadosamente construida e a identidade real cuidadosamente escondida, pelo menos dos meus olhos. Nunca vi o Mu nu, nem conheço quem tenha visto. Mas sei que ele é como os Beatles. O todo é maior do que a soma das partes. Ninguém que eu conheço conhece o todo. Tento iluminar as partes que acho que vi e penso que entendi.

Vinte anos esta noite.

Só soube a idade do Mu um dia destes, 67 anos. Pego a calculadora e faço um “flash-back” de 45 anos. Ao meu lado um menino magrinho, olhos e cabelos claros já então parecendo ralos, ligeiramente encurvado, jornais e revistas sob o braço, ele vinte e pouquíssimos anos eu vinte amanhã. Andamos na rua 7 de Abril vazia, quase meia noite, ouviamos os sons dos nossos passos.
Convoco o viciado em livros e amante de cinema que mora dentro mim para testemunhar sobre aquela noite.
Cavoco num canto da memória “Le Feu Follet”, de Drieu de la Rochelle, e uma lata com o filme que Louis Malle tirou do livro. “Le Feu Follet” é mais ou menos “fogo fátuo”, que brilha intensamente, ilumina tudo e apaga-se em segundos. O livro é nada menos do que genial. O filme é melhor ainda.
Drieu foi colaboracionista durante a ocupação da França na segunda guerra. A Resistência marcou-o como traidor. Suicidou-se na derrocada do nazismo.
Malle foi resistente. Brilhante cineasta de esquerda. Fez um filme apaixonado.
O livro e o filme vieram ao Brasil com o nome “30 anos esta noite”. Não perca se tiver chance. É a história da noite em que o personagem completa 30 anos. A advertência hippie “Nunca confie em ninguém com mais de 30 anos” ainda não tinha sido escrita, mas parece que já valia. Não conto mais.
A partir dessa noite, percebi que Mu brilharia intensamente. Iluminou tudo por 45 anos em pouquíssimos segundos. Fogo fátuo, “Le feu follet”. Não há nada no jornalismo e depois na propaganda que não tenha recebido sua luz.
A conversa dessa noite durou até amanhecer e espichou-se pelos dois anos seguintes, quando trabalhamos na redação da Folha de S. Paulo.
Se os federais nos grampeassem com a desenvoltura com que grampeiam hoje, seriamos pegos e internados separados, um em cada manicômio. Era uma conversa atropelada, um falando em cima da fala do outro, sem pausa para respiração, eu maníaco por saber como escrever bem e quem escrevia bem. Mu, visão mais ampla, para quem o texto era apenas um detalhe (muito mais tarde o Parreira definiu o gol como apenas um detalhe), queria saber como juntar o texto, as fotos, os tipos, o tom, o jeitão, para chegar a um todo original, único, fora do comum, supreendente.
Eu recitava textos de Tom Wolfe, Jimmy Breslin, Gay Talese, Truman Capote, Norman Mailer, Brendan Gill e sua equipe da revista New Yorker e quase tudo o que passou a se chamar “New Jounalism”.
Mu recitava nomes e o trabalho de editores de arte, fotógrafos, ilustradores, chargistas, diretores de tipos, designers de jornais e revistas norte-americanos e europeus. Dos francêses e inglêses, aprendia a inteligência, beleza, elegância. Dos norte-americanos, sugava a emoção, a busca da velocidade na informação, a briga para chegar e sair antes da cena da ação e de chegar antes na redação. Mas sobretudo a busca de um jornal que desse um susto no leitor e levasse o concorrente à beira do suícidio.
No dia seguinte na Folha nós é que beiravamos o suicídio. A análise diária, a discussão interminável do que haviamos feitos ontem era de matar. A gente na hora “largava esta merda de emprego”, reclamava o que podia, desabafava. Os caras do copy e da diagramação eram agentes infiltrados do inimigo, queriam nos ferrar. “Aquele cara fodeu a minha matéria !” era o que se ouvia. “Aquele cara”, quem quer que fosse, corria o risco de levar um cacete quando “largava” (o trabalho) nas madrugadas frias, silenciosas, solitárias e ainda serenas.
A nossa “Mesa no Algonquin” era no boteco pé sujo da esquina. Tinha um H. L. Mencken das frases tortas, mal humoradas e engraçadas, o repórter José Hamilton Ribeiro, o melhor dos melhores, que mais tarde perderia um pé num mau passo dado sobre uma mina terrestre, ao cobrir a guerra do Vietnã. Não havia menina tão bela e maledicente como Dorothy Parker, a “Big Loira”. Pena.
Mu, guru, jogava gasolina e tocava fogo na insatisfação quase em silêncio, só com olhares de desaprovação ou aprovação. Quanto mais indignados nos via, mais aprovava. “Não é profissão de conformistas” sentenciava. “Conformistas vão ser bancários, ver novela da Globo”, desprezava.
A liderança exercida mansamente, diria silenciosamente, sem imposição, vinha da luz. Já emanava luz, não percebíamos.
E começava tudo de novo. Hoje é outro dia, uma nova oportunidade, as coisas não param de acontecer, quem sabe estoura mais um escândalo de corrupção no governo ou cai um avião lotado em algum lugar do mundo, um Tsunami dos bons, um belo Katrina. Filhotinhos de urubus crocitando como adultos.
Em 1964, no dia 1º. de abril, as ruas congestionadas por tanques de guerra, eu tinha deixado a Folha. Havia trocado o jornalismo pela publicidade. Estava na janela da Standard Propaganda, na Praça Roosevelt, na lateral da Igreja da Consolação, vendo a tropa passar. Meu primeiro dia de trabalho. Não fiz nada.
Mu tinha nada menos do que um golpe de Estado para fazer o jornal brilhar. Fez.

“Rainha” da redação.

Época de ouro do Jornal da Tarde, vespertino que durante anos foi o melhor jornal que se fez no Brasil. Atrevido, irreverente, inovador. O Diretor de Redação era uma lenda do jornalismo. Mu e sua quadrilha de mineiros, cada um melhor do que o outro, conferia realismo ao dia-a-dia da lenda. Leitor e torcedor, ficava hoje com o JT na mão imaginando o que esses caras vão fazer amanhã. Tinham que parir a cada dia, 9 meses em algumas horas, o novo filho, bonito e saudável a ser entregue nas bancas daqui a pouco.
Via as capas e me emocionava, algumas pregava na parede, como obras de arte que eram. A do comício das “Diretas Já”, na página inteira a multidão que foi às ruas exigir democracia. Virou um poster hoje amassado, rasgado e semi-desmanchando que ainda tenho em casa. A que anunciou a derrota da emenda das “Diretas Já”, tudo negro, escancarando o luto nacional. Quando perdemos a Copa do Mundo da Espanha com o divino time do Telê, o garotinho com a camisa amarela da seleção, uma lágrima escorrendo pelo rosto em página inteira, a mesma lágrima que escorreu nos nossos rostos depois dqueles 3 gols fatídicos do Paolo Rossi.
Sentia que tinha visto de pertinho e nem percebido a cabeça do Mu engravidar desse tipo de pensar, de criar, de fazer, de cobrar, de cobrar-se.
Mu aprendeu com o Mu. Não havia escola e nem quem ensinasse o que ele ia aprendendo, como o comandante Mao mandou: “uma revolução se aprende fazendo”. Colocou inteligência e beleza no trabalho. Cultura também. Nesse tempo, os culturatti escreviam para jornal, não faziam jornal.
Um dia o JT apareceu com uma reportagem de página inteira e meteu o dedo na ferida, que então começava a incomodar a cidade. Hoje incomoda mais ainda. A foto, uma obra-prima, tinha carros estacionados na rua e à frente um menino quase andrajoso, em atitude de desafio encara a câmera com olhar duro. No ombro, uma flanelinha como símbolo da sua autoridade sobre o mundo. Um guerrilheiro. O título “A Nova Classe”, um resumo preciso e cirúrgico do livro “A 25ª. Hora”, do romeno C. Virgil Gheorghiu , que desvendou o poder da burocracia soviética segundo a visão de um camponês quase analfabeto. São chamados de “flanelinhas”. Ninguém sabe o que fazer com eles. Sabemos que os tememos. Pagamos proteção a eles.
Quando os anos chumbo pesaram demais da conta, a censura foi enganada, denunciada e ridicularizada com a publicação de receitas de bolos no lugar das notícias censuradas. Mu nunca deixou escapar qual o seu pensamento político. “Minas está onde sempre esteve e daqui não arredará pé por nada deste mundo”. Ele escreveu este texto antes mesmo de nascer. “Este texto”, registro. Puro medo do Mu. Ele dizia “A quem pede para ser redator, faço o teste do “este” e do “esse”. Se não souber usar um ou outro, está morto e sepultado”.
As receitas eram a cara dele. Fingindo de sérias na maior ironia, dizendo uma coisa e significando outra. Compatriota do Tostão, dribla tão bem quanto Tostão driblava. Pedalou na cara dos censores. Claro que pode ter sido idéia de outro. Mas é coisa do Mu. Se não for, Mu criou o clima para esta flor florescer. Criador de climas, vi profissionais mais que maduros de olhos marejados quando se referem “ao clima”.
“Rainha”, nunca entendi. Talvez pelo poder absolutista, discricionário que exercia. Talvez pela corte de súditos que então o cercava. “Sans cullotes” de vez em quando almejavam uma guilhotinazinha ali naquele Versailles cinzento, às margens do Tietê. “Rainha” da redação, ouvi tantas vezes a lenda urbana que admito que pode ser verdadeira. “Repetition reputation”.

Veja ilustre passageiro.

Não tenho anotações, mas alguma coisa me diz que foi há vinte anos, em 1987, que pela primeira vez vi o Mu na DPZ, onde eu trabalhava com o Z. O grande jornalista buscou o caminho que eu havia percorrido, entrou numa agência de propaganda. Ele criou o grupo do D, que não existia. Trabalhar na DPZ, o que fiz com enorme prazer em duas vezes que somam quase vinte anos, é andar numa interminável montanha russa sem cinto de segurança, entre uma letra e as outras, subindo com tremenda dificuldade e despencando com extrema facilidade e em desabalada carreira na estrada do sucesso. Isso para o comum dos mortais, como eu e você. Mu nunca teve esse problema.
Mu é um joalheiro da palavra, como o D sempre foi. Um artista das Artes, como o P e o Z sempre foram. Mu é tão bom quanto cada um deles nos seus respectivos “pontos de Força”, diria o bruxo D. Juan, do Castañeda. Mu tem a Força, tem a luz. Se necessário, mostra. Mostrou na DPZ.
No nosso primeiro dia de trabalho em agências diferentes mas vizinhas, eu era da Z e ele da D, quem sabe até aliadas, disso nunca tive muita certeza, cruzamos num corredor, ele olhou-me nos olhos e falou “Tem alguma coisa para me dizer sobre como isto (a vinda dele para a agência) pode dar certo? ” Simples, eu disse. Faça a mesma coisa que fazia no JT. Ele fez. Durou todo o tempo que quis.
Fez mais. Trabalho inspirado, especialidade do Mu, não era exceção na DPZ. Ela foi criada para sempre fazer o melhor possivel. Ruim também tinha, era da vida. O que o Mu fez de mais impressionante foi descobrir talentos, criar equipes. Os ovinhos da Serpente estão espalhados pelos jornais, revistas e agências de propaganda. Tocados pela luz, iluminavam-se. Espalham a luz.

Xanadu

Mu fez o seu castelo, que só conheço de ouvir dizer. Nem sei se é tudo verdade comprovável, ou se é mais um ilusionismo, “F for Fake”, a mão é mais rápida dos que os olhos, “now you see, now you don´t”. É um apartamento que foi reformado por uns 8 anos conforme o narrador, se discreto, ou por uns 10, se o narrador for chegado a um superfaturamento temporal. Nunca fui convidado para visitar a obra, nem o endereço fiquei sabendo, seria alguma coisa vaga como “praça Buenos Aires”. A única pessoa viva que conheço ao vivo que entrou naquele apartamento é o Tião Cannabis, detto Bernardi, que disfarçava sua vocação de empreiteiro com a falsa profissão de redator de propaganda.
Tião Cannabis, geralmente sob o efeito, contou-me que reunia-se com o Mu três vezes por semana para discutir o capolavoro deles, a Obra Prima, mas a discussão não chegava nem ao começo quanto mais ao fim. Mu, o Arquiteto, enfrentava Mu, o Cliente, no saloon do velho Oeste, olho no olho, mão no coldre. Como sempre o Cliente, dono da grana, sacava mais rápido e acertava o Arquiteto com um balaço certeiro no peito. Igualzinho na propaganda. Nesse pedaço, Tião desaparecia numa nuvem de fumaça (efeito especial) e viajava à Cloud Nine para encontrar o George Harrison e eu ficava sem saber o fim. Uma coisa ou outra eu entendia. A sala de som, separada do mundo real da rua e da vida real do resto da casa por isolamento especial, é perfeita para receber o piano, o equipamento e a coleção de raridades. Os pisos vieram de Milão, você precisaria entrar plantando bananeiras apoiando-se nas mãos, é proibido pisar neles. Não sei mais.
Xanadu ficou pronto. Não deveria ter ficado, deveria ser como catedral, uma Obra em Obra Permanente. Tião Cannabis foi emparedado vivo num dos cômodos e cessaram os vazamentos dos segredos do palácio do Faraó.
Conversei seriamente certa vez com os dois juntos, Mu e Tião, sobre essa diversificação profissional para o mercado das reformas, que faziam nos esconsos. Levei-os a um apartamento que eu tinha nos Jardins, um Lindenbergh super simpático de 180m2, um por andar, alameda Casa Branca 1012, bem em frente a rua Oscar Freire, um prédio de tijolos aparentes e janelas brancas. Você já deve ter passado em frente e dado uma namoradinha nele.
Os dois olharam por fora e por dentro, quase cuspiram em mim, fingi que não tinha reparado. Comadres-beatas, cochicharam em voz baixa. Dispensaram-me como cliente. As reformas a que se acostumaram custavam mais que meu apartamento valia. Sinto-me pobre até hoje quando escuto falar neles.
No dia em que uma ex-mulher separou-se dele, minha grande amiga até hoje, passou a tarde na minha casa. Fazia muito frio, a lareira acesa, ela chupou dúzias de mexericas, tomou quase uma garrafa de conhaque francês. O que contou está sob privilégio que protege as conversas entre paciente e terepeuta.
Nem mandado judicial consegue abrir esse segredo. Adianto que nunca estive tão perto de uma relação tão estranha, delicada, incompreensível. Artistas.

A carteira do Mu.

Nunca vi a carteira do Mu.

“... and Cut !”

Lumet encerra a tomada. Talvez para me agradar, chama-a de “Principal Photography”. Faz cara de impaciência. Tremo nas bases de novo. “Dispensem the subject (eu), vamos dar jeito nisso na sala de montagem, todos os filmes se fazem na sala de montagem. Tudo aqui é pure crap (puro lixo), mas há uma coisa que dá para aproveitar e tem o tempo certinho que the subject (eu) merece, 5 valiosos segundinhos. É aquela fala “Nunca vi a carteira do Mu”. O resto a gente joga. Pegamos os depoimentos daquelas pessoas interessantes que estão todas aqui em volta, damos uma olhada no roteiro do Herman Mankiewicz e do Orson Welles, que ganhou Oscar em 1941,ah sim, “Citizen Kane”. Montamos como Robert Wise montou “Citizen Kane”, pronto. Temos o Mu que ninguém ficará sabendo quem realmente é. Ninguém soube quem era Kane. Pensam até hoje que “Rosebud” era o trenó, parece que não sabem que “Rosebud” na verdade é o clitóris da Marion Davis, a amante dele”.

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