sábado, 27 de setembro de 2008

Murilinho, o Magnífico

Júlio Moreno

Para ser sincero, eu não fazia parte da corte da “Rainha”, ou seja, daquele grupo da redação do JT mais íntimo do Murilinho. Mas havia entre nós algo em comum: o interesse por São Paulo. Eu, “repórter de cidade” ingênuo, acreditava que o urbanismo e uma boa administração municipal seriam a salvação de todas nossas mazelas. Ele, com uma visão bem mais ampla do mundo, era mais cético – e estava com a razão.

Certa vez, Murilinho me perguntou sobre o que eu achava de uma determinada rua nos Jardins onde ficava um apartamento de seu interesse. Eu, prestimoso, passei-lhe algumas informações sobre o zoneamento da região, o que supostamente lhe garantiria um uso permanentemente residencial, por isto e por aquilo, blá-blá-blá. Hoje sei que fui ridículo, dando uma resposta técnica para uma pergunta que tinha outro sentido. Murilinho, pragmático, queria apenas saber se vidros blindados abafariam o barulho das avenidas próximas...

Eu no sonho, ele na realidade. Penso que o segredo de sua genialidade era justamente esse senso agudo do real, do qual se apossava para dedilhar uma manchete irretocável ou desenhar mais uma de suas páginas criativas. Com Murilinho, o JT não tinha primeira página: eram “capas”, como se revista fosse. Uma revista diária.

Inesquecível a valorização que sua criatividade deu a uma reportagem que fiz sobre 200 prédios considerados, na administração Olavo Setúbal, “bens culturais” da cidade. Foram duas páginas centrais, com as fotos de todos os 200 prédios, formando um mosaico que até o prefeito me confessou guardar em seu arquivo como guia.

Sob seu comando, o JT foi o precursor do jornalismo de serviços de lazer e de grandes reportagens sobre temas gerais de São Paulo. Quem não se lembra do “Divirta-se” ? – que ele, inclusive, tentou empreender como revista independente. A “Vejinha” é a sua versão atualizada. Quem não curtia (no sentido figurado da palavra) os textos igualmente curtidos (no sentido correto da palavra) por jornalistas de renome, alguns dos quais viraram autores de best-sellers.

Senhor do real, Murilinho era um hábil transformador de rotinas. Que o digam aqueles editores que ele submetia de tempos em tempos a uma dança de cadeiras, realocando o titular da Economia para a editoria de Esportes, o de Esportes para a Política, e assim por diante. Todos na redação sabiam que a um rodízio sucederia outro, mas o intervalo exato era sempre uma surpresa – essa, aliás, outra característica de Murilinho. Nem todos saiam contentes. Ouso dizer que a prática era mesmo o terror da corte, mas sem dúvida ela ampliou muito a versatilidade dos editores que captaram seu valor e deu a nós, repórteres, a oportunidade de vivenciar diferentes chefias e orientações. “Rainha” era só um apelido folclórico. Na universidade que foi o JT em sua época, o mais correto seria chamá-lo de “Magnífico Senhor Reitor”. Já estou vendo o movimento dos dedos de sua mão direita ensaiando uma contestação, traída por um sorrissinho que retratava bem o que se passava em seu ego...

Júlio Moreno (“Repórter de Cidades” e Chefe-de-Reportagem de Economia do JT nas décadas de 70 e 80)

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Aprendiz de feiticeiro

Vital Bataglia

Não sei dizer ao certo, mas ele não passava dos 55 quilos para seu metro e setenta - se tanto - talvez menos. Tinha os cabelos grisalhos, o que me fazia supor ser bem mais velho do que eu, por isso me surpreendi quando vi o seu necrológico. 67 anos?

Murilo Felisberto era o segundo homem da redação quando fui contratado, ainda no número zero do JT. O primeiro era Mino Carta, com seu salto carrapeta e gravatas estravagantes. Ambos desenhavam um novo jornal. Um deles era técnico, traços fortes, simétricos, títulos em egypcienne, caixa 72 ou 84, o outro, traços finos, títulos em futura light.

Ambos criando um novo paradigma do jornalismo.

Eu, um aprendiz.

Nos primeiros dias do jornal, disse ao meu editor que o presidente do Corinthians estava trazendo o jogador Garrincha, do Botafogo, para exames médicos. Se aprovado, seria contratado. As chances de ser aprovado eram iguais a zero.

Mino Carta me chamou. Disse-me para levar uma camisa do Corinthians ao aeroporto de Congonhas, onde Garrincha chegaria com Elza Soares às 9 da manhã. Fui para lá com o fotógrafo Amilton Vieira. Assim que Mané Garrincha desceu do avião eu lhe coloquei a camisa e Amilton fez uma foto linda, ele sorrindo, ajeitando a gola.

A manchete do JT foi esta:

-VEJA MANÉ CORINTHIANO!

Não é preciso dizer que meu texto, assim como o exame médico se tornaram absolutamente dispensáveis depois da foto de página inteira de Garrincha com esse título.

Imaginei que nada poderia ser mais criativo.
Me enganei.
No mês seguinte, fevereiro de 1966, Murilo Felisberto nos chamou.
Queria uma foto especial do casamento de Pelé e Rose. O casamento foi na casa de Pelé, na rua Almirante Cockrane, 123, Embaré. Pelé e Rose no altar, eles de mãos dadas às costas dela, aquele vestido branco, as mãos clarissimas constratando com o dorso da mão de Pelé. Foi a foto de primeira página do Murilo, se bem me lembro de
autoria de Alfredo Rizutti.Estávamos apenas no começo. Quando nasceu a filha deles, Kelly Cristina, o Murilo me chamou e
perguntou-me:

-Como ela é?

-A cara do pai. Eu respondi.

A manchete do jornal:

-Olhos de Pelé, nariz de Pelé, boca de Pelé.

Um dia, em 1968, Mino Carta saiu do JT para fazer a revista Veja.

Anos depois, sairam com o Mu do JT.

Então eu entendi que não tinha mais nada para fazer lá.

Pior agora.

Com a morte do MU, não há mais a menor possibilidade de se refazer a dupla, assim como nunca mais teremos Pelé e Garrincha no mesmo time.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Sem perdão

Eric Nepomuceno

Na verdade verdadeira, ao longo dos últimos anos foram poucos os nossos encontros. Nos falávamos por telefone, isso sim, a cada três, quatro meses. Murilo ligava só para perguntar como eu estava, queria saber de Martha, de Felipe, dizer que sentia saudades e disparar um par de malvadezas. Outras vezes, para contar de viagens. Ou para falar de nossos amigos ou de gente que conhecíamos. E então aproveitava, é claro, para largar outro par de malvadezas.

Os encontros, ultimamente, aconteciam ao acaso, em algumas de minhas poucas idas a São Paulo. E sempre em restaurantes. Comentávamos essa coincidência, combinávamos jantar juntos na próxima vez, e acabou que essa próxima vez não aconteceu.

Não importava: a cada reencontro eu dizia a ele que era como se tivéssemos nos visto uma semana antes. Ou seja, nada mudava ou mudou entre nós, nada nos distanciou, ao longo dos exatos 40 anos de uma relação do mais cálido afeto, de uma amizade sem tréguas. Murilo foi testemunha de meus anos jovens, os decisivos. E jamais deixou de me acompanhar. Eu sabia disso, ele também.

Não era preciso encontrar o Murilo para que ele continuasse a ocupar em minha vida o espaço que ocupou desde sempre.
Murilo, para mim, era uma espécie de joelho. Explico: quase nunca olho para os meus joelhos. Mas caminho graças a eles. Sei que estão onde estão, e isso me basta. Conto com eles para seguir em frente.

Assim era o Murilo na minha vida.

Agora, é de uma ironia amarga e dolorida perceber, como percebo, que não consigo escrever sobre ele.
Logo eu, que com Murilo aprendi tudo que sei de meu ofício, inclusive a escrever e a viver do que escrevo, não consigo. É como se quisesse guardar nossas histórias só para mim. Talvez porque em silêncio elas permaneçam intactas, inalcançáveis pelo tempo.

Então, vou dizer apenas que ao longo de toda a minha vida profissional, os anos cruciais, os melhores, foram aqueles passados no Jornal da Tarde, entre 1969 e 1976. Éramos todos absurdamente jovens, e sabíamos que estávamos participando, comandados pelo Murilo, de alguma coisa importante, que nos marcaria para sempre. São de lá minhas lembranças mais profundas. As intocáveis, as permanentes.

E quero também dizer que jamais me ocorreu a idéia de algum dia estar escrevendo sobre ele sabendo que, desta vez, Murilo não vai ler o texto para depois demolir tudo com afiada graça e pontaria certeira.

Eu nunca disse ao Murilo o quanto devo a ele. Eu não imaginei jamais o quanto sentiria sua falta, simplesmente porque nunca pensei que essa falta aconteceria alguma vez.

Agora isso já não importa. Murilo cometeu a indelicadeza suprema de ir embora. E de me deixar um vazio sem limite nem remédio.

Essa malvadeza, não vou perdoar jamais. Jamais.

Conheci murilo felisberto em 1968, e me orgulho ao dizer que foi amizade à primeira vista. lembro que ele tinha um carrinho esporte, um willys interlagos, que não funcionava nunca mas impressionava as moças. eu brincava dizendo que aquilo não era carro, era um devaneio. Só comecei a escrever para o jornal da tarde em 1970, e só fui contratado em 1971. Em 1973 fui para buenos aires, como correspondente. e, três anos depois, saí do jt e passei a ser correspondente da 'veja' (a daqueles tempos), primeiro em buenos aires, depois em madrid e finalmente, de 1979 a 1982, no méxico e américa central. Portanto, trabalhei com o murilo felisberto, lado a lado, entre meados de 1970 e o começo de 1973. e, à distância, até abril de 1976. De longe, acompanhei a ida do murilo para a dpz, sua breve passagem pelo jornal do brasil, seu retorno ao jt, seu regresso à publicidade, seu afastamento de tudo para se dedicar a ouvir música, ler aquela infinidade de revistas, à sua maneira de tratar com as fragilidades da vida. A partir da minha saída do jt, não tornamos a trabalhar juntos. Com isso, quero dizer que nossa amizade, que permaneceu intacta até o fim, não dependeu, em nenhum momento, de circunstâncias profissionais. Abandonei o jornalismo cotidiano em 1986 (ou fui abandonado por ele) e, desde então, me dedico a viver do que escrevo -- livros, traduções, eventuais trabalhos para documentários, de vez em quando alguma coisa para a imprensa. Ou seja, me dedico a viver de algo que aprendi, em boa parte, com o Murilo.

Murilo à primeira vista

Heloisa de Araujo Moreira

Senti uma mão muito leve no ombro, e alguém falou com um fio de voz: estava observando vocês da minha mesa. Eram típicos o sussurro, o chegar sorrateiro, a recusa da cadeira oferecida: preferia jantar sozinho, na mesa costumeira do restaurante Spot. Eu tenho minhas manias - ele explicou, como se precisasse. Voltou para se despedir e saiu andando um pouco encurvado, óculos na ponta do nariz, revistas embaixo do braço, devagar como se anda nas calçadas do interior de Minas Gerais.

Foi a última vez que vi Murilo Felisberto. Mas a imagem é a mesma da primeira, quando o conheci no final dos anos 60, estudante ainda, fascinada pelo Jornal da Tarde e pelas noitadas em cantinas paulistanas escutando conversas de redação. Alguém já o viu andar apressado? Sem revistas ou jornais embaixo do braço? Sem entremear a conversa com sorrisinhos irônicos cheios de significado, carregados da intenção de desarmar o interlocutor?

Só bem mais tarde convivi profissionalmente com Murilo, no breve Viver e no JT, onde minha primeira tarefa foi fazer um caderno de Natal. O convite foi feito noutra mesa, numa madrugada de 1976 em que lamentávamos o fechamento do jornal onde ele tinha investido suas economias. Sem-cerimônia, numa época em que o comércio de luxo era bem mais acanhado, além de presentes convencionais recheei o suplemento com sugestões extravagantes: colar de diamantes da Tadini, vasos de cristal Gallé, edições de livros raros, bengalas de castão de prata e pince-nez de ouro garimpados em antiquários do centro da cidade. Murilo adorou.

Tempos depois, noutra madrugada, noutra cantina, provocou: pensei muito em te despedir do JT ... você ousou questionar uma ordem minha. Ele se referia a um episódio já antigo, quando eu havia feito uma pergunta para entender uma decisão de redação. Murilo arquivava mágoas e recados escritos em pedaços de laudas. Ora, Murilo, jornalistas perguntam – argumentei, e bebemos mais uma garrafa de vinho.

Murilo era sofisticado, obcecado pela forma, pela precisão, pelo detalhe. Passou anos fazendo a reforma ideal de um apartamento. Comprou dezenas de CDs que colecionava sem ter onde tocar, à espera do aparelho de som perfeito. Desencantou-se com uma namorada quando ela cometeu o desatino de pendurar uma vulgar samambaia na sala. Viajou a Londres (ou foi a Paris?) para passar uma semana trancado no quarto do hotel e ler, ler sem parar, jornais e revistas que não encontrava no Brasil.

Ele não sobreviveria muito tempo a essa época de mesmices.

Trabalhei como repórter no Caderno de Variedades do JT entre 1976 e 1982. Fiz duas matérias para o Viver em 1976, que fechou antes das matérias serem publicadas.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Branco sobre branco

Sandra Abdalla

Considero que uma das sortes que tive na vida foi conhecer o Murilo.

Inteligente, curioso , um grande e querido amigo.

Logo que entrei no Jornal(da Tarde em 1970), o Murilo costumava levar os desenhistas até a sua casa.Toda branca. Ficavamos enlouquecidos com o volume de livros sensacionais, empilhados pelo chão.Enquanto folheavamos aquela maravilha, sem saber por onde começar, ele me perguntou o que eu gostava em música, já que em desenho o meu predileto era o Steinberg e o dele o André François. Disse que achava o Satie o mais próximo dos que gostam de desenho.Logo depois, o som da "Gymnopedie" invadiu a sala. Fui conferir qual LP, que também aos montes ficavam encostados nas paredes, estava tocando.

E lá estava o querido Murilim, tocando em seu piano de cauda também branco...

“Conheci o Murilo em 1969 e fui trabalhar no JT em 1970. Acho que fomos bastante próximos durante todo o tempo.
Mesmo quando ele saiu do jornal mantivemos um contato constante. Acompanhei as mudanças de endereço e reformas que ele fez pela vida. O Murilo foi uma pessoa de que gostei muito.Toda novidade que eu via quando viajava , tinha certeza que ele também se interessaria. Infelizmente nesta última viagem não deu tempo para a gente se encontrar e trocar figurinhas. É uma pessoa que faz falta.”

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Murilo

Marcos Magaldi

Nossa, como é difícil escrever sobre um amigo de mais de trinta anos!
O que falar? Outro dia, pensando no assunto, vi que não tinha nenhuma foto dele. Por falar nisto, apesar de termos trabalhado mais de trinta anos juntos e, em alguns momentos, com convivência praticamente diária, nunca fiz uma foto do Murilo.
Que engraçado....

Eu o conheci quando entrei no Jornal em 1973 mas, naquela época, ele era uma figura distante, editor chefe do JT, com quem, nós fotógrafos, tínhamos pouco contato. Quando saí do jornal em 1979, depois de uma fracassada greve dos jornalistas, fui trabalhar com ele na Revista Senhor Vogue, que ele estava editando naquela ocasião. Nunca conheci ninguém com o faro jornalístico dele. Basta lembrar que, já naquela época, a revista publicou a primeira grande matéria com o Lula, um ótimo perfil do Tancredo, sem esquecermos também da reportagem feita com ACM, muito antes de qualquer órgão de imprensa pensar no assunto. Quando escuto falar que o Murilo era apenas um bom diretor de arte, vejo como ele nem sempre foi compreendido na sua trajetória de homem de imprensa. Criador de títulos e seções dentro do JT, que até hoje são inesquecíveis, Murilo era também um ótimo coordenador de colaboradores, trabalhando muitíssimo bem com equipes de 200 ou mesmo de 15 pessoas.

Depois de sua saída da revista, em 1980, acabou se revelando também um excelente homem de criação em publicidade, onde foi responsável pela formação de uma geração de diretores de arte e redatores, até hoje seus discípulos fiéis.

Trabalhamos muito tempo juntos e hoje me parece curioso como pessoas tão diferentes como nós dois, pudessem conviver de maneira produtiva, mas era o que acontecia. Simplesmente nos entendíamos. Aprendi com ele a gostar de maneira quase obsessiva de revistas, não importando muito o gênero de publicação, apenas sua qualidade editorial.

Murilo também adorava informação de qualquer natureza, desde a fofoca mais trivial ,até o furo jornalístico internacional. Lia uma quantidade oceânica de publicações, mas nunca nutriu grande afeto pela tecnologia, ou pela Internet e só recentemente o vi falando em usar computador.

Como um homem de fases, quando reformou seu apartamento na praça Buenos Aires durante vários anos, ficou fanático por arquitetura e vivia com revistas especializadas de baixo do braço, para lá e para cá. É claro que o resultado não poderia ser mais impressionante, já que sua preocupação com detalhes chegava às raias da insanidade. Nesta ocasião conheci uma outra faceta do Murilo. Seu gosto por piano (Chegou a ter alguns ao mesmo tempo) e por música de câmara, além do seu enorme conhecimento de som. Com o tempo, virou inclusive um grande “audiófilo”, comprando uma aparelhagem inigualável, da qual tinha um inegável orgulho...

Estive com ele uma semana antes de se internado, num almoço onde ele era convidado mais uma vez par dirigir uma publicação. Não mostrou especial interesse, dizendo que estava retirado, que sua época terminara. Não me pareceu justo, mas infelizmente neste caso não era uma “boutade”. Nos despedimos rapidamente e não mais estive com ele. Talvez tenha sido melhor assim. De qualquer forma, ele fará muita falta...

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Nosso parquinho de diversões

Gabriel Manzano Filho

Americanos morrem no Vietnã, a ditadura acaba de cassar três deputados, o Corinthians em crise pega o Santos de Pelé e tudo isso é tão corriqueiro, tão enfadonho que ao chegar à redação, ali pelo meio-dia, Murilinho já vem de cara fechada e imaginando como será possível fazer um jornal diferente no dia seguinte.

Ele não entra na redação, ele se infiltra, como dizíamos naqueles anos 70. O passo miúdo, ombros encolhidos, jornais debaixo do braço, olhando de esguelha, corre direto pra sua sala lá no fundo. Se vier assobiando a 40 de Mozart, aqueles famosíssimos primeiros compassos, e sorrir para os dois primeiros que encontrar, é sinal de que o dia vai começar bem para todos. Mas se passar em silêncio e se tiver debaixo do braço o Jornal da Tarde do dia, dobrado e com um título ou texto circulado em vermelho, dentro de dez minutos vai sobrar uma bronca daquelas para alguém.

Sendo coisa grave, ele nem chama: manda recado. Como punição complementar, poderá ficar alguns dias sem falar com o vilão que lhe estragou o café da manhã. Manda a justiça que se diga: às vezes essa sibéria se estendia por semanas, e ai de quem não tivesse estrutura emocional para resistir. Murilo vivia o jornal com tal intensidade, os erros o incomodavam de tal modo que lhe parecia justo cobrar caro dos seus autores. "Não liga não, é o jeito dele", diziam uns para os outros.

Vistos assim de longe, aqueles bons anos, tão repletos de maus momentos, mais parecem um terrível vestibular do qual, hoje, a gente se orgulha. Não era medo de desemprego, essa praga ainda não existia. Era outro medo, o de ser expulso daquele divertidíssimo parque de diversões, com seu obsessivo campeonato de inteligência em que o melhor lead, a melhor piada ou o trocadilho mais criativo valiam gloriosos minutos de fama ao seu autor. Uns como estrelas, outros como aprendizes, jogávamos num time dos sonhos do qual nem o Ato 5, as cassações ou o terrorismo conseguiam nos tirar.

Mas, se às vezes faltava ao Murilo paciência para a diversidade, vamos relembrar o poeta: tudo valia a pena porque a vida, definitivamente, não era pequena. Havia, no ar, naquela redação, um permanente lobby contra a banalidade e em defesa da inteligência. Ali aprendemos todos, quase brincando, a arte de fazer perguntas, de inventar pautas inéditas todo dia, de só gostar de um texto depois de tê-lo mudado cinco ou dez vezes. Até o ambiente em volta colaborava: eram tempos do Santos de Pelé, dos Beatles e de Cassius Clay, dos festivais, da seleção de 70 no México... ou seriam os nossos olhos que achavam tudo em volta tão especial?

Foi esse o outro lado da moeda, e não foi pouco. Olhando em volta, hoje, tantos daqueles jornalistas tão bem-sucedidos, fico me perguntando quanto desse sucesso seria inevitável por força de talentos individuais. E quanto dele só aconteceu porque, naquela dourada década inicial do JT, implantada por Mino Carta - até que ele saísse para fazer a Veja, em 1968 - e mantida em estado de permanente inspiração pelo Murilo, todos se acostumaram a trabalhar sonhando e a fazer do esforço máximo uma rotina.

Gabriel foi pesquisador, redator e sub-editor do JT entre 1966-1968 e 1970-1975

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Dez anos

Simone Pessine Buhrer

Corpo frágil e judiado pela vida, precisando de colo, cuidados e disciplina; mente sábia, generosa e amiga.
Um grande desafio que se tornou aprendizado de 10 anos.
Disciplinar e cuidar de um corpo físico frágil, comandado por uma mente forte e completa, essa experiência muito me acrescentou e só tenho a agradecer.
Meu pai, meu amigo e meu querido paciente.....
Saudades e eterno carinho.

Simone é fisioterapeuta e atendeu o Murilo desde 1997.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Puro Espírito

Renato Pompeu

Mu não era simplesmente uma pessoa; era uma essência, tanto no sentido de ser uma forma abstrata e perfeita, de alma das coisas, como também no sentido de ser um perfume, um halo, uma aura que banhava as pessoas e que dele emanava. O conheci por volta de 1960, na redação das então Folhas, ele com 20, eu com 18 anos, e me impressionaram já o seu físico espirtualizado, esbelto, frágil, de ossos delicados, cabelos já grisalhos, seu rosto talhado como o de uma estátua, e sua alma de criador, ansioso pela beleza, que já então se destacava nos diagramas e nos temas que escolhia para o jornal. Ele já era então o líder espiritual da revolução jornalística que iria empolgar São Paulo a partir dos meados dos anos 1960. Como puro espírito, Mu estava sempre acima das mesquinhas condições materiais - eu, como jovem esquerdista, nem cheguei a considerar alienação o seu desinteresse pelas questões sociais: na verdade, ele estava mais preocupado do que os esquerdistas com as misérias da condição humana, só que tinha mais lucidez e, ao invés de lutar em vão para modificá-las, como nós, se fechou numa redoma de pura beleza e encanto, onde não havia feiúras. Dele emanava só beleza, só felicidade - foi sua contribuição para mudar o mundo. Tínhamos em comum a amizade da hoje professora de Ciência Política da USP Maria Hermínia Tavares de Almeida, na qual eu via uma militante trotskista - e ele, um anjo barroco. Ele tinha razão.

sábado, 6 de setembro de 2008

Meu tipo inesquecível

Luiz Paulo Horta

Murilo Felisberto: quem o conheceu bem, não vai esquecê-lo facilmente.
No meu caso, esse encontro aconteceu no “velho” Jornal do Brasil da avenida Rio Branco - prédio histórico dos primeiros tempos da avenida (na sua época, a mais alta estrutura de ferro da América Latina).
O prédio ainda tinha uma aura; e, ao mesmo tempo, naqueles começos da década de 60, era cenário de uma experiência que estava revolucionando a imprensa brasileira. Logo logo, tornou-se o jornal das pessoas inteligentes, o grande jornal do Rio de Janeiro.

Nesse contexto é que Alberto Dines teve a idéia de criar um Departamento de Pesquisa, encarregado de dar uma certa profundidade ao noticiário do dia-a-dia; e Murilo foi o seu primeiro e mais brilhante chefe. Ele tinha gosto pela notícia; mas também gostava de virá-la pelo avesso, de descobrir o que estava por trás dos fatos. Assim começamos nós, redatores, a trabalhar nessa linha;e a inspiração vinha do Murilo. Porque ele era a menosconvencional das criaturas: miúdo, branquinho, andandorente às paredes, era o contrário do jornalista barulhento e superficial. Tinha o gosto mais fino, em música como em literatura. Gostava do Octeto de Schubert, e daquele romance sombrio que é “Judas, o Obscuro”.

Havia alguma coisa, nele, de uma Minas Gerais eterna, descobrindo diamantes numa atmosfera de segredos e mistérios. Ele ia buscar seus diamantes nos colegas de profissão. Tinha um olho infalível para quem pudesse ir além do prosáico; e dava tudo por um bom texto. Podia ser incrivelmente minucioso - sem nunca perder a visão do conjunto. Com ele, fizemos textos detalhistas e textos panorâmicos (lembro de um, sobre a “grande sociedade” proposta por Lyndon Johnson, que ele editou com um talento gráfico que logo se tornaria proverbial).

Era um mineiro que se aclimatara em São Paulo, trabalhando nos inícios da “Folha”, e que resolvera experimentar o Rio. Não ficaria muito tempo por aqui - tendo sido convocado para o pontapé inicial do “Jornal da Tarde”. Acho que ele curtiu o Rio, num momento em que o nosso meio tinha muita riqueza humana. Mas também acho que era muito sol para ele, muita luminosidade. Acabaria voltando para São Paulo, sem que, por isso, o nosso contato diminuísse. Tínhamos muito o que conversar em matéria de música. Lembro que, no início, ele se contentava com o sistema de som mais rudimentar - uma vitrolinha portátil. Depois, foi sofisticando cada vez mais, e teve o prazer de mostrar aos amigos sistemas de som caríssimos que ele importava dos Estados Unidos. Era a sua maneira de ser, sempre em busca do melhor. Mas esses rasgos de sofisticação não o tornaram menos sensível à aventura humana. Era verdadeiro amigo dos amigos; e tinha um fôlego inesgotável para as conversas onde a amizade se desdobra e se exercita. Acima de tudo, ele era um original, até na maneira de olhar - levemente irônica, inquisitiva, atenta aos detalhes. Ele tinha algumas perguntas a fazer à vida - e não sei se encontrou as respostas. 

O “eterno feminino” fazia parte do seu mundo - e, nesse terreno, ele nunca deixou de ter boas companhias. Mas também preservava os seus espaços particulares, e talvez por isso, nesse mesmo terreno, não tenha construído ligações definitivas.

Os “espaços” do Murilo eram toda uma história - os apartamentos que ele reformava infindavelmente, vastos espaços, muitas vezes brancos, onde ele expandia seu talento de “designer”, e onde dificilmente faltava um piano. Em busca do raro, do extraordinário, ele chegou a descobrir um piano fascinante, sobretudo pela forma, que ele também mandou reformar. Sabia tocar um pouco, sempre planejava tocar mais - sonho que talvez não realizou pelo excesso de oferta na área do disco. É compreensível que gostasse de Schubert - esse músico tão raro, tão fora das normas, que morreu tão cedo. No lirismo delicadíssimo de Schubert, encontro um paralelo para o modo como o Murilo tratava a vida - na ponta dos dedos, fugindo de tudo o que fosse vulgar, feio, desagradável.

Ele foi um artista também do ponto de vista da vida de todos os dias; artista até a medula. E conviver com ele era descobrir sempre novas formas de ver a vida, de entender as pessoas. Ele foi o “meu tipo inesquecível”.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Murilinho, o Magnífico

Julio Moreno

Para ser sincero, eu não fazia parte da corte da “Rainha”, ou seja, daquele grupo da redação do JT mais íntimo do Murilinho. Mas havia entre nós algo em comum: o interesse por São Paulo. Eu, “repórter de cidade” ingênuo, acreditava que o urbanismo e uma boa administração municipal seriam a salvação de todas nossas mazelas. Ele, com uma visão bem mais ampla do mundo, era mais cético – e estava com a razão.

Certa vez, Murilinho me perguntou sobre o que eu achava de uma determinada rua nos Jardins onde ficava um apartamento de seu interesse. Eu, prestimoso, passei-lhe algumas informações sobre o zoneamento da região, o que supostamente lhe garantiria um uso permanentemente residencial, por isto e por aquilo, blá-blá-blá. Hoje sei que fui ridículo, dando uma resposta técnica para uma pergunta que tinha outro sentido. Murilinho, pragmático, queria apenas saber se vidros blindados abafariam o barulho das avenidas próximas...

Eu no sonho, ele na realidade. Penso que o segredo de sua genialidade era justamente esse senso agudo do real, do qual se apossava para dedilhar uma manchete irretocável ou desenhar mais uma de suas páginas criativas. Com Murilinho, o JT não tinha primeira página: eram “capas”, como se revista fosse. Uma revista diária.

Inesquecível a valorização que sua criatividade deu a uma reportagem que fiz sobre 200 prédios considerados, na administração Olavo Setúbal, “bens culturais” da cidade. Foram duas páginas centrais, com as fotos de todos os 200 prédios, formando um mosaico que até o prefeito me confessou guardar em seu arquivo como guia.

Sob seu comando, o JT foi o precursor do jornalismo de serviços de lazer e de grandes reportagens sobre temas gerais de São Paulo. Quem não se lembra do “Divirta-se” ? – que ele, inclusive, tentou empreender como revista independente. A “Vejinha” é a sua versão atualizada. Quem não curtia (no sentido figurado da palavra) os textos igualmente curtidos (no sentido correto da palavra) por jornalistas de renome, alguns dos quais viraram autores de best-sellers.

Senhor do real, Murilinho era um hábil transformador de rotinas. Que o digam aqueles editores que ele submetia de tempos em tempos a uma dança de cadeiras, realocando o titular da Economia para a editoria de Esportes, o de Esportes para a Política, e assim por diante. Todos na redação sabiam que a um rodízio sucederia outro, mas o intervalo exato era sempre uma surpresa – essa, aliás, outra característica de Murilinho. Nem todos saiam contentes. Ouso dizer que a prática era mesmo o terror da corte, mas sem dúvida ela ampliou muito a versatilidade dos editores que captaram seu valor e deu a nós, repórteres, a oportunidade de vivenciar diferentes chefias e orientações. “Rainha” era só um apelido folclórico. Na universidade que foi o JT em sua época, o mais correto seria chamá-lo de “Magnífico Senhor Reitor”. Já estou vendo o movimento dos dedos de sua mão direita ensaiando uma contestação, traída por um sorrissinho que retratava bem o que se passava em seu ego...

Júlio Moreno

“Repórter de Cidades” e Chefe-de-Reportagem de Economia do JT nas décadas de 70 e 80

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

A Aventura do Viver

Sergio Rondino

Do Murilo jornalista, qual de nós não se lembra? Para o Murilo publicitário, vale a mesma pergunta. Mas do Murilo dono de jornal, aposto que pouquíssimos se lembram, ou sabem. Por isso, vou contar.
Foi lá pelos idos de 75 e 76 do século passado. Paralelamente ao trabalho como chefe de redação do Jornal da Tarde, Murilo tinha criado uma empresa de comunicação. Tratava-se da Mu Comunicação, nome que, evidentemente, gerava diálogos estranhíssimos para quem atendia ao telefone. E geralmente quem atendia era o nosso Guimarães, também Guima ou Guiminha, assistente administrativo, financeiro, RH, executivo gráfico, braço direito e faz-tudo na empresa.
- Mu Comunicação, boa tarde.
- Como?
- MU! Mu Comunicação...
- Eme Uú?
- Não! É MU mesmo! Quem fala?
No início, a Mu cuidava das campanhas publicitárias do então nascente grupo Objetivo, do nosso amigo comum João Carlos Di Genio. Acho que o Murilo ganhou algum dinheiro com isso, pois logo em seguida se animou a lançar seu próprio jornal. Seria um semanário da cidade. É claro que, em se tratando do Murilo, não poderia ser só mais um semanário. Teria de ser especial, fruto de sua conhecida paixão por sofisticadas publicações do mundo todo.
Ainda me lembro: logo que fui contratado para ser seu editor-assistente, Murilo me passou para analisar uma montanha de revistas, como a americana New Yorker. Era curioso como ele sempre comentava acontecimentos de redações estrangeiras, até mesmo troca de cargos, como se estivessem acontecendo ali na esquina.
Sofisticado como as revistas que amava, Murilo era um perfeccionista nos conceitos, na definição do formato editorial, no visual gráfico, no estilo dos textos e dos títulos, em cada detalhe. E algumas histórias ligadas a esse perfeccionismo são as que mais ficaram nas lembranças que temos, eu e o Guiminha, daquele tempo tão bom. Hoje nos divertimos rememorando quanto tempo e esforços gastamos na busca pelo acerto de detalhes dos quais Murilo não abria mão.
Uma delas tem a ver com o título do jornal, que Murilo tinha na cabeça há longo tempo: VIVER. Nascera do próprio conceito do produto, também muito claro para ele. Cada seção e cada texto do jornal teria de ajudar o leitor a conhecer mais a cidade, sua história e seus tipos, a usufruir melhor de tudo o que a metrópole oferecia.
O problema foi sintetizar essa razão de ser do jornal num texto de apresentação que saísse como o Murilo queria. Acho que foram umas vinte tentativas, todas rechaçadas pelo Murilo com um "ainda não é bem isso". (Lembrai-vos de 75, que não tinha computadores e e-mails: aquele era o tempo das máquinas de escrever e das laudas que iam e vinham...) Até que, um dia, ele chegou com a frase síntese - e, para mim, salvadora: "Viver pretende ser uma espécie de manual de sobrevivência na cidade grande". Ufa! Acertado o texto, Murilo se vai e eu, aliviado, aviso a um Guiminha já agoniado com o deadline da gráfica:
- Fechou a página 3!
Guiminha rosna:
- Vocês enrolam demais! Por isso é que eu me fodo...
A reação dele era perfeitamente explicável por outra historinha exemplar: a da escolha do logotipo. Guiminha calcula que foram mais de 200 tentativas! Deve ser exagero, mas ele lembra que Murilo passava dias e noites com catálogos gráficos embaixo do braço, "namorando a cada hora um tipo ou uma fonte diferente". Lembrai-vos de novo de 75: naquele tempo não havia essa moleza de hoje, em que até um simples programa de digitação como o Word tem dezenas de tipos diferentes à escolha do freguês. Compor e imprimir provas dos logotipos exigia muitas idas e vindas a um estúdio gráfico, e custava uma nota preta. Imaginem as tais 200 tentativas atormentando o Guiminha...
Mas tem outra história do perfeccionismo - e essa deixou dores físicas ao pobre Guima. Chegara o grande dia de lançar o Viver. A impressão foi em um jornal de bairro de Pinheiros, e é claro que antes já perdêramos longas horas no paste up. (Lá vamos nós, outra vez, ao século passado: naquele tempo, a matriz de cada página era montada com estilete e cola sobre uma folha de cartolina, texto a texto, título a título, legenda a legenda. Texto maior tinha de ser cortado ali mesmo, título maior - dizíamos "estourado" - tinha de ser refeito, digitado de novo, colado outra vez. Era o tal paste up. Um sufoco.)
Impresso o jornal, achamos todos que ficou uma beleza. Tablóide, colorido, diagramação sofisticada, belas fotos... parecia revista. Era noite, hora de mandar para as bancas! Não, não era: Murilo achou que aquelas bordas meio serrilhadas que as rotativas deixam no papel jornal não ficariam bem no sofisticado "Viver". Mandou refilar tudo.
Não lembro mais a tiragem, mas era uma pequena montanha de jornais empacotados. Como refilar tudo aquilo, pacote por pacote, e àquela hora da noite? Sobrou para o Guiminha, claro. E lá se foi ele, acho que num caminhão, atrás de uma gráfica que o amigo Miguel Jorge arranjou. Passou a noite ao lado de uma guilhotina, desempacotando, refilando, empacotando de novo. Ficou com tanta dor nas costas que nem pôde trabalhar no dia seguinte.
Mas o "Viver" saiu, refilado e elegante. Chegou às bancas para uma gloriosa, porém curtíssima carreira, que terminou poucos números depois num gesto tão sofisticado como seu criador. Certa tarde, Murilo entrou na pequena redação, distribuiu taças à turma, estourou uma garrafa do champanhe mais caro da época e anunciou, sorrindo, que a nossa aventura terminava ali. Um brinde ao "Viver"!
Grande Murilo.

Sergio Rondino começou a carreira jornalística no Jornal da Tarde, em 1967, como repórter, quando o Murilo era secretário de redação. Saiu de lá em 1988 para fazer televisão, quando Murilo já estava na área publicitária. Aprendeu muito com ele nesses anos, convivendo dentro e fora das redações. E a ele deve vários progressos e promoções profissionais. Foi um amigo.

Horizontes

Alfredo Toledo

"O Murilo, embora sempre tenha visto a vida de frente, viveu atrás da estética, acho para amanar o concretismo dela. O seu conceito de estética e harmonia foram o estudo para com a realidade da existência."

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

“Ladrão é o Hiroito"

Sergio Oyama

Minha convivência com o Murilo não foi longa e nosso relacionamento nunca extrapolou o limite das conversas sobre assuntos profissionais. No entanto, ele foi o responsável por uma mudança radical e decisiva em minha vida.

Em 1959 eu era um jovem funcionário público (estava então com 20 anos) ainda à procura da minha vocação profissional. Foram incontáveis noites insones em que fiquei tentando decidir sobre que faculdade cursar. Entre as poucas opções que nunca haviam passado pela minha cabeça uma era o jornalismo. Mesmo porque, a única, e na época ainda desconhecida faculdade da área, era a Cásper Líbero.

Um dia, um grande amigo, o Emílio Matsumoto, que pouco tempo antes havia começado a trabalhar na Folha de S. Paulo como repórter, comunicou-me que o Murilo Felisberto estava procurando alguém que escrevesse bem para integrar a equipe de copy-desks da Local, editoria que ele comandava. Murilo estava empenhado em dar uma cara nova às suas páginas, e por isso procurava uma pessoa sem nenhuma experiência jornalística para poder treiná-lo sem ter que enfrentar o trabalho sacal de corrigir ou mudar estilos e vícios de linguagem para conseguir o texto que ele imaginava para as matérias. O Matsumoto achou que eu tinha o perfil requerido, já que toda a minha “experiência jornalística” se resumia em termos feito, eu e ele, um jornalzinho rodado em mimeógrafo e destinado aos jovens da igreja evangélica que freqüentávamos. Daí o Matsumoto conhecer também o meu texto, o que o fez recomendar-me ao Murilo. Como não havia nenhuma exigência quanto ao nível de escolaridade, lá fui eu para a Folha fazer um teste, no qual me saí razoavelmente bem, o suficiente para ser aprovado.

Lembro-me do Murilo dessa época como uma pessoa extremamente afável, sorriso maroto e com boa vontade para ensinar. Foi assim que me recebeu e me incentivou. Mas, acho que caí nas graças dele no dia em que preparei o texto de uma pequena nota sobre um furto cuja autoria, após descartados alguns suspeitos, a polícia atribuiu a um tal de Hiroito. O título, que me veio imediatamente à mente, foi: “Ladrão é o Hiroito”. Murilo adorou e saiu pela redação me elogiando: “O Oyama é bom!”. Não preciso dizer que foi meu minuto de glória.

Não fiquei muito tempo na Folha, creio que dois ou três anos... Ainda achava que o jornalismo não era a minha praia. Como continuava com meu emprego no funcionalismo público, pedi minha demissão e voltei para a rotina tranqüila da repartição.

Reencontrei o Murilo em 1966, quando, acompanhado de alguns colegas da Folha de S. Paulo, ele se juntou ao Mino Carta para criar o Jornal da Tarde. O evento novo me permitiu retornar às redações, e novamente sob o comando do Murilo. Ali, finalmente, encontrei um rumo para meu futuro profissional.

Lidar com o Murilo não era difícil. Hoje percebo que o que ele não gostava era de ser contrariado. Não me lembro de tê-lo visto algum dia alterado, perdendo o controle. A imagem que mais se fixou em minha memória é a dele curvado sobre a mesa, desenhando as páginas do jornal e sempre assoviando. Impressionava-me a velocidade com que as rabiscava, indicando as fontes e o tamanho das letras sem hesitar um segundo.

Em 1968, Mino Carta e parte de sua equipe no JT saíram para nova missão pioneira, fundar a revista Veja. Eu permaneci por mais algum tempo no jornal, mas meses depois acabei me juntando à turma do Mino. Depois disso perdi o contato com o Murilo..

Muitos anos depois, creio que já na década de 80, fui surpreendido por um telefonema dele. Murilo estava editando a recém-criada revista Vogue Homem e queria que eu escrevesse um artigo sobre uma experiência que fiz na redação de uma revista da Abril, ajudando um colega a zerar uma dívida financeira que se transformara em uma bola de neve. Fui vê-lo. Ele me recebeu com o sorriso de sempre, e mostrou-me com visível orgulho a última edição da Vogue Homem, pedindo minha opinião. Folheei a revista, realmente bem feita e bem a cara do Murilo. Elogiei o trabalho, e fiz uma observação, que nem me lembro qual foi, mas acho que dei uma de Jorge Horácio, o personagem do Minha nada mole vida, que se gaba de ser sincero, doa a quem doer. E parece que doeu no Murilo. Ele fechou a cara, e como já havíamos acertado o “frila” ele deu o encontro por encerrado. Dias depois entreguei o artigo e nunca mais nos encontramos.

Alguns anos atrás soube que ele havia retornado à direção do JT. A novidade chegou-me pelo meu filho, o Márcio, que me “sucedeu” no jornal e passou a trabalhar com o Murilo. Achei significativa essa coincidência...

Devo meu crescimento e aprimoramento como jornalista a pelo menos duas pessoas, com as quais compartilhei a maior parte dos meus mais de 40 anos de vida profissional: uma é o Emílio Matsumoto, já falecido, e o outro, o Ulysses Alves de Souza que, com o Matsumoto, foi também quem me indicou ao Murilo. E embora, como eu disse, minha convivência com o Murilo tenha sido relativamente pequena, eu sempre me lembro dele como a pessoa que, ao abrir a oportunidade para meu ingresso no jornalismo, livrou-me, sem o saber, da angustiante busca por uma profissão. Depois, conscientemente, me acolheu, orientou e incentivou.