sábado, 6 de setembro de 2008

Meu tipo inesquecível

Luiz Paulo Horta

Murilo Felisberto: quem o conheceu bem, não vai esquecê-lo facilmente.
No meu caso, esse encontro aconteceu no “velho” Jornal do Brasil da avenida Rio Branco - prédio histórico dos primeiros tempos da avenida (na sua época, a mais alta estrutura de ferro da América Latina).
O prédio ainda tinha uma aura; e, ao mesmo tempo, naqueles começos da década de 60, era cenário de uma experiência que estava revolucionando a imprensa brasileira. Logo logo, tornou-se o jornal das pessoas inteligentes, o grande jornal do Rio de Janeiro.

Nesse contexto é que Alberto Dines teve a idéia de criar um Departamento de Pesquisa, encarregado de dar uma certa profundidade ao noticiário do dia-a-dia; e Murilo foi o seu primeiro e mais brilhante chefe. Ele tinha gosto pela notícia; mas também gostava de virá-la pelo avesso, de descobrir o que estava por trás dos fatos. Assim começamos nós, redatores, a trabalhar nessa linha;e a inspiração vinha do Murilo. Porque ele era a menosconvencional das criaturas: miúdo, branquinho, andandorente às paredes, era o contrário do jornalista barulhento e superficial. Tinha o gosto mais fino, em música como em literatura. Gostava do Octeto de Schubert, e daquele romance sombrio que é “Judas, o Obscuro”.

Havia alguma coisa, nele, de uma Minas Gerais eterna, descobrindo diamantes numa atmosfera de segredos e mistérios. Ele ia buscar seus diamantes nos colegas de profissão. Tinha um olho infalível para quem pudesse ir além do prosáico; e dava tudo por um bom texto. Podia ser incrivelmente minucioso - sem nunca perder a visão do conjunto. Com ele, fizemos textos detalhistas e textos panorâmicos (lembro de um, sobre a “grande sociedade” proposta por Lyndon Johnson, que ele editou com um talento gráfico que logo se tornaria proverbial).

Era um mineiro que se aclimatara em São Paulo, trabalhando nos inícios da “Folha”, e que resolvera experimentar o Rio. Não ficaria muito tempo por aqui - tendo sido convocado para o pontapé inicial do “Jornal da Tarde”. Acho que ele curtiu o Rio, num momento em que o nosso meio tinha muita riqueza humana. Mas também acho que era muito sol para ele, muita luminosidade. Acabaria voltando para São Paulo, sem que, por isso, o nosso contato diminuísse. Tínhamos muito o que conversar em matéria de música. Lembro que, no início, ele se contentava com o sistema de som mais rudimentar - uma vitrolinha portátil. Depois, foi sofisticando cada vez mais, e teve o prazer de mostrar aos amigos sistemas de som caríssimos que ele importava dos Estados Unidos. Era a sua maneira de ser, sempre em busca do melhor. Mas esses rasgos de sofisticação não o tornaram menos sensível à aventura humana. Era verdadeiro amigo dos amigos; e tinha um fôlego inesgotável para as conversas onde a amizade se desdobra e se exercita. Acima de tudo, ele era um original, até na maneira de olhar - levemente irônica, inquisitiva, atenta aos detalhes. Ele tinha algumas perguntas a fazer à vida - e não sei se encontrou as respostas. 

O “eterno feminino” fazia parte do seu mundo - e, nesse terreno, ele nunca deixou de ter boas companhias. Mas também preservava os seus espaços particulares, e talvez por isso, nesse mesmo terreno, não tenha construído ligações definitivas.

Os “espaços” do Murilo eram toda uma história - os apartamentos que ele reformava infindavelmente, vastos espaços, muitas vezes brancos, onde ele expandia seu talento de “designer”, e onde dificilmente faltava um piano. Em busca do raro, do extraordinário, ele chegou a descobrir um piano fascinante, sobretudo pela forma, que ele também mandou reformar. Sabia tocar um pouco, sempre planejava tocar mais - sonho que talvez não realizou pelo excesso de oferta na área do disco. É compreensível que gostasse de Schubert - esse músico tão raro, tão fora das normas, que morreu tão cedo. No lirismo delicadíssimo de Schubert, encontro um paralelo para o modo como o Murilo tratava a vida - na ponta dos dedos, fugindo de tudo o que fosse vulgar, feio, desagradável.

Ele foi um artista também do ponto de vista da vida de todos os dias; artista até a medula. E conviver com ele era descobrir sempre novas formas de ver a vida, de entender as pessoas. Ele foi o “meu tipo inesquecível”.

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