quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Nosso parquinho de diversões

Gabriel Manzano Filho

Americanos morrem no Vietnã, a ditadura acaba de cassar três deputados, o Corinthians em crise pega o Santos de Pelé e tudo isso é tão corriqueiro, tão enfadonho que ao chegar à redação, ali pelo meio-dia, Murilinho já vem de cara fechada e imaginando como será possível fazer um jornal diferente no dia seguinte.

Ele não entra na redação, ele se infiltra, como dizíamos naqueles anos 70. O passo miúdo, ombros encolhidos, jornais debaixo do braço, olhando de esguelha, corre direto pra sua sala lá no fundo. Se vier assobiando a 40 de Mozart, aqueles famosíssimos primeiros compassos, e sorrir para os dois primeiros que encontrar, é sinal de que o dia vai começar bem para todos. Mas se passar em silêncio e se tiver debaixo do braço o Jornal da Tarde do dia, dobrado e com um título ou texto circulado em vermelho, dentro de dez minutos vai sobrar uma bronca daquelas para alguém.

Sendo coisa grave, ele nem chama: manda recado. Como punição complementar, poderá ficar alguns dias sem falar com o vilão que lhe estragou o café da manhã. Manda a justiça que se diga: às vezes essa sibéria se estendia por semanas, e ai de quem não tivesse estrutura emocional para resistir. Murilo vivia o jornal com tal intensidade, os erros o incomodavam de tal modo que lhe parecia justo cobrar caro dos seus autores. "Não liga não, é o jeito dele", diziam uns para os outros.

Vistos assim de longe, aqueles bons anos, tão repletos de maus momentos, mais parecem um terrível vestibular do qual, hoje, a gente se orgulha. Não era medo de desemprego, essa praga ainda não existia. Era outro medo, o de ser expulso daquele divertidíssimo parque de diversões, com seu obsessivo campeonato de inteligência em que o melhor lead, a melhor piada ou o trocadilho mais criativo valiam gloriosos minutos de fama ao seu autor. Uns como estrelas, outros como aprendizes, jogávamos num time dos sonhos do qual nem o Ato 5, as cassações ou o terrorismo conseguiam nos tirar.

Mas, se às vezes faltava ao Murilo paciência para a diversidade, vamos relembrar o poeta: tudo valia a pena porque a vida, definitivamente, não era pequena. Havia, no ar, naquela redação, um permanente lobby contra a banalidade e em defesa da inteligência. Ali aprendemos todos, quase brincando, a arte de fazer perguntas, de inventar pautas inéditas todo dia, de só gostar de um texto depois de tê-lo mudado cinco ou dez vezes. Até o ambiente em volta colaborava: eram tempos do Santos de Pelé, dos Beatles e de Cassius Clay, dos festivais, da seleção de 70 no México... ou seriam os nossos olhos que achavam tudo em volta tão especial?

Foi esse o outro lado da moeda, e não foi pouco. Olhando em volta, hoje, tantos daqueles jornalistas tão bem-sucedidos, fico me perguntando quanto desse sucesso seria inevitável por força de talentos individuais. E quanto dele só aconteceu porque, naquela dourada década inicial do JT, implantada por Mino Carta - até que ele saísse para fazer a Veja, em 1968 - e mantida em estado de permanente inspiração pelo Murilo, todos se acostumaram a trabalhar sonhando e a fazer do esforço máximo uma rotina.

Gabriel foi pesquisador, redator e sub-editor do JT entre 1966-1968 e 1970-1975

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