quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Murilo à primeira vista

Heloisa de Araujo Moreira

Senti uma mão muito leve no ombro, e alguém falou com um fio de voz: estava observando vocês da minha mesa. Eram típicos o sussurro, o chegar sorrateiro, a recusa da cadeira oferecida: preferia jantar sozinho, na mesa costumeira do restaurante Spot. Eu tenho minhas manias - ele explicou, como se precisasse. Voltou para se despedir e saiu andando um pouco encurvado, óculos na ponta do nariz, revistas embaixo do braço, devagar como se anda nas calçadas do interior de Minas Gerais.

Foi a última vez que vi Murilo Felisberto. Mas a imagem é a mesma da primeira, quando o conheci no final dos anos 60, estudante ainda, fascinada pelo Jornal da Tarde e pelas noitadas em cantinas paulistanas escutando conversas de redação. Alguém já o viu andar apressado? Sem revistas ou jornais embaixo do braço? Sem entremear a conversa com sorrisinhos irônicos cheios de significado, carregados da intenção de desarmar o interlocutor?

Só bem mais tarde convivi profissionalmente com Murilo, no breve Viver e no JT, onde minha primeira tarefa foi fazer um caderno de Natal. O convite foi feito noutra mesa, numa madrugada de 1976 em que lamentávamos o fechamento do jornal onde ele tinha investido suas economias. Sem-cerimônia, numa época em que o comércio de luxo era bem mais acanhado, além de presentes convencionais recheei o suplemento com sugestões extravagantes: colar de diamantes da Tadini, vasos de cristal Gallé, edições de livros raros, bengalas de castão de prata e pince-nez de ouro garimpados em antiquários do centro da cidade. Murilo adorou.

Tempos depois, noutra madrugada, noutra cantina, provocou: pensei muito em te despedir do JT ... você ousou questionar uma ordem minha. Ele se referia a um episódio já antigo, quando eu havia feito uma pergunta para entender uma decisão de redação. Murilo arquivava mágoas e recados escritos em pedaços de laudas. Ora, Murilo, jornalistas perguntam – argumentei, e bebemos mais uma garrafa de vinho.

Murilo era sofisticado, obcecado pela forma, pela precisão, pelo detalhe. Passou anos fazendo a reforma ideal de um apartamento. Comprou dezenas de CDs que colecionava sem ter onde tocar, à espera do aparelho de som perfeito. Desencantou-se com uma namorada quando ela cometeu o desatino de pendurar uma vulgar samambaia na sala. Viajou a Londres (ou foi a Paris?) para passar uma semana trancado no quarto do hotel e ler, ler sem parar, jornais e revistas que não encontrava no Brasil.

Ele não sobreviveria muito tempo a essa época de mesmices.

Trabalhei como repórter no Caderno de Variedades do JT entre 1976 e 1982. Fiz duas matérias para o Viver em 1976, que fechou antes das matérias serem publicadas.

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