quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Sem perdão

Eric Nepomuceno

Na verdade verdadeira, ao longo dos últimos anos foram poucos os nossos encontros. Nos falávamos por telefone, isso sim, a cada três, quatro meses. Murilo ligava só para perguntar como eu estava, queria saber de Martha, de Felipe, dizer que sentia saudades e disparar um par de malvadezas. Outras vezes, para contar de viagens. Ou para falar de nossos amigos ou de gente que conhecíamos. E então aproveitava, é claro, para largar outro par de malvadezas.

Os encontros, ultimamente, aconteciam ao acaso, em algumas de minhas poucas idas a São Paulo. E sempre em restaurantes. Comentávamos essa coincidência, combinávamos jantar juntos na próxima vez, e acabou que essa próxima vez não aconteceu.

Não importava: a cada reencontro eu dizia a ele que era como se tivéssemos nos visto uma semana antes. Ou seja, nada mudava ou mudou entre nós, nada nos distanciou, ao longo dos exatos 40 anos de uma relação do mais cálido afeto, de uma amizade sem tréguas. Murilo foi testemunha de meus anos jovens, os decisivos. E jamais deixou de me acompanhar. Eu sabia disso, ele também.

Não era preciso encontrar o Murilo para que ele continuasse a ocupar em minha vida o espaço que ocupou desde sempre.
Murilo, para mim, era uma espécie de joelho. Explico: quase nunca olho para os meus joelhos. Mas caminho graças a eles. Sei que estão onde estão, e isso me basta. Conto com eles para seguir em frente.

Assim era o Murilo na minha vida.

Agora, é de uma ironia amarga e dolorida perceber, como percebo, que não consigo escrever sobre ele.
Logo eu, que com Murilo aprendi tudo que sei de meu ofício, inclusive a escrever e a viver do que escrevo, não consigo. É como se quisesse guardar nossas histórias só para mim. Talvez porque em silêncio elas permaneçam intactas, inalcançáveis pelo tempo.

Então, vou dizer apenas que ao longo de toda a minha vida profissional, os anos cruciais, os melhores, foram aqueles passados no Jornal da Tarde, entre 1969 e 1976. Éramos todos absurdamente jovens, e sabíamos que estávamos participando, comandados pelo Murilo, de alguma coisa importante, que nos marcaria para sempre. São de lá minhas lembranças mais profundas. As intocáveis, as permanentes.

E quero também dizer que jamais me ocorreu a idéia de algum dia estar escrevendo sobre ele sabendo que, desta vez, Murilo não vai ler o texto para depois demolir tudo com afiada graça e pontaria certeira.

Eu nunca disse ao Murilo o quanto devo a ele. Eu não imaginei jamais o quanto sentiria sua falta, simplesmente porque nunca pensei que essa falta aconteceria alguma vez.

Agora isso já não importa. Murilo cometeu a indelicadeza suprema de ir embora. E de me deixar um vazio sem limite nem remédio.

Essa malvadeza, não vou perdoar jamais. Jamais.

Conheci murilo felisberto em 1968, e me orgulho ao dizer que foi amizade à primeira vista. lembro que ele tinha um carrinho esporte, um willys interlagos, que não funcionava nunca mas impressionava as moças. eu brincava dizendo que aquilo não era carro, era um devaneio. Só comecei a escrever para o jornal da tarde em 1970, e só fui contratado em 1971. Em 1973 fui para buenos aires, como correspondente. e, três anos depois, saí do jt e passei a ser correspondente da 'veja' (a daqueles tempos), primeiro em buenos aires, depois em madrid e finalmente, de 1979 a 1982, no méxico e américa central. Portanto, trabalhei com o murilo felisberto, lado a lado, entre meados de 1970 e o começo de 1973. e, à distância, até abril de 1976. De longe, acompanhei a ida do murilo para a dpz, sua breve passagem pelo jornal do brasil, seu retorno ao jt, seu regresso à publicidade, seu afastamento de tudo para se dedicar a ouvir música, ler aquela infinidade de revistas, à sua maneira de tratar com as fragilidades da vida. A partir da minha saída do jt, não tornamos a trabalhar juntos. Com isso, quero dizer que nossa amizade, que permaneceu intacta até o fim, não dependeu, em nenhum momento, de circunstâncias profissionais. Abandonei o jornalismo cotidiano em 1986 (ou fui abandonado por ele) e, desde então, me dedico a viver do que escrevo -- livros, traduções, eventuais trabalhos para documentários, de vez em quando alguma coisa para a imprensa. Ou seja, me dedico a viver de algo que aprendi, em boa parte, com o Murilo.

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