quarta-feira, 3 de setembro de 2008

A Aventura do Viver

Sergio Rondino

Do Murilo jornalista, qual de nós não se lembra? Para o Murilo publicitário, vale a mesma pergunta. Mas do Murilo dono de jornal, aposto que pouquíssimos se lembram, ou sabem. Por isso, vou contar.
Foi lá pelos idos de 75 e 76 do século passado. Paralelamente ao trabalho como chefe de redação do Jornal da Tarde, Murilo tinha criado uma empresa de comunicação. Tratava-se da Mu Comunicação, nome que, evidentemente, gerava diálogos estranhíssimos para quem atendia ao telefone. E geralmente quem atendia era o nosso Guimarães, também Guima ou Guiminha, assistente administrativo, financeiro, RH, executivo gráfico, braço direito e faz-tudo na empresa.
- Mu Comunicação, boa tarde.
- Como?
- MU! Mu Comunicação...
- Eme Uú?
- Não! É MU mesmo! Quem fala?
No início, a Mu cuidava das campanhas publicitárias do então nascente grupo Objetivo, do nosso amigo comum João Carlos Di Genio. Acho que o Murilo ganhou algum dinheiro com isso, pois logo em seguida se animou a lançar seu próprio jornal. Seria um semanário da cidade. É claro que, em se tratando do Murilo, não poderia ser só mais um semanário. Teria de ser especial, fruto de sua conhecida paixão por sofisticadas publicações do mundo todo.
Ainda me lembro: logo que fui contratado para ser seu editor-assistente, Murilo me passou para analisar uma montanha de revistas, como a americana New Yorker. Era curioso como ele sempre comentava acontecimentos de redações estrangeiras, até mesmo troca de cargos, como se estivessem acontecendo ali na esquina.
Sofisticado como as revistas que amava, Murilo era um perfeccionista nos conceitos, na definição do formato editorial, no visual gráfico, no estilo dos textos e dos títulos, em cada detalhe. E algumas histórias ligadas a esse perfeccionismo são as que mais ficaram nas lembranças que temos, eu e o Guiminha, daquele tempo tão bom. Hoje nos divertimos rememorando quanto tempo e esforços gastamos na busca pelo acerto de detalhes dos quais Murilo não abria mão.
Uma delas tem a ver com o título do jornal, que Murilo tinha na cabeça há longo tempo: VIVER. Nascera do próprio conceito do produto, também muito claro para ele. Cada seção e cada texto do jornal teria de ajudar o leitor a conhecer mais a cidade, sua história e seus tipos, a usufruir melhor de tudo o que a metrópole oferecia.
O problema foi sintetizar essa razão de ser do jornal num texto de apresentação que saísse como o Murilo queria. Acho que foram umas vinte tentativas, todas rechaçadas pelo Murilo com um "ainda não é bem isso". (Lembrai-vos de 75, que não tinha computadores e e-mails: aquele era o tempo das máquinas de escrever e das laudas que iam e vinham...) Até que, um dia, ele chegou com a frase síntese - e, para mim, salvadora: "Viver pretende ser uma espécie de manual de sobrevivência na cidade grande". Ufa! Acertado o texto, Murilo se vai e eu, aliviado, aviso a um Guiminha já agoniado com o deadline da gráfica:
- Fechou a página 3!
Guiminha rosna:
- Vocês enrolam demais! Por isso é que eu me fodo...
A reação dele era perfeitamente explicável por outra historinha exemplar: a da escolha do logotipo. Guiminha calcula que foram mais de 200 tentativas! Deve ser exagero, mas ele lembra que Murilo passava dias e noites com catálogos gráficos embaixo do braço, "namorando a cada hora um tipo ou uma fonte diferente". Lembrai-vos de novo de 75: naquele tempo não havia essa moleza de hoje, em que até um simples programa de digitação como o Word tem dezenas de tipos diferentes à escolha do freguês. Compor e imprimir provas dos logotipos exigia muitas idas e vindas a um estúdio gráfico, e custava uma nota preta. Imaginem as tais 200 tentativas atormentando o Guiminha...
Mas tem outra história do perfeccionismo - e essa deixou dores físicas ao pobre Guima. Chegara o grande dia de lançar o Viver. A impressão foi em um jornal de bairro de Pinheiros, e é claro que antes já perdêramos longas horas no paste up. (Lá vamos nós, outra vez, ao século passado: naquele tempo, a matriz de cada página era montada com estilete e cola sobre uma folha de cartolina, texto a texto, título a título, legenda a legenda. Texto maior tinha de ser cortado ali mesmo, título maior - dizíamos "estourado" - tinha de ser refeito, digitado de novo, colado outra vez. Era o tal paste up. Um sufoco.)
Impresso o jornal, achamos todos que ficou uma beleza. Tablóide, colorido, diagramação sofisticada, belas fotos... parecia revista. Era noite, hora de mandar para as bancas! Não, não era: Murilo achou que aquelas bordas meio serrilhadas que as rotativas deixam no papel jornal não ficariam bem no sofisticado "Viver". Mandou refilar tudo.
Não lembro mais a tiragem, mas era uma pequena montanha de jornais empacotados. Como refilar tudo aquilo, pacote por pacote, e àquela hora da noite? Sobrou para o Guiminha, claro. E lá se foi ele, acho que num caminhão, atrás de uma gráfica que o amigo Miguel Jorge arranjou. Passou a noite ao lado de uma guilhotina, desempacotando, refilando, empacotando de novo. Ficou com tanta dor nas costas que nem pôde trabalhar no dia seguinte.
Mas o "Viver" saiu, refilado e elegante. Chegou às bancas para uma gloriosa, porém curtíssima carreira, que terminou poucos números depois num gesto tão sofisticado como seu criador. Certa tarde, Murilo entrou na pequena redação, distribuiu taças à turma, estourou uma garrafa do champanhe mais caro da época e anunciou, sorrindo, que a nossa aventura terminava ali. Um brinde ao "Viver"!
Grande Murilo.

Sergio Rondino começou a carreira jornalística no Jornal da Tarde, em 1967, como repórter, quando o Murilo era secretário de redação. Saiu de lá em 1988 para fazer televisão, quando Murilo já estava na área publicitária. Aprendeu muito com ele nesses anos, convivendo dentro e fora das redações. E a ele deve vários progressos e promoções profissionais. Foi um amigo.

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