Carlos Brickmann
Tudo bem, jornalismo é informação. Mas foi o Murilinho que me mostrou uma outra faceta do que deve ser a imprensa: além de mexer com a imagem dos outros, para o bem ou para o mal, precisa também cuidar da própria imagem.
Eu era editor de Internacional do Jornal da Tarde. Fechávamos de madrugada, com uma esticada pela manhã; e o jornal ia às bancas por volta de meio-dia.
Apareceu-me uma notícia interessante: com a alta do preço dos combustíveis, o Japão estava desenvolvendo um novo navio petroleiro, especialmente econômico - um veleiro. Era um veleiro supermoderno, com localização via satélite, velas controladas por computador, motores auxiliares - se a velocidade caísse abaixo de determinado limite, os motores entrariam em ação. A idéia é que mais da metade da viagem fosse realizada só com os ventos.
Mais de cem anos depois, a volta dos veleiros! Enchi meia página com uma foto do Cutty Sark, um veloz veleiro inglês que fazia a rota da China. E preparei uma matéria sobre o papel dos veleiros nas comunicações e na guerra.
Por volta das três da manhã, o Murilinho chegou à Redação. Olhou a página, gostou da idéia, não gostou da diagramação. Resolveu mudar tudo, até a posição do jornal: deixou a página na horizontal, com o veleiro ocupando todo o espaço. E a matéria corria em volta do navio, uma linha avançando até a ponta da vela, outra um pouco menor, outra pequenininha, aí uma enorme - e, naturalmente, sem hífens, que o Murilinho não gostava disso.
O diagramador ficou mais de duas horas calculando a matéria linha por linha, cada uma com um tamanho diferente. Eu peguei a matéria pronta e refiz tudo nas novas medidas - fui terminar lá pelas nove da manhã.
Saiu linda. Mesmo assim, fui procurar o Murilo e mostrar-lhe que a matéria era ilegível: ninguém teria paciência de virar o jornal de lado e ler uma linha de 142 toques, depois outra de três toques, depois outra com 27. Para minha surpresa, ele concordou.
"Ninguém vai ler, Carlinhos. Mas todo mundo vai dizer: veja só como este jornal é bem feito".
Bingo: reforçava-se a idéia do mercado de que o Jornal da Tarde tinha um acabamento impecável, que era muito bem feito. E, cá entre nós, ninguém perdeu nada ao não ler a matéria sobre os veleiros. No fundo, não tinha importância nenhuma. E o tal veleiro japonês nunca mais apareceu no noticiário.
segunda-feira, 25 de agosto de 2008
quinta-feira, 21 de agosto de 2008
Triste
Monja Coen
Fico me lembrando de sua figura esbelta e pálida, sempre carregando um guarda-chuvas, mesmo nos dias de sol.
Fico me lembrando de sua figura esbelta e pálida, sempre carregando um guarda-chuvas, mesmo nos dias de sol.
Quando fui pedir emprego no JT, isso nos idos de 1968, ele me recebeu em sua sala. Fui poucas vezes a sua sala, talvez umas duas ou três vezes durante todo o pouco tempo (menos de três anos) em que trabalhei no JT.
Há alguns poucos anos, telefonei para ele. Murilo estava no JT novamente. Talvez fosse no ano 2000? Não pude ir.
Aprendi a respeitá-lo e de certa forma temê-lo. Por que? Eu não saberia dizer.
Depois de meses como estagiária, éramos três meninas - Murilo se inspirara nas meninas do JB do Rio - um dia tomamos coragem e fomos falar com ele. Eu estava muito nervosa, com vinte e um anos de idade, sem nenhuma experiência empregatícia, ter de ir falar com alguém se me contratava ou não pois estava chegando no pico do meu estresse.
Ele ouviu, sorriu, levantou os olhos e disse : “Mas vocês estão sendo contratadas este mês.”
Alguns meses mais tarde tivemos censura no jornal. E quanto todos nós repórteres decidimos fazer greve contra a censura, Murilo ficou com Dr. Rui e talvez mais uma ou duas pessoas e fecharam juntos todo o jornal.
Alguns meses mais tarde tivemos censura no jornal. E quanto todos nós repórteres decidimos fazer greve contra a censura, Murilo ficou com Dr. Rui e talvez mais uma ou duas pessoas e fecharam juntos todo o jornal.
Há alguns poucos anos, telefonei para ele. Murilo estava no JT novamente. Talvez fosse no ano 2000? Não pude ir.
Fiquei na saudade.
Havia em sua vida um piano. Será que eu o ouvi tocar, que o vi tocar um piano de cauda, negro?
Ou serão apenas fragmentos de memória perdidos nas histórias que me contavam?
Saudades do seu sorriso, da pele clara, dos dedos longos e da inteligência brilhante que parecia ver através de cada um de nós.
No meu caminho a passagem pela redação do JT, chefiada por ele, foi essenciall para a abertura de consicência da realidade e para minha transformação, hoje, em monja zen budista.
Profundos agradecimentos. Murilo Feliz berto.
Ou serão apenas fragmentos de memória perdidos nas histórias que me contavam?
Saudades do seu sorriso, da pele clara, dos dedos longos e da inteligência brilhante que parecia ver através de cada um de nós.
No meu caminho a passagem pela redação do JT, chefiada por ele, foi essenciall para a abertura de consicência da realidade e para minha transformação, hoje, em monja zen budista.
Profundos agradecimentos. Murilo Feliz berto.
Descanse em paz. Missão cumprida.
Formou jornalistas, formou pessoas, formou seres humanos integros e bons através de seu exemplo, de sua vida, manifesta em seu andar, seu olhar, sua fala mansa, baixa, firme, correta. Valeu.
Sempre indo, indo, tendo ido e já tendo chegado.
Sempre indo, indo, tendo ido e já tendo chegado.
Na Terra Pura dos seres iluminados.
Mãos em prece
Monja Coen
(naqueles tempos Claudia Batista)
Mãos em prece
Monja Coen
(naqueles tempos Claudia Batista)
quarta-feira, 20 de agosto de 2008
Minhas Histórias do Mu
Toní Rodrigues
1- O RAFE MISTERIOSO
Uma das histórias do Mu, ele morreu sem saber, ou pelo menos sem saber a parte engraçada. Aconteceu no 5º andar da DPZ mais ou menos em 1987. Eu, o Carlão, o Delba e a Margô éramos assistentes lá, junto com o Jairo. O Mú ainda fazia dupla com o Toledão, o único dos aqui citados que eu não sei se tomou parte na trama.
Como todo mundo sabe, o Mu fazia uns rafinhos em papel manteiga bem pequenininhos, porém muito detalhados e cheios de informações, instruções e referências. Ia de tudo alí, desde o tipo a ser utilizado, com o tamanho, o corpo e a cor, até dicas do tipo “veja o livro do Lubalin”, tudo mais ou menos costurado por um desenho no traço tremidinho do Mu.
Um dia ao voltar do almoço, encontro na minha mesa uma revista Idea com um página marcada e nela, presa com durex, um dos rafinhos do Mu como os descritos acima e uma folha de papel sulfite com um título (supostamente do Toledão) para ser marcado no anúncio. Até aí tudo bem, mas ao ler o “job” melhor fui vendo que o Mu estava me pedindo um layout extremamente trabalhoso (dias pré Macintosh, tudo tinha que ser feito artesanalmente) e num canto do rafinho tinha o aviso fatal: “urgente, para as 3 horas”.
Entrei em pânico e fui falar com ele, perguntar se o prazo era aquele mesmo. A primeira coisa que ele me disse foi “Como assim, Toni? Eu não te passei trabalho nenhum...” voltei pra minha mesa, peguei tudo e mostrei pra ele, que imediatamente ficou pasmo.
Eu ainda não tinha percebido, mas nessa altura todo mundo em volta já estava saindo de fininho. Ele olhou pra mim, olhou pro rafe, olhou pra mim, olhou pro rafe, tirou os óculos, esfregou os olhos, olhou de novo pro rafe e finalmente me disse pra desencanar daquilo. Disse que era algo que ele tinha feito num outro dia, mas que o anúncio tinha sido descartado e que alguém deve ter achado aquilo por alí e colocado na minha mesa.
Abriu uma gaveta e fechou tudo lá dentro. Eu disse ok e voltei pra mesa. Passaram uns minutos e ouvi um sussurro: era o Delba (acho) me chamando pro café, onde todos riam de rolar. O rafe era falso, obra do talento de falsário do Carlão. O plano era eu ter um chilique com o prazo, mas ninguém contava que eu fosse mostrar o rafe pro Mu. Quando mostrei, todos prenderam a respiração, achando que tudo tinha ido pro caralho, mas ao perceberem que tinham enganado até ele, só restou sair de cena pra poder rir. Ficamos em dúvida se contávamos pro Mu, ou não. Achamos melhor não, afinal éramos crianças e ficamos com mêdo. Mas acho que se a gente tivesse contado ele teria dado risada junto com a gente.
2 - O JEITO DE PRONUNCIAR O MEU NOME
Meu nome, como já devem ter adivinhado, é Antonio, mas há muito tempo todo mundo que me conhece, fora do mundo da propaganda, me chama de Toní. No mundo da propaganda, por obra e graça do Mu, todos me chamam de Toní. Nem eu, nem ninguém nunca entendeu a razão disso, o Mu nunca explicou, mas de tanto insistir pegou. A tal ponto que quando minha mulher ligava pra mim e o telefone era atendido por outra pessoa, ela era frequentemente corrigida: “Você quer dizer Toní, né?”. Um dia, alguém perguntou pro Mu porque ele me tinha mudado meu nome de Toni para Toní e se isso não me incomodava, ao que o Mu teria respondido: “Se incomodar porquê? Por quê ele vai querer ser um Toni qualquer quando pode ser Toní?” Isso foi um cumprimento e tanto.
3 - O DATILÓGRAFO MAIS RÁPIDO DO MUNDO
Logo que a gente abriu o 7º andar, o Mu e eu fomos brindados com uma estagiária, daquelas que ganhavam estágio por serem filhas de cliente. Ainda não tinha redator trabalhando com a gente, o Stalimir estava pra vir da DPZ Rio (ele acabou indo pra W e o Fernandinho Teperdjian foi contratado, mas isso é outra história), mas enquanto isso não acontecia o Mu tinha a ajuda do Rique Freire, do Ruizão ou do Toledão, que continuavam no 5º andar. Mas ele também fazia redação (claro, pô, era o Mu) e pra isso tinha lá uma maquininha Olivetti Lettera 32. A nossa estagiária trouxe de casa a última moda entre os redatores da época: a primeira máquina de escrever elétrica pequena da Olivetti, que não era um trombolhão como aquelas IBMs de esfera e era o sonho de consumo de 9 entre 10 redatores da era pré-Word. Então ela começou a encher o saco do Mu, dizendo que não tinha mais cabimento se usar numa agência charmosa e moderna como a DPZ uma máquina de escrever como a que ele estava usando, que ainda por cima era muuuuuuuito mais lenta. O Mu então abaixou os óculos para a ponta do nariz e me vendo, deu um sorrisinho sacana. A seguir atacou as pretinhas com uma velocidade de metralhadora, que eu nunca tinha visto até então e datilografando com 2 dedos, catando milho, em menos de 1 minuto escreveu um texto mais ou menos do tamanho deste aqui, não me lembro mais sobre o que. A estagiária nunca mais reclamou. E depois disso eu pedi várias vezes para o Mu que fizesse aquilo de novo para que outras pessoas vissem como ele era rápido. Ele nunca me atendeu.
4 - NOSSO TIPO INESQUECÍVEL
O Mu era um grande conhecedor de tipografia, um verdadeiro expert nesta arte perdida.
Toda vez que o Mu pegava um job ele exercia em primeiro lugar o seu pensamento tipográfico. Que tipo ele ia escolher para compor o anúncio? Na era pré-Mac, pedir variações tipográficas de um título e um texto significava um volume bem grande de trabalho. Invariavelmente eu e os outros assistentes penávamos com isso, tinhamos que pedir os tipos em fotocomposição e compor o texto simulado com cópias fotográficas, quase sempre tendo que montar e remontar tudo várias vezes na base da faca, tesoura e cola benzina, abrindo o entrelinhamento e o espaço entre letras à mão, até satisfazer o Mu. Isso usando sempre três ou quatro famílias previamente escolhidas e não raro com pesos diferentes em cada uma. Às vezes ele se apaixonava por uma determinada fonte e a gente tinha que fazer de tudo com ela pra ele ver, eu ainda me lembro bem da paixão dele pela Benbo e do desprezo que teve pela Copperplate, que achava deselegantérrima. O louco é que na maioria das vezes todo esse esforço acabava num “vamos usar Futura Bold mesmo...” e isso me levava ao desespero. Porque diabos ele tinha me feito ter tanto trabalho pra acabar compondo tudo em Futura Bold? Só muito tempo depois eu saquei que ele estava era nos ensinando.
Eu e ele tinhamos uma brincadeira em comum, quando o job sobrava pra mim. Eu perguntava pra ele qual era o tipo inesquecível dele naquela semana, numa alusão à coluna “Meu tipo inesquecível” da antiga Seleções. Ele adorava. Da primeira vez que eu perguntei ele ficou surpreso e me perguntou como um garoto como eu conhecia aquela velharia, não lembro o que eu respondi, mas a bincadeira continuou. Até que teve um dia em que depois de uma dessas experimentações tipográficas com um tipo que parecia lindo no catálogo eu e ele chegamos a conclusão de que era melhor mesmo usar Futura Bold. Então eu disse assim: “É, Murilo, em certos tipos não se pode confiar...”. O Mu teve um ataque de riso e passou a repetir isso a torto e a direito, sempre que me via. Acho que ele gostou mesmo é porque eu não tinha dito aquilo sem pensar no óbvio duplo sentido da frase, que ele, sendo quem era, transformou numa coisa muito maior e melhor.
1- O RAFE MISTERIOSO
Uma das histórias do Mu, ele morreu sem saber, ou pelo menos sem saber a parte engraçada. Aconteceu no 5º andar da DPZ mais ou menos em 1987. Eu, o Carlão, o Delba e a Margô éramos assistentes lá, junto com o Jairo. O Mú ainda fazia dupla com o Toledão, o único dos aqui citados que eu não sei se tomou parte na trama.
Como todo mundo sabe, o Mu fazia uns rafinhos em papel manteiga bem pequenininhos, porém muito detalhados e cheios de informações, instruções e referências. Ia de tudo alí, desde o tipo a ser utilizado, com o tamanho, o corpo e a cor, até dicas do tipo “veja o livro do Lubalin”, tudo mais ou menos costurado por um desenho no traço tremidinho do Mu.
Um dia ao voltar do almoço, encontro na minha mesa uma revista Idea com um página marcada e nela, presa com durex, um dos rafinhos do Mu como os descritos acima e uma folha de papel sulfite com um título (supostamente do Toledão) para ser marcado no anúncio. Até aí tudo bem, mas ao ler o “job” melhor fui vendo que o Mu estava me pedindo um layout extremamente trabalhoso (dias pré Macintosh, tudo tinha que ser feito artesanalmente) e num canto do rafinho tinha o aviso fatal: “urgente, para as 3 horas”.
Entrei em pânico e fui falar com ele, perguntar se o prazo era aquele mesmo. A primeira coisa que ele me disse foi “Como assim, Toni? Eu não te passei trabalho nenhum...” voltei pra minha mesa, peguei tudo e mostrei pra ele, que imediatamente ficou pasmo.
Eu ainda não tinha percebido, mas nessa altura todo mundo em volta já estava saindo de fininho. Ele olhou pra mim, olhou pro rafe, olhou pra mim, olhou pro rafe, tirou os óculos, esfregou os olhos, olhou de novo pro rafe e finalmente me disse pra desencanar daquilo. Disse que era algo que ele tinha feito num outro dia, mas que o anúncio tinha sido descartado e que alguém deve ter achado aquilo por alí e colocado na minha mesa.
Abriu uma gaveta e fechou tudo lá dentro. Eu disse ok e voltei pra mesa. Passaram uns minutos e ouvi um sussurro: era o Delba (acho) me chamando pro café, onde todos riam de rolar. O rafe era falso, obra do talento de falsário do Carlão. O plano era eu ter um chilique com o prazo, mas ninguém contava que eu fosse mostrar o rafe pro Mu. Quando mostrei, todos prenderam a respiração, achando que tudo tinha ido pro caralho, mas ao perceberem que tinham enganado até ele, só restou sair de cena pra poder rir. Ficamos em dúvida se contávamos pro Mu, ou não. Achamos melhor não, afinal éramos crianças e ficamos com mêdo. Mas acho que se a gente tivesse contado ele teria dado risada junto com a gente.
2 - O JEITO DE PRONUNCIAR O MEU NOME
Meu nome, como já devem ter adivinhado, é Antonio, mas há muito tempo todo mundo que me conhece, fora do mundo da propaganda, me chama de Toní. No mundo da propaganda, por obra e graça do Mu, todos me chamam de Toní. Nem eu, nem ninguém nunca entendeu a razão disso, o Mu nunca explicou, mas de tanto insistir pegou. A tal ponto que quando minha mulher ligava pra mim e o telefone era atendido por outra pessoa, ela era frequentemente corrigida: “Você quer dizer Toní, né?”. Um dia, alguém perguntou pro Mu porque ele me tinha mudado meu nome de Toni para Toní e se isso não me incomodava, ao que o Mu teria respondido: “Se incomodar porquê? Por quê ele vai querer ser um Toni qualquer quando pode ser Toní?” Isso foi um cumprimento e tanto.
3 - O DATILÓGRAFO MAIS RÁPIDO DO MUNDO
Logo que a gente abriu o 7º andar, o Mu e eu fomos brindados com uma estagiária, daquelas que ganhavam estágio por serem filhas de cliente. Ainda não tinha redator trabalhando com a gente, o Stalimir estava pra vir da DPZ Rio (ele acabou indo pra W e o Fernandinho Teperdjian foi contratado, mas isso é outra história), mas enquanto isso não acontecia o Mu tinha a ajuda do Rique Freire, do Ruizão ou do Toledão, que continuavam no 5º andar. Mas ele também fazia redação (claro, pô, era o Mu) e pra isso tinha lá uma maquininha Olivetti Lettera 32. A nossa estagiária trouxe de casa a última moda entre os redatores da época: a primeira máquina de escrever elétrica pequena da Olivetti, que não era um trombolhão como aquelas IBMs de esfera e era o sonho de consumo de 9 entre 10 redatores da era pré-Word. Então ela começou a encher o saco do Mu, dizendo que não tinha mais cabimento se usar numa agência charmosa e moderna como a DPZ uma máquina de escrever como a que ele estava usando, que ainda por cima era muuuuuuuito mais lenta. O Mu então abaixou os óculos para a ponta do nariz e me vendo, deu um sorrisinho sacana. A seguir atacou as pretinhas com uma velocidade de metralhadora, que eu nunca tinha visto até então e datilografando com 2 dedos, catando milho, em menos de 1 minuto escreveu um texto mais ou menos do tamanho deste aqui, não me lembro mais sobre o que. A estagiária nunca mais reclamou. E depois disso eu pedi várias vezes para o Mu que fizesse aquilo de novo para que outras pessoas vissem como ele era rápido. Ele nunca me atendeu.
4 - NOSSO TIPO INESQUECÍVEL
O Mu era um grande conhecedor de tipografia, um verdadeiro expert nesta arte perdida.
Toda vez que o Mu pegava um job ele exercia em primeiro lugar o seu pensamento tipográfico. Que tipo ele ia escolher para compor o anúncio? Na era pré-Mac, pedir variações tipográficas de um título e um texto significava um volume bem grande de trabalho. Invariavelmente eu e os outros assistentes penávamos com isso, tinhamos que pedir os tipos em fotocomposição e compor o texto simulado com cópias fotográficas, quase sempre tendo que montar e remontar tudo várias vezes na base da faca, tesoura e cola benzina, abrindo o entrelinhamento e o espaço entre letras à mão, até satisfazer o Mu. Isso usando sempre três ou quatro famílias previamente escolhidas e não raro com pesos diferentes em cada uma. Às vezes ele se apaixonava por uma determinada fonte e a gente tinha que fazer de tudo com ela pra ele ver, eu ainda me lembro bem da paixão dele pela Benbo e do desprezo que teve pela Copperplate, que achava deselegantérrima. O louco é que na maioria das vezes todo esse esforço acabava num “vamos usar Futura Bold mesmo...” e isso me levava ao desespero. Porque diabos ele tinha me feito ter tanto trabalho pra acabar compondo tudo em Futura Bold? Só muito tempo depois eu saquei que ele estava era nos ensinando.
Eu e ele tinhamos uma brincadeira em comum, quando o job sobrava pra mim. Eu perguntava pra ele qual era o tipo inesquecível dele naquela semana, numa alusão à coluna “Meu tipo inesquecível” da antiga Seleções. Ele adorava. Da primeira vez que eu perguntei ele ficou surpreso e me perguntou como um garoto como eu conhecia aquela velharia, não lembro o que eu respondi, mas a bincadeira continuou. Até que teve um dia em que depois de uma dessas experimentações tipográficas com um tipo que parecia lindo no catálogo eu e ele chegamos a conclusão de que era melhor mesmo usar Futura Bold. Então eu disse assim: “É, Murilo, em certos tipos não se pode confiar...”. O Mu teve um ataque de riso e passou a repetir isso a torto e a direito, sempre que me via. Acho que ele gostou mesmo é porque eu não tinha dito aquilo sem pensar no óbvio duplo sentido da frase, que ele, sendo quem era, transformou numa coisa muito maior e melhor.
terça-feira, 19 de agosto de 2008
Conduzindo Mr. Murilo
Alexandre
Fiquei muito feliz por para prestar homenagem a um grande amigo e pessoa muito querida que é Murilo Felisberto.
A maioria das nossas viagens felizmente foram muito alegres e bonitas. Murilo sempre me perguntava das novidades. Por eu ser motorista, muitas pessoas contam os acontecidos e eu às vezes tinha coisas para contar de nossos amigos.
Quando íamos para Lavras, os assuntos sempre começavam na divisa de São Paulo e Minas, com a mudança da cor do céu. Ele sempre ficava feliz com o azul de Minas Gerais e então falávamos dos nossos amigos Rafa, Luis, JP, Galináceo e etc.
O Murilo sempre queria que eu observasse o Rafa, os seus anéis, o comercial que ele participou para um amigo, o corte de cabelo feito em Nova York, etc., para que eu comentasse o que achava. Ele também sempre falava do seu apartamento, do barulho do elevador, dos vazamentos que o deixavam irritadíssimo, do ar condicionado que sempre dava algum problema. Mas o que o deixava preocupado e sempre antecipava a sua viagem era qualquer evento na Avenida Paulista, pelo motivo de as pessoas acabarem com o silêncio que ele tanto gostava.
A alegria e o breve descanso na hora do almoço sempre aconteciam num restaurante em Três Corações chamado o Rei da Traira, onde ele era bem conhecido. Com sua delicadeza, mas muito exigente, sempre queria comparar e qualificar um concorrente que o restaurante tinha em Lavras, cujo dono era muito mal educado, mas o prato era melhor preparado.
O que me deixou muito satisfeito foi uma viagem que fizemos para ver um piano em Sorocaba, onde ele achou a cidade muito bonita e limpa. Ele me contou que era uma pessoa realizada, desde os tempos do Jornal até a sua aposentaria, passando pela DPZ, no qual ele sempre falava com extrema alegria. Contou-me da felicidade que tinha em ter feito tudo o que ele gostava, tudo com amor e alegria.
Agradeço o privilégio de ter conhecido e poder ter convivido com o Sr. Murilo Felisberto, mesmo que em breves viagens. Tenho por ele muito carinho e respeito. Tenho também a certeza de que ele estará sempre conosco, nos jantares de quinta, nas rodas de publicitários e jornalistas e em minhas viagens.
Fiquei muito feliz por para prestar homenagem a um grande amigo e pessoa muito querida que é Murilo Felisberto.
A maioria das nossas viagens felizmente foram muito alegres e bonitas. Murilo sempre me perguntava das novidades. Por eu ser motorista, muitas pessoas contam os acontecidos e eu às vezes tinha coisas para contar de nossos amigos.
Quando íamos para Lavras, os assuntos sempre começavam na divisa de São Paulo e Minas, com a mudança da cor do céu. Ele sempre ficava feliz com o azul de Minas Gerais e então falávamos dos nossos amigos Rafa, Luis, JP, Galináceo e etc.
O Murilo sempre queria que eu observasse o Rafa, os seus anéis, o comercial que ele participou para um amigo, o corte de cabelo feito em Nova York, etc., para que eu comentasse o que achava. Ele também sempre falava do seu apartamento, do barulho do elevador, dos vazamentos que o deixavam irritadíssimo, do ar condicionado que sempre dava algum problema. Mas o que o deixava preocupado e sempre antecipava a sua viagem era qualquer evento na Avenida Paulista, pelo motivo de as pessoas acabarem com o silêncio que ele tanto gostava.
A alegria e o breve descanso na hora do almoço sempre aconteciam num restaurante em Três Corações chamado o Rei da Traira, onde ele era bem conhecido. Com sua delicadeza, mas muito exigente, sempre queria comparar e qualificar um concorrente que o restaurante tinha em Lavras, cujo dono era muito mal educado, mas o prato era melhor preparado.
O que me deixou muito satisfeito foi uma viagem que fizemos para ver um piano em Sorocaba, onde ele achou a cidade muito bonita e limpa. Ele me contou que era uma pessoa realizada, desde os tempos do Jornal até a sua aposentaria, passando pela DPZ, no qual ele sempre falava com extrema alegria. Contou-me da felicidade que tinha em ter feito tudo o que ele gostava, tudo com amor e alegria.
Agradeço o privilégio de ter conhecido e poder ter convivido com o Sr. Murilo Felisberto, mesmo que em breves viagens. Tenho por ele muito carinho e respeito. Tenho também a certeza de que ele estará sempre conosco, nos jantares de quinta, nas rodas de publicitários e jornalistas e em minhas viagens.
segunda-feira, 18 de agosto de 2008
Murilo, som e luz
José Hamilton Ribeiro
(texto publicado na Folha de S. Paulo em 30/5/07)
Às 22h, num sábado, na Redação da Folha, não havia quase mais ninguém. Chega a notícia de que minha mãe tinha morrido. Naqueles tempos sem celular, quem é que poderia encontrar um repórter solteiro e com fama de boêmio?
- O Murilo. O Murilo sabe da vida dessa reportada toda.
Localizaram o Murilo e, em menos de uma hora, ele me achou na casa de um tio da minha namorada. Eu saí às pressas para arranjar um jeito de ir para o interior. Murilo ficou lá mais um tempinho.
Os ventos sopraram para outro lado, aquele meu namoro veio ao fim e, algum tempo depois, Murilo estava casando com a moça que conhecera naquela noite triste (para mim).
(Quando adolescente, Murilo, que era mineiro de Lavras, passou um tempo em Areado, também MG, onde sua tia - médica - clinicava. Ali andou peruando uma moreninha, mas os ventos sopraram de novo e quem casou com essa mineirinha fui eu...)
Murilo Agostini Felisberto morreu no dia 11, em São Paulo, aos 67 anos. Ele mexeu com o jornalismo no Brasil.
Murilo e eu começamos nesta mesma Folha, no fim dos anos 50, quando o Brasil, embalado por Juscelino, vivia tempos de otimismo, muita novidade e "bossa-nova". Isso afetou também o jornalismo. Coincidiu a chegada na Folha, nessa mesma época, de uma caipirada que, após "aprender" na casa, acabou indo para a frente na profissão: Sérgio Pompeu veio a ser redator-chefe na "Veja", Woyle Guimarães, diretor da Central Globo de Jornalismo, Sérgio de Souza, edtor de texto da "Realidade", Jósé Carlos Maranhão, diretor da "Quatro Rodas", Flávio Barros, diretor na editora Globo, Washington Novais, chefe do "Globo Repórter", Aloísio Biondi, diretor de vários jornais, com Joelmir Betting correndo por fora e fazendo a modernização do jornalismo econômico com o extermínio do economês, além de uns outros que preferiram ir ganhar a vida em campo diferente: Neil Ferreira na publicidade, Mauricio de Sousa nos quadrinhos, Renato Mazzei como embaixador.
Mais uns tantos que agora esqueci.
A Redação da Folha sempre foi nervosa, efervescente, mas aquela foi de fato uma fase assinalada. Murilo era uma referência no meio da turma. Andava com um maço de revistas americanas embaixo do braço, sabia de cor as "leis do jornalismo" (a maioria vinda dos EUA, mas naquele momento foram importantes para nós) e, dizia-se, também o expediente de qualquer jornal ou revista (que valesse a pena) do Brasil e do exterior. Além de ter sempre à mão o restaurante para a gente ir comer e conversar sem garçom chato por perto.
Nos anos 50, o jornalismo nosso era atrasadão. Os títulos, padronizados, burocráticos; o texto, repetitivo e maltratado; a "mancha" (espaço da página usado para informação), quadrada, sempre igual, "fechada na oficina", como se dizia. Murilo ajudou a implodir isso, primeiro na Folha, depois nas empresas do "Estadão", no "Jornal do Brasil", na Editora Abril.
Toda Redação tem a turma dos "exibidos" (os que aparecem para o público) e o pessoal da criação, da edição. Murilo era dos que apareciam pouco. Mesmo no tempo curtíssimo em que foi repórter, publicava raramente. Com excesso de autocrítica, não ficava satisfeito com o que fazia, jogava fora, sofria... Mas, quando entregava o texto, era coisa fina. Designado uma vez para cobrir o Dia da Aeromoça (num tempo em que aviões eram de luxo, saíam e chegavam na hora, e as comissárias eram "um avião" de beleza eterna), enquanto os outros jornais saíram com títulos como "Comemora-se amanhã o Dia da Aeromoça", o texto do Murilo tinha na cabeça: "Problema de aeromoça é que ela vai ser aerovelha...".
Hoje isso parece uma firula; na época, era pura subversão.
Sendo artista plástico (desenhava com facilidade incrível, até em guardanapo), gostando de música (tocava piano) e curtidor de som (a exigência na escolha da aparelhagem de som era quase uma excentricidade), via o jornal, a revista, a página em branco com um potencial artístico de tal forma que ficaram famosas pela beleza algumas das páginas e das capas que ajudou a fazer no "JT".
Robson Alves, diretor de arte da DPZ, agência onde Murilo trabalhou muito tempo, em seus intervalos jornalísticos, diz que a principal qualidade dele, para compor e dirigir equipes tão complicadas quanto as de reportagem ou de publicitários, era "combinar pessoas", juntar talentos, apesar de eventuais diferenças, para fazer um trabalho.
Murilo Felisberto era jornalista e artista. Deixa uma filha, Carlota, e um neto, Antônio. E um aperto no peito de um velho repórter.
(texto publicado na Folha de S. Paulo em 30/5/07)
Às 22h, num sábado, na Redação da Folha, não havia quase mais ninguém. Chega a notícia de que minha mãe tinha morrido. Naqueles tempos sem celular, quem é que poderia encontrar um repórter solteiro e com fama de boêmio?
- O Murilo. O Murilo sabe da vida dessa reportada toda.
Localizaram o Murilo e, em menos de uma hora, ele me achou na casa de um tio da minha namorada. Eu saí às pressas para arranjar um jeito de ir para o interior. Murilo ficou lá mais um tempinho.
Os ventos sopraram para outro lado, aquele meu namoro veio ao fim e, algum tempo depois, Murilo estava casando com a moça que conhecera naquela noite triste (para mim).
(Quando adolescente, Murilo, que era mineiro de Lavras, passou um tempo em Areado, também MG, onde sua tia - médica - clinicava. Ali andou peruando uma moreninha, mas os ventos sopraram de novo e quem casou com essa mineirinha fui eu...)
Murilo Agostini Felisberto morreu no dia 11, em São Paulo, aos 67 anos. Ele mexeu com o jornalismo no Brasil.
Murilo e eu começamos nesta mesma Folha, no fim dos anos 50, quando o Brasil, embalado por Juscelino, vivia tempos de otimismo, muita novidade e "bossa-nova". Isso afetou também o jornalismo. Coincidiu a chegada na Folha, nessa mesma época, de uma caipirada que, após "aprender" na casa, acabou indo para a frente na profissão: Sérgio Pompeu veio a ser redator-chefe na "Veja", Woyle Guimarães, diretor da Central Globo de Jornalismo, Sérgio de Souza, edtor de texto da "Realidade", Jósé Carlos Maranhão, diretor da "Quatro Rodas", Flávio Barros, diretor na editora Globo, Washington Novais, chefe do "Globo Repórter", Aloísio Biondi, diretor de vários jornais, com Joelmir Betting correndo por fora e fazendo a modernização do jornalismo econômico com o extermínio do economês, além de uns outros que preferiram ir ganhar a vida em campo diferente: Neil Ferreira na publicidade, Mauricio de Sousa nos quadrinhos, Renato Mazzei como embaixador.
Mais uns tantos que agora esqueci.
A Redação da Folha sempre foi nervosa, efervescente, mas aquela foi de fato uma fase assinalada. Murilo era uma referência no meio da turma. Andava com um maço de revistas americanas embaixo do braço, sabia de cor as "leis do jornalismo" (a maioria vinda dos EUA, mas naquele momento foram importantes para nós) e, dizia-se, também o expediente de qualquer jornal ou revista (que valesse a pena) do Brasil e do exterior. Além de ter sempre à mão o restaurante para a gente ir comer e conversar sem garçom chato por perto.
Nos anos 50, o jornalismo nosso era atrasadão. Os títulos, padronizados, burocráticos; o texto, repetitivo e maltratado; a "mancha" (espaço da página usado para informação), quadrada, sempre igual, "fechada na oficina", como se dizia. Murilo ajudou a implodir isso, primeiro na Folha, depois nas empresas do "Estadão", no "Jornal do Brasil", na Editora Abril.
Toda Redação tem a turma dos "exibidos" (os que aparecem para o público) e o pessoal da criação, da edição. Murilo era dos que apareciam pouco. Mesmo no tempo curtíssimo em que foi repórter, publicava raramente. Com excesso de autocrítica, não ficava satisfeito com o que fazia, jogava fora, sofria... Mas, quando entregava o texto, era coisa fina. Designado uma vez para cobrir o Dia da Aeromoça (num tempo em que aviões eram de luxo, saíam e chegavam na hora, e as comissárias eram "um avião" de beleza eterna), enquanto os outros jornais saíram com títulos como "Comemora-se amanhã o Dia da Aeromoça", o texto do Murilo tinha na cabeça: "Problema de aeromoça é que ela vai ser aerovelha...".
Hoje isso parece uma firula; na época, era pura subversão.
Sendo artista plástico (desenhava com facilidade incrível, até em guardanapo), gostando de música (tocava piano) e curtidor de som (a exigência na escolha da aparelhagem de som era quase uma excentricidade), via o jornal, a revista, a página em branco com um potencial artístico de tal forma que ficaram famosas pela beleza algumas das páginas e das capas que ajudou a fazer no "JT".
Robson Alves, diretor de arte da DPZ, agência onde Murilo trabalhou muito tempo, em seus intervalos jornalísticos, diz que a principal qualidade dele, para compor e dirigir equipes tão complicadas quanto as de reportagem ou de publicitários, era "combinar pessoas", juntar talentos, apesar de eventuais diferenças, para fazer um trabalho.
Murilo Felisberto era jornalista e artista. Deixa uma filha, Carlota, e um neto, Antônio. E um aperto no peito de um velho repórter.
sexta-feira, 15 de agosto de 2008
O jornal mais bonito do mundo
Magy Imoberdorf
Formada em design gráfico na Suíça, cheguei a São Paulo em 1969. Desde minha primeira semana no Brasil, o que mais me chamou atenção foi um jornal, o Jornal da Tarde. Ele era diagramado como uma revista de arte. Era lindo. Tinha espaços em branco, coisa que não existia em nenhum jornal - aliás, não existe até hoje. Comecei a colecionar as páginas e me lembro de um caderno inteiro sobre Napoleão (mais tarde fiquei sabendo que era diagramado pelo Flávio Marco).Logo em meu primeiro ano de Brasil, fui trabalhar com Neil Ferreira na Norton, e a gente pendurava nas paredes as páginas do Jornal da Tarde como exemplo de layout criativo e de bom gosto. Eu queria muito conhecer quem fazia o JT, um tal de Murilo Felisberto (que era chamado de Rainha pelos amigos). Acho que o chamavam assim porque ele reinava mesmo. De cabelos brancos desde sempre, falava baixíssimo e tinha as mãos muito delicadas, para virar páginas de livros com muito respeito.
Comecei a mandar bilhetes de fã para ele, falando que o JT era o jornal mais lindo do mundo, e que eu gostaria muito de conhecê-lo. Eu e a Helga, que na época era minha chefe, fomos convidadas para um jantar na casa do Murilo, que tinha acabado de se mudar para um apartamento na Cristiano Viana. Lá havia um enorme piano, uma mesa branca de um metro por um e quatro cadeiras. As louças nas quais o jantar foi servido tinham sido compradas no supermercado naquela tarde pela empregada. A Helga percebeu esse detalhe logo que chegamos, e disse: “Como é que um homem com tamanho bom gosto tem estes pratos em casa?”. Ele nunca perdoou a Helga por isso.
Mais tarde fiquei sabendo que no andar de baixo do apartamento havia um quarto, um banheiro e uma enorme sala com um tapete branco forrado de revistas de arte e livro de propaganda, de design, enfim, de tudo que havia de mais moderno em editorial no mundo.
Comecei a freqüentar a turma do Murilo, composta por Fernando B., Mitri, Ivan Ângelo, Flavinho (que morreu por causa de uma operação de amídala), Waldinho (o preferido do Murilo, que morreu aos 27 anos de aneurisma), Telmo, Martinho, Sandrinha Abdalla, José Carlos etc...
A gente jantava tardíssimo no Giovanni Bruno, e depois todos eles voltavam para o Estadão para fechar o Jornal da Tarde. Também íamos muito ao bar do Jaraguá que ficava ao lado do prédio do Estadão/Jornal da Tarde.
Quando entrava o presidente Juscelino Kubitschek, todos se levantavam para cumprimentá-lo. Ele era amigo do Murilo, aliás, o Murilo era amigo das pessoas certas, da verdadeira elite do Brasil. Ele sempre sabia tudo antes de todo mundo e ria quando alguém descobria algo que ele já sabia fazia tempo.
Acabei namorando o Murilo, mas não sei direito se era o Murilo ou se era o JT. Eles se confundiam e eu também me confundia. Fomos juntos uma vez à Inglaterra e ele foi recebido pelo editor-chefe do Financial Times com todas as honras que ele merecia por fazer o jornal mais bonito do mundo (nas palavras também desse editor-chefe do Financial Times).
O Murilo protegia a turma dele, ele amava todos, aceitava cada um do jeito que era e sabia tirar o máximo de cada um, estimulando, incentivando e motivando do jeito dele.
Ele levantava às 14h, tomava café sem falar uma palavra e lia uns oito jornais do Brasil e do mundo, que ninguém podia abrir antes dele – ele tinha ódio de jornal já lido. Às 18h ia para o Jornal, às 22h saía para jantar, meia-noite ele voltava para o jornal e só saia ninguém sabia quando.
Ele levantava às 14h, tomava café sem falar uma palavra e lia uns oito jornais do Brasil e do mundo, que ninguém podia abrir antes dele – ele tinha ódio de jornal já lido. Às 18h ia para o Jornal, às 22h saía para jantar, meia-noite ele voltava para o jornal e só saia ninguém sabia quando.
Nosso namoro não durou mais de um ano, pois só nos víamos no jantar das 22h à meia-noite, no Giovanni Bruno. Mas o que ficou foi um grande carinho e uma admiração por um homem que adorava o design gráfico, o jornalismo e a sua turma.
quarta-feira, 13 de agosto de 2008
Murilo, eterno Murilo
José Maria Mayrink
Foi amizade à primeira vista. Eu tinha dois anos de jornalismo, muito mais foca do que hoje, quatro décadas depois, quando cheguei à redação do Jornal do Brasil, em agosto de 1964, a convite não sei de quem, mas sem dúvida com o aval de Murilo Felisberto. Não o conhecia, mas ele sabia de minhas primeiras reportagens em Belo Horizonte - Correio de Minas, revista Alterosa e Diário de Minas - pois era um sujeito atento às novidades, sempre em busca do que chamava de revelações. Tínhamos amigos comuns, entre os quais Roberto Drummond, que por indicação dele foi ser copydesk no JB, um supercopy que, embora tivesse um belo salário, não se adaptou no Rio.
Murilo também não. Contratado por Alberto Dines para montar o Departamento de Pesquisa, surpreendeu os amigos, pois ninguém acreditava que ele saísse de São Paulo. Mineiros exilados - ele de Lavras, eu de Jequeri - logo nos entendemos nas poucas horas vagas que o trabalho nos dava. Como chegávamos cedo à redação, tirávamos um tempinho para tomar um café numa leiteria do Edifício Avenida Central, a dois quarteirões da Avenida Rio Branco, 110, antiga sede do JB. Café com pão e manteiga, pois ainda não havia pão de queijo no cardápio, era só pretexto para um bate-papo. Nenhuma pauta definida, mas sempre falando de reportagem.
Jornalismo, bons textos e boas fotos, comentários sobre a edição do dia, em meio a intermináveis silêncios, se intercalavam na conversa mineiríssima que a gente, de segunda a sexta-feira, naqueles meses de 1964 e no primeiro semestre de 1965, enquanto Murilo morou no Rio. Ele me pedia informações sobre quem estava se projetando em Minas, os novos talentos que pretendia incorporar à sua equipe, ali no JB ou em futuros projetos. As longas pausas da conversa me desconsertavam, pois quase nunca eu tinha respostas para o que me perguntava. Acho que esperava isso, porque na verdade só queria consolidar os conceitos já quase definitivos que fazia dos profissionais de sua admiração.
Noivo em São Paulo, Murilo passava a semana no Rio e tomava um avião da ponte aérea, toda tarde de sábado, para só voltar na segunda-feira. Costumava acompanhá-lo até o Aeroporto Santos Dumont, sempre a pé, para esticar a conversa e os silêncios da leiteria do Avenida Central. Num desses passeios, paramos na Cinelândia para comer pipoca.
- Como vai? - perguntou Murilo na hora de pagar.
- Tudo bem, mas são 50 cruzeiros - respondeu o pipoqueiro.
Apesar de nossa proximidade, nunca trabalhei com Murilo no Departamento de Pesquisa, que já em sua primeira fase reunia uma equipe extraordinária. Antônio Beluco Marra, Adauto Novaes, Luiz Carlos Lisboa, Luiz Paulo Horta, Luiz Tapias, Estela Lachter, João Máximo, Ana Maria Andrade, Moacyr Japiassu e Clotilde Hasselman foram os pioneiros de uma turma brilhante, à qual se juntariam em seguida Samuel Dirceu, Luiz Adolfo Pinheiro, José Nicodemus Pessoa, Roberto Pereira e Talvani Guedes Fonseca.
Outros vieram depois, mas, salvo traição da memória, chegaram após a volta de Murilo para São Paulo, onde ele participaria, peça-chave, da criação do Jornal da Tarde. Continuei no Rio por mais algum tempo, até que em junho de 1968 ele me telefonou para perguntar se não toparia sair do Rio. Mandou-me uma passagem de avião e, ao saber que Mino Carta também queria conversar comigo, aconselhou-me a ouvir a proposta de Veja, então em fase de lançamento.
- Vá para a Veja, pois a proposta do Mino é melhor; se não der certo, você vem pra cá - , disse Murilo, fazendo uma promessa que cumpriria seis meses depois. Luiz Orlando Carneiro, chefe de reportagem, tentou me segurar no JB e Alberto Dines, editor-chefe, também interveio. Não gostou de minha saída, tive a sensação de rompimento definitivo quando mantive a decisão de me demitir.
- Aquilo foi briga de amor, o Dines só não queria perder um bom repórter - comentou Murilo alguns meses depois, quando eu já estava no quinto andar da Rua Major Quedinho, trabalhando com ele em São Paulo. Um elogio que me deixou orgulhoso e uma interpretação que se confirmaria correta mais tarde, pois o Dines esqueceu o episódio e continuou meu amigo.
Murilo foi um dos meus mestres na profissão. Entusiasta da reportagem e, principalmente, de um bom texto, manteve-se fiel à sua mania de garimpar talentos promissores onde pudesse encontrá-los. Sobretudo em Minas, sua referência maior.
O JT e o Estado de S. Paulo devem a ele a descoberta ou a contratação de profissionais como Ivan Ângelo, Flávio Márcio, Marcos Faerman, Guilherme Duncan de Miranda, Fernando Mitre, Samuel Dirceu, Waldo Paolielo, Gabriel Manzano, Fernando e Toinho Portela, Valdir Sanches, Cláudia Batista, Valéria Wally, Anélio Barreto, Gilberto Mansur, Luiz Carlos Lisboa - e de mais uma dezena de talentos que se incorporaram à equipe pelas mãos dele ou de Mino Carta.
Ewaldo Dantas Ferreira, Fernando Morais, Ricardo Gontijo, Rolf Kuntz, Carlos Brickmann, Demócrito Moura, Inajar de Souza, Randáu Marques, Percival de Souza, Humberto Werneck, Moisés Rabinovici, Kleber de Almeida, Sérgio Rondino, Sandro Vaia, José Eduardo (Castor) Borgonovi, Antônio Carlos Fon, Marco Antônio Rezende, Marco Antônio de Menezes, Mário Lima, Décio Pedroso, Alberto Morelli, Ouhydes Fonseca, para citar mais alguns exemplos, também estavam no JT.
Luiz Carlos Lisboa, o Doutor Lisboa, como ele o tratava, foi braço direito do Murilo na redação. Sujeito de trato britânico, Lisboa foi encarregado de comunicar a um repórter que ele seria demitido, numa dessas fases de contenção de despesas.
- Acabo de ficar noivo, vou casar em janeiro, não posso ficar sem esse emprego - reagiu a vítima, deixando Lisboa sem reação. Também atônito, Murilo esperou passar um mês para mandar Lisboa voltar à carga.
- Já falei que vou casar em janeiro e que não posso sair. Quer me deixar irritado, é só tocar nesse assunto - insistiu o repórter que, é claro, acabou sendo mesmo dispensado.
Era esse o jeito de Murilo administrar pessoal. De fala mansa, sorriso constante e raras mostras de irritação, disfarçava com o silêncio, muitas vezes interpretado como indiferença, suas fases de mau-humor. Nunca me senti alvo de tais reações, mas ouvi sentidas queixas de alguns de seus melhores amigos.
Murilo adorava uma boa fofoca ou uma maldade até certo ponto inocente. Contava, repetia e, principalmente, ouvia com gosto o que corria pelas redações. Sabia também reconhecer o mérito e talento de seus colaboradores. Elogiava a boa apuração de uma reportagem, a excelência de um texto, a criatividade de uma diagramação. O JT deve a ele a qualidade e a beleza dwe sua melhor fase.
Em sua última passagem pela Avenida Marginal - ele mais uma vez editor-chefe do JT, eu na reportagem do Estado - tivemos rápidas conversas, quase só de pergunta e resposta, quando a gente se cruzava pelos corredores.
- Como vai a sua Igreja? - costumava me provocar, ao comentar posições oficiais do Vaticano ou manifestações de teólogos (referia-se aos da Libertação), quando queria falar de religião. Não importando o que eu pensasse, ele escutava e sorria.
Foi amizade até o fim.
Foi amizade à primeira vista. Eu tinha dois anos de jornalismo, muito mais foca do que hoje, quatro décadas depois, quando cheguei à redação do Jornal do Brasil, em agosto de 1964, a convite não sei de quem, mas sem dúvida com o aval de Murilo Felisberto. Não o conhecia, mas ele sabia de minhas primeiras reportagens em Belo Horizonte - Correio de Minas, revista Alterosa e Diário de Minas - pois era um sujeito atento às novidades, sempre em busca do que chamava de revelações. Tínhamos amigos comuns, entre os quais Roberto Drummond, que por indicação dele foi ser copydesk no JB, um supercopy que, embora tivesse um belo salário, não se adaptou no Rio.
Murilo também não. Contratado por Alberto Dines para montar o Departamento de Pesquisa, surpreendeu os amigos, pois ninguém acreditava que ele saísse de São Paulo. Mineiros exilados - ele de Lavras, eu de Jequeri - logo nos entendemos nas poucas horas vagas que o trabalho nos dava. Como chegávamos cedo à redação, tirávamos um tempinho para tomar um café numa leiteria do Edifício Avenida Central, a dois quarteirões da Avenida Rio Branco, 110, antiga sede do JB. Café com pão e manteiga, pois ainda não havia pão de queijo no cardápio, era só pretexto para um bate-papo. Nenhuma pauta definida, mas sempre falando de reportagem.
Jornalismo, bons textos e boas fotos, comentários sobre a edição do dia, em meio a intermináveis silêncios, se intercalavam na conversa mineiríssima que a gente, de segunda a sexta-feira, naqueles meses de 1964 e no primeiro semestre de 1965, enquanto Murilo morou no Rio. Ele me pedia informações sobre quem estava se projetando em Minas, os novos talentos que pretendia incorporar à sua equipe, ali no JB ou em futuros projetos. As longas pausas da conversa me desconsertavam, pois quase nunca eu tinha respostas para o que me perguntava. Acho que esperava isso, porque na verdade só queria consolidar os conceitos já quase definitivos que fazia dos profissionais de sua admiração.
Noivo em São Paulo, Murilo passava a semana no Rio e tomava um avião da ponte aérea, toda tarde de sábado, para só voltar na segunda-feira. Costumava acompanhá-lo até o Aeroporto Santos Dumont, sempre a pé, para esticar a conversa e os silêncios da leiteria do Avenida Central. Num desses passeios, paramos na Cinelândia para comer pipoca.
- Como vai? - perguntou Murilo na hora de pagar.
- Tudo bem, mas são 50 cruzeiros - respondeu o pipoqueiro.
Apesar de nossa proximidade, nunca trabalhei com Murilo no Departamento de Pesquisa, que já em sua primeira fase reunia uma equipe extraordinária. Antônio Beluco Marra, Adauto Novaes, Luiz Carlos Lisboa, Luiz Paulo Horta, Luiz Tapias, Estela Lachter, João Máximo, Ana Maria Andrade, Moacyr Japiassu e Clotilde Hasselman foram os pioneiros de uma turma brilhante, à qual se juntariam em seguida Samuel Dirceu, Luiz Adolfo Pinheiro, José Nicodemus Pessoa, Roberto Pereira e Talvani Guedes Fonseca.
Outros vieram depois, mas, salvo traição da memória, chegaram após a volta de Murilo para São Paulo, onde ele participaria, peça-chave, da criação do Jornal da Tarde. Continuei no Rio por mais algum tempo, até que em junho de 1968 ele me telefonou para perguntar se não toparia sair do Rio. Mandou-me uma passagem de avião e, ao saber que Mino Carta também queria conversar comigo, aconselhou-me a ouvir a proposta de Veja, então em fase de lançamento.
- Vá para a Veja, pois a proposta do Mino é melhor; se não der certo, você vem pra cá - , disse Murilo, fazendo uma promessa que cumpriria seis meses depois. Luiz Orlando Carneiro, chefe de reportagem, tentou me segurar no JB e Alberto Dines, editor-chefe, também interveio. Não gostou de minha saída, tive a sensação de rompimento definitivo quando mantive a decisão de me demitir.
- Aquilo foi briga de amor, o Dines só não queria perder um bom repórter - comentou Murilo alguns meses depois, quando eu já estava no quinto andar da Rua Major Quedinho, trabalhando com ele em São Paulo. Um elogio que me deixou orgulhoso e uma interpretação que se confirmaria correta mais tarde, pois o Dines esqueceu o episódio e continuou meu amigo.
Murilo foi um dos meus mestres na profissão. Entusiasta da reportagem e, principalmente, de um bom texto, manteve-se fiel à sua mania de garimpar talentos promissores onde pudesse encontrá-los. Sobretudo em Minas, sua referência maior.
O JT e o Estado de S. Paulo devem a ele a descoberta ou a contratação de profissionais como Ivan Ângelo, Flávio Márcio, Marcos Faerman, Guilherme Duncan de Miranda, Fernando Mitre, Samuel Dirceu, Waldo Paolielo, Gabriel Manzano, Fernando e Toinho Portela, Valdir Sanches, Cláudia Batista, Valéria Wally, Anélio Barreto, Gilberto Mansur, Luiz Carlos Lisboa - e de mais uma dezena de talentos que se incorporaram à equipe pelas mãos dele ou de Mino Carta.
Ewaldo Dantas Ferreira, Fernando Morais, Ricardo Gontijo, Rolf Kuntz, Carlos Brickmann, Demócrito Moura, Inajar de Souza, Randáu Marques, Percival de Souza, Humberto Werneck, Moisés Rabinovici, Kleber de Almeida, Sérgio Rondino, Sandro Vaia, José Eduardo (Castor) Borgonovi, Antônio Carlos Fon, Marco Antônio Rezende, Marco Antônio de Menezes, Mário Lima, Décio Pedroso, Alberto Morelli, Ouhydes Fonseca, para citar mais alguns exemplos, também estavam no JT.
Luiz Carlos Lisboa, o Doutor Lisboa, como ele o tratava, foi braço direito do Murilo na redação. Sujeito de trato britânico, Lisboa foi encarregado de comunicar a um repórter que ele seria demitido, numa dessas fases de contenção de despesas.
- Acabo de ficar noivo, vou casar em janeiro, não posso ficar sem esse emprego - reagiu a vítima, deixando Lisboa sem reação. Também atônito, Murilo esperou passar um mês para mandar Lisboa voltar à carga.
- Já falei que vou casar em janeiro e que não posso sair. Quer me deixar irritado, é só tocar nesse assunto - insistiu o repórter que, é claro, acabou sendo mesmo dispensado.
Era esse o jeito de Murilo administrar pessoal. De fala mansa, sorriso constante e raras mostras de irritação, disfarçava com o silêncio, muitas vezes interpretado como indiferença, suas fases de mau-humor. Nunca me senti alvo de tais reações, mas ouvi sentidas queixas de alguns de seus melhores amigos.
Murilo adorava uma boa fofoca ou uma maldade até certo ponto inocente. Contava, repetia e, principalmente, ouvia com gosto o que corria pelas redações. Sabia também reconhecer o mérito e talento de seus colaboradores. Elogiava a boa apuração de uma reportagem, a excelência de um texto, a criatividade de uma diagramação. O JT deve a ele a qualidade e a beleza dwe sua melhor fase.
Em sua última passagem pela Avenida Marginal - ele mais uma vez editor-chefe do JT, eu na reportagem do Estado - tivemos rápidas conversas, quase só de pergunta e resposta, quando a gente se cruzava pelos corredores.
- Como vai a sua Igreja? - costumava me provocar, ao comentar posições oficiais do Vaticano ou manifestações de teólogos (referia-se aos da Libertação), quando queria falar de religião. Não importando o que eu pensasse, ele escutava e sorria.
Foi amizade até o fim.
terça-feira, 12 de agosto de 2008
link
Maria Ignez Whitaker
“Aos 28 conheci Murilo.
Atravessamos marés
e mares diversos.
A corrente energética
nunca foi interrompida”
“Aos 28 conheci Murilo.
Atravessamos marés
e mares diversos.
A corrente energética
nunca foi interrompida”
segunda-feira, 11 de agosto de 2008
sábado, 9 de agosto de 2008
O Murilo NUNCA ERRA
Marc Tawil
Pouca coisa afligiu mais o Murilo durante sua última passagem pelo Jornal da Tarde do que a minha latente heterossexualidade. Uma causa que começou cedo, assim que dei os primeiros passos na redação, em abril de 2000. “Esse é, viu? Pode apostar”, murmurou ele ao Waltinho, o manager. “Você é sim! O Murilo NUNCA ERRA”, fazia (e faz até hoje) questão martelar na minha cabeça o Waltinho.
Gostávamos de travar diálogos improváveis, para alguns, inexplicáveis. Divertíamos-nos. Talvez por isso – o que me enche de orgulho –, eu não tenha sequer uma linha para escrever sobre o Murilo chefe, o Murilo publicitário, o Murilo redator, o Murilo repórter. O Murilo que guardo na memória é o amigo, o wise guy.
A última vez que nos vimos foi no Spot, no ano passado. Jantamos com o Ricardo Freire, amigo dele de longa data. Rimos bastante, falamos bem e mal do mundo (especialmente mal), ele com canetas no bolso da camisa azul e óculos de tartaruga, eu com um cachecol que o fazia sorrir.
Uns meses depois, combinamos um almoço.
- Marc Tawil, vou te levar a um lugar charmosim, onde tenho certeza de que você vai se sentir à vontade
- Numa sauna?
- Não, num bistrozin novo aqui na Melo Alves
Era uma terça. Como prometido, fui até a Melo Alves. Mas o elevador do prédio dele, nesse dia, quebrou.
- Desculpe... Se eu descesse, não subiria mais. Tenho aquele probleminha, você sabe...
Me lembro de ter almoçado só nesse dia. E me lembro também que estive à vontade, como ele sugeriu que eu ficaria. Estava certo. Óbvio, afinal, o Murilo NUNCA ERRA.
sexta-feira, 8 de agosto de 2008
E=m.c2
Cecília Vicente de AzevedoTenho sentido falta do Mu. Desde 1984 quando iniciamos o seu apartamento na Rua Piauí nunca mais nos deixamos.
Tenho saudades de vê-lo chegando com seus livros e revistas em baixo do braço, dos seus desenhos e caricaturas que fui colecionando durante as reuniões semanais.
Saudades do café e dos docinhos que mandava buscar. Do seu humor as vezes bom, outras nem tanto, que reconhecia apenas pela sua maneira de cumprimentar.
Com Murilo a tarde nunca era monótona; econômico em suas palavras bem colocadas, suas dicas sutis, a frase afiada.
Depois que acabamos a obra na Rua Piauí, continuamos a nos ver com freqüência, até que alguns anos depois resolveu sair do bairro e comprou uma cobertura na Rua Haddock Lobo.
Quando iniciamos o projeto, sugeri fazermos o feng shui. Dias depois Martine telefonou para o escritório e disse: Cecília estou surpresa, pois o seu cliente não tem matéria - é energia pura. E ele adorou.
Tenho saudades de vê-lo chegando com seus livros e revistas em baixo do braço, dos seus desenhos e caricaturas que fui colecionando durante as reuniões semanais.
Saudades do café e dos docinhos que mandava buscar. Do seu humor as vezes bom, outras nem tanto, que reconhecia apenas pela sua maneira de cumprimentar.
Com Murilo a tarde nunca era monótona; econômico em suas palavras bem colocadas, suas dicas sutis, a frase afiada.
Depois que acabamos a obra na Rua Piauí, continuamos a nos ver com freqüência, até que alguns anos depois resolveu sair do bairro e comprou uma cobertura na Rua Haddock Lobo.
Quando iniciamos o projeto, sugeri fazermos o feng shui. Dias depois Martine telefonou para o escritório e disse: Cecília estou surpresa, pois o seu cliente não tem matéria - é energia pura. E ele adorou.
quinta-feira, 7 de agosto de 2008
Por que eu?
Marino Maradei
Naquele tempo – 1976 – redator no Jornal da Tarde era chamado de copy desk. Havia pela redação do JT dezenas de copies, distribuídos em numerosas editoriais. Política, Internacional, Geral, Esporte, Variedades. Em 76, eu era copy de geral. Escondia-me, assustado, atrás de “minha Olivetti”. Não me sentia à altura daquele timaço de jornalistas que trabalhavam e circulavam no mesmo espaço em que eu – glória e calvário! – “fechava” matérias até alta madrugada. Registro: o secretário de redação era Ivan Ângelo, o escritor. Que fazia eu ali? A cada final de edição, convencido de que não era digno de ocupar aquele espaço, prometia-me não voltar mais no dia seguinte; desistir de tudo, sumir. Só que não desistia. E nada mudava. Certo dia...porém (era um começo de expediente), o Rabino aproximou-se de mim e anunciou: “O Murilo vai fazer um jornal. Um jornal dele, dono, editor e diretor; e quer que você vá trabalhar com ele.” Fui, sei lá se por um ato de coragem ou de desespero. Perguntei a Murilinho, algumas vezes: “Por que eu?” Jamais me respondeu. Apenas passava a mão em meu ombro, olhando para o nada. E ia embora, um monte de revistas debaixo dos braços.
Atônito, ao lado de Murilinho vi nascer o Viver, tablóide paulistano semanal, guiado pelo subtítulo: Programa completo dos prazeres da cidade.
A sede do Viver ocupava um pequeno conjunto de quatro salas num altíssimo edifício da rua Augusta, muito próximo à região dos Jardins. Questionava-me, sem acreditar – em meio a muito trabalho: – “Sou eu mesmo quem está aqui? Murilinho, diretor de redação do JT é também um empreendedor, como vai tocar esse Viver?”
Levou-o por cinco números. O zero (foto de capa de Chico Guerissi, direção de arte de Hélio de Almeida) saiu em abril de 1976. Eu não tinha, então, a mínima percepção de que, em1976, Murilinho estava criando no Viver um Time Out paulistano perfeito (e necessário) para 2007.
Quando o Viver fechou as portas, Murilinho reuniu os colaboradores mais próximos para brindar, com terna alegria, o final de uma aventura que não cabia em nenhum adjetivo. Brindou-nos com duas garrafas de champanhe. A primeira, uma Veuve Clicquot, de origem controlada; a segunda, uma Georges Aubert, nacional. Com aquele sorrizinho enigmático que sempre o marcou, Murilinho levantou copos de vidro (não havia taças disponíveis) e brincou: “Foram as últimas que sobraram de minha adega”.
Naquele tempo – 1976 – redator no Jornal da Tarde era chamado de copy desk. Havia pela redação do JT dezenas de copies, distribuídos em numerosas editoriais. Política, Internacional, Geral, Esporte, Variedades. Em 76, eu era copy de geral. Escondia-me, assustado, atrás de “minha Olivetti”. Não me sentia à altura daquele timaço de jornalistas que trabalhavam e circulavam no mesmo espaço em que eu – glória e calvário! – “fechava” matérias até alta madrugada. Registro: o secretário de redação era Ivan Ângelo, o escritor. Que fazia eu ali? A cada final de edição, convencido de que não era digno de ocupar aquele espaço, prometia-me não voltar mais no dia seguinte; desistir de tudo, sumir. Só que não desistia. E nada mudava. Certo dia...porém (era um começo de expediente), o Rabino aproximou-se de mim e anunciou: “O Murilo vai fazer um jornal. Um jornal dele, dono, editor e diretor; e quer que você vá trabalhar com ele.” Fui, sei lá se por um ato de coragem ou de desespero. Perguntei a Murilinho, algumas vezes: “Por que eu?” Jamais me respondeu. Apenas passava a mão em meu ombro, olhando para o nada. E ia embora, um monte de revistas debaixo dos braços.
Atônito, ao lado de Murilinho vi nascer o Viver, tablóide paulistano semanal, guiado pelo subtítulo: Programa completo dos prazeres da cidade.
A sede do Viver ocupava um pequeno conjunto de quatro salas num altíssimo edifício da rua Augusta, muito próximo à região dos Jardins. Questionava-me, sem acreditar – em meio a muito trabalho: – “Sou eu mesmo quem está aqui? Murilinho, diretor de redação do JT é também um empreendedor, como vai tocar esse Viver?”
Levou-o por cinco números. O zero (foto de capa de Chico Guerissi, direção de arte de Hélio de Almeida) saiu em abril de 1976. Eu não tinha, então, a mínima percepção de que, em1976, Murilinho estava criando no Viver um Time Out paulistano perfeito (e necessário) para 2007.
Quando o Viver fechou as portas, Murilinho reuniu os colaboradores mais próximos para brindar, com terna alegria, o final de uma aventura que não cabia em nenhum adjetivo. Brindou-nos com duas garrafas de champanhe. A primeira, uma Veuve Clicquot, de origem controlada; a segunda, uma Georges Aubert, nacional. Com aquele sorrizinho enigmático que sempre o marcou, Murilinho levantou copos de vidro (não havia taças disponíveis) e brincou: “Foram as últimas que sobraram de minha adega”.
Murilo Agostini Felisberto
Alfredo Alves de Lima
Fiquei muito alegre em saber desta iniciativa de montarmos um breve compêndio sobre nossas lembranças individuais com nosso querido Murilo, a quem chamarei daqui em diante da mesma maneira como sempre me referi a ele: “Mú”.
Tive o grande privilégio de conhecê-lo aos doze anos, quando me mudei para seu apartamento na Rua Cristiano Viana com minha mãe, Ignez Whitaker, e minhas duas irmãs, Nina e Meméia. Foi durante esta época que conheci minha terceira “irmã”, a Carlota, filha única do Mú.
Desde então, ele foi sempre um grande pai para mim – de certa maneira muito mais presente e ativo do que meu próprio pai biológico. Sempre me incentivou, me apoiou, me fez rir, me deu dicas, me surpreendeu e me amou – claro, à sua maneira absolutamente única e especial.
Adorava acordar de manhã e tomar café com ele, saborear um suco de laranja sempre super fresco, um pão com manteiga crocante com um boa dose de manteiga e um cafezinho bem escuro – sempre acompanhado de seus jornais e revistas. Adorava também ouví-lo tocar piano, o qual ficava no segundo andar de seu charmoso duplex.
Após algum tempo, nos mudamos para uma lindíssima casa na Rua Santo Antonio, no bairo do Bixiga, que minha mãe acabara de comprar e restaurar. Esta fase também foi marcada por muitos momentos alegres, dentre os quais sobresai a mudança de meu irmão Antonio Manoel, que havia deixado a casa de meu pai no Morumbi para vir morar conosco. Para melhorar, nossa família expandida contava agora também com as frequentes visitas de nossa querida Carlota.
Na casa da Rua Santo Antonio, tenho dois grandes momentos dos quais me recordo com especial carinho: O primeiro eram as nossas refeições, sempre populosas e muito animadas, que o Mú oportunamente enriquecia com seus comentários breves porém altamente perspicazes e contundentes. O segundo, quando Mú e eu, apenas nós, nos dirigíamos para a sala de TV para assitir filmes de faroeste. Costumávamos conversar sobre tudo ao mesmo tempo em que ele assitia ao filme, lia seus jornais e fazia caricaturas, arte esta que ele dominava com especial primor e requinte, mesmo que feitas em uma mera folha de guardanapo ou no próprio jornal. (Que pena que nunca guardei nenhuma delas!!!)
Depois, quando fui estudar em Nova York, minha amizade pelo Mú se estreitou ainda mais. Saíamos sempre juntos, acompanhados de minha mãe e minha então namorada e atual mulher Patricia. Nosso principal programa era visitar lojas de som, das mais simples às mais sofisticadas. Apesar de sua total fluência, ele não costumava se expor ao idioma, fazendo com que eu desempenhasse o papel de intérprete.
Durante a época em que trabalhava no Republic National Bank, ao lado da biblioteca na 5a avenida, o Mú vinha sempre almoçar comigo. Ele adorava também ir à loja Barneys para procurar por sapatos e gravatas.
Depois de muitos anos, quando voltei ao Brasil, continuei muito próximo ao Mú. Sempre nos falávamos por telefone ou íamos visitá-lo em seu apartamento na Rua Piauí antes de sairmos para jantar – muitas vezes no restaurante Arábia. Ele adorava minha mulher Patricia e achava profunda graça em meus três filhos, Julita, Pedro e Lucas.
Me recordo de um episódio um tanto “Murilesco”, quando eu e minhas irmãs havíamos combinado de sair com ele para jantar. Subimos ao seu apartamento, conversamos um pouco e enfim descemos. Quando já estávamos no ponto de taxi na Praça Buenos Ayres prestes a adentrar o carro, o Mú nos olhou e disse que não estava mais com vontade de sair. Simplesmente nos deu um carinhoso beijo e começou a caminhar de volta rumo ao seu prédio. Mesmo que de certa forma surpresos como o repentino “abandono”, rimos muito, pois sempre compreendemos e de fato admirávamos a sinceridade e a legitimidade de seus atos.
Enfim, são estas algumas das inúmeras lembranças alegres que tenho do nosso querido Mú. A última da qual me recordo com particular prazer ocorreu num domingo recente, pouco antes de seu falecimento, quando fomos tomar um brunch no Café Suplicy. Estava confidenciando a ele uma experência ruim e triste que havia tido com meu pai. Logo que acabei de “descarregar” toda minha indignação sobre o comportamento de meu pai, o Mú me olhou sobre a folha do jornal e disse” “Tá certo, Alfredo, seu pai fez a coisa certa!”. Ele, mais uma vez, com seu jeito único, sereno e sobretudo enfático, me fez rir, me surpreendeu e, acima de tudo, me desarmou por completo.
Mú – obrigado por tudo, por seu carinho, por sua sabedoria, por sua sempre deliciosa companhia. Sinto muitas saudades de você, de nossas risadas, de suas fofocas, de seu talento, de seu senso de humor, de escutar música com você e, sobretudo, de sua torcida. I will miss you forever.
Much love….
Alfredo (vulgo “Anjo”)
Fiquei muito alegre em saber desta iniciativa de montarmos um breve compêndio sobre nossas lembranças individuais com nosso querido Murilo, a quem chamarei daqui em diante da mesma maneira como sempre me referi a ele: “Mú”.
Tive o grande privilégio de conhecê-lo aos doze anos, quando me mudei para seu apartamento na Rua Cristiano Viana com minha mãe, Ignez Whitaker, e minhas duas irmãs, Nina e Meméia. Foi durante esta época que conheci minha terceira “irmã”, a Carlota, filha única do Mú.
Desde então, ele foi sempre um grande pai para mim – de certa maneira muito mais presente e ativo do que meu próprio pai biológico. Sempre me incentivou, me apoiou, me fez rir, me deu dicas, me surpreendeu e me amou – claro, à sua maneira absolutamente única e especial.
Adorava acordar de manhã e tomar café com ele, saborear um suco de laranja sempre super fresco, um pão com manteiga crocante com um boa dose de manteiga e um cafezinho bem escuro – sempre acompanhado de seus jornais e revistas. Adorava também ouví-lo tocar piano, o qual ficava no segundo andar de seu charmoso duplex.
Após algum tempo, nos mudamos para uma lindíssima casa na Rua Santo Antonio, no bairo do Bixiga, que minha mãe acabara de comprar e restaurar. Esta fase também foi marcada por muitos momentos alegres, dentre os quais sobresai a mudança de meu irmão Antonio Manoel, que havia deixado a casa de meu pai no Morumbi para vir morar conosco. Para melhorar, nossa família expandida contava agora também com as frequentes visitas de nossa querida Carlota.
Na casa da Rua Santo Antonio, tenho dois grandes momentos dos quais me recordo com especial carinho: O primeiro eram as nossas refeições, sempre populosas e muito animadas, que o Mú oportunamente enriquecia com seus comentários breves porém altamente perspicazes e contundentes. O segundo, quando Mú e eu, apenas nós, nos dirigíamos para a sala de TV para assitir filmes de faroeste. Costumávamos conversar sobre tudo ao mesmo tempo em que ele assitia ao filme, lia seus jornais e fazia caricaturas, arte esta que ele dominava com especial primor e requinte, mesmo que feitas em uma mera folha de guardanapo ou no próprio jornal. (Que pena que nunca guardei nenhuma delas!!!)
Depois, quando fui estudar em Nova York, minha amizade pelo Mú se estreitou ainda mais. Saíamos sempre juntos, acompanhados de minha mãe e minha então namorada e atual mulher Patricia. Nosso principal programa era visitar lojas de som, das mais simples às mais sofisticadas. Apesar de sua total fluência, ele não costumava se expor ao idioma, fazendo com que eu desempenhasse o papel de intérprete.
Durante a época em que trabalhava no Republic National Bank, ao lado da biblioteca na 5a avenida, o Mú vinha sempre almoçar comigo. Ele adorava também ir à loja Barneys para procurar por sapatos e gravatas.
Depois de muitos anos, quando voltei ao Brasil, continuei muito próximo ao Mú. Sempre nos falávamos por telefone ou íamos visitá-lo em seu apartamento na Rua Piauí antes de sairmos para jantar – muitas vezes no restaurante Arábia. Ele adorava minha mulher Patricia e achava profunda graça em meus três filhos, Julita, Pedro e Lucas.
Me recordo de um episódio um tanto “Murilesco”, quando eu e minhas irmãs havíamos combinado de sair com ele para jantar. Subimos ao seu apartamento, conversamos um pouco e enfim descemos. Quando já estávamos no ponto de taxi na Praça Buenos Ayres prestes a adentrar o carro, o Mú nos olhou e disse que não estava mais com vontade de sair. Simplesmente nos deu um carinhoso beijo e começou a caminhar de volta rumo ao seu prédio. Mesmo que de certa forma surpresos como o repentino “abandono”, rimos muito, pois sempre compreendemos e de fato admirávamos a sinceridade e a legitimidade de seus atos.
Enfim, são estas algumas das inúmeras lembranças alegres que tenho do nosso querido Mú. A última da qual me recordo com particular prazer ocorreu num domingo recente, pouco antes de seu falecimento, quando fomos tomar um brunch no Café Suplicy. Estava confidenciando a ele uma experência ruim e triste que havia tido com meu pai. Logo que acabei de “descarregar” toda minha indignação sobre o comportamento de meu pai, o Mú me olhou sobre a folha do jornal e disse” “Tá certo, Alfredo, seu pai fez a coisa certa!”. Ele, mais uma vez, com seu jeito único, sereno e sobretudo enfático, me fez rir, me surpreendeu e, acima de tudo, me desarmou por completo.
Mú – obrigado por tudo, por seu carinho, por sua sabedoria, por sua sempre deliciosa companhia. Sinto muitas saudades de você, de nossas risadas, de suas fofocas, de seu talento, de seu senso de humor, de escutar música com você e, sobretudo, de sua torcida. I will miss you forever.
Much love….
Alfredo (vulgo “Anjo”)
quarta-feira, 6 de agosto de 2008
Murilo Felisberto por Márcio Pinheiro
Márcio Pinheiro
Foi o melhor chefe que eu tive. Foi o pior chefe que eu tive. Trabalhar (conviver) com Murilo Felisberto era viver nessa gangorra. Foi alguém que acreditou em mim desde o primeiro momento. Sem motivo algum. Eu, aqui em Porto Alegre, fui chamado por ele, que tinha algumas (poucas) referências minhas, quase todas elas passadas pela Cacaia.
Já sabia do talento gregário, da capacidade de aglutinar talentos, primeiro na gênese do Jornal da Tarde, depois na DPZ. Tive a a alegria de trabalhar com alguns desses discípulos - Ilan, Daniel, Felipe, Riq - e tive a felicidade de receber do Murilo algumas lições preciosas de jornalismo e de vida - quase todas elas involuntárias, bem no estilo dele, um mestre que desprezava os didatismos. Foi uma convivência curta (pouco mais de um ano), intensa e, às vezes, traumática. O humor ferino era um dos faróis de sua inteligência. Gostava de piadas rápidas, de chistes, de observações agudas. E posso me orgulhar de ter deixado para ele uma pequena pérola do meu repertório. Sei que ele gostou porque, bem ao seu estilo, foi divulgando para conhecidos o achado.
Desde o primeiro momento, ele me tratou como se fôssemos velhos amigos. A empatia foi imediata. Primeiro por telefone, depois quando fui recebido ao vivo na caótica sala que (raramente) ocupava durante uma das diversas reformas da redação do Jornal da Tarde. Exato um ano depois, comigo já contratado e morando em São Paulo, recordei a ele esse primeiro encontro e ouvi. "Viu, azar o teu".
Não foi azar. Foi uma das maiores sortes da minha vida ter convivido com Murilo Felisberto.
Márcio Pinheiro, gaúcho de Porto Alegre, colorado, 41 anos, jornalista profissional há 19. Trabalha atualmente na Zero Hora e trabalhou com Murilo Felisberto no Jornal da Tarde entre dezembro de 2001 e fevereiro de 2003.
Foi o melhor chefe que eu tive. Foi o pior chefe que eu tive. Trabalhar (conviver) com Murilo Felisberto era viver nessa gangorra. Foi alguém que acreditou em mim desde o primeiro momento. Sem motivo algum. Eu, aqui em Porto Alegre, fui chamado por ele, que tinha algumas (poucas) referências minhas, quase todas elas passadas pela Cacaia.
Já sabia do talento gregário, da capacidade de aglutinar talentos, primeiro na gênese do Jornal da Tarde, depois na DPZ. Tive a a alegria de trabalhar com alguns desses discípulos - Ilan, Daniel, Felipe, Riq - e tive a felicidade de receber do Murilo algumas lições preciosas de jornalismo e de vida - quase todas elas involuntárias, bem no estilo dele, um mestre que desprezava os didatismos. Foi uma convivência curta (pouco mais de um ano), intensa e, às vezes, traumática. O humor ferino era um dos faróis de sua inteligência. Gostava de piadas rápidas, de chistes, de observações agudas. E posso me orgulhar de ter deixado para ele uma pequena pérola do meu repertório. Sei que ele gostou porque, bem ao seu estilo, foi divulgando para conhecidos o achado.
Desde o primeiro momento, ele me tratou como se fôssemos velhos amigos. A empatia foi imediata. Primeiro por telefone, depois quando fui recebido ao vivo na caótica sala que (raramente) ocupava durante uma das diversas reformas da redação do Jornal da Tarde. Exato um ano depois, comigo já contratado e morando em São Paulo, recordei a ele esse primeiro encontro e ouvi. "Viu, azar o teu".
Não foi azar. Foi uma das maiores sortes da minha vida ter convivido com Murilo Felisberto.
Márcio Pinheiro, gaúcho de Porto Alegre, colorado, 41 anos, jornalista profissional há 19. Trabalha atualmente na Zero Hora e trabalhou com Murilo Felisberto no Jornal da Tarde entre dezembro de 2001 e fevereiro de 2003.
terça-feira, 5 de agosto de 2008
Miss Abacaxi
Michelle Alves de Lima
Minha mãe disse que conheci o Mu antes, mas a verdade é que só me lembro dele a partir de algum dia de dezembro de 1989, quando tinha seis anos. Foi o dia em que virei a “miss abacaxi”.
Minha mãe disse que conheci o Mu antes, mas a verdade é que só me lembro dele a partir de algum dia de dezembro de 1989, quando tinha seis anos. Foi o dia em que virei a “miss abacaxi”.
Ia viajar com ele e a Carlota para os Estados Unidos, onde encontraria minha avó, Ignez. Era minha primeira viagem para fora do País, e provavelmente era também a primeira vez que o Mu levava uma criança para o exterior.
Lembro-me que cheguei ao aeroporto com minha mãe, meu avô e meus tios, no horário certinho (um pouco antes das três horas de praxe para vôos internacionais), mas havia esquecido algo bem importante: a autorização dos meus pais para eu viajar (minha mãe não sabia que precisava de um documento por escrito também assinado por meu pai, com firma reconhecida etc). Imagina como o Mu deve ter 'adorado' essa história...
Foi uma confusão só. Fomos à sala da Polícia Federal no aeroporto, e até convencermos o agente de plantão que não tinha como meu pai assinar o papel (naquela época ele já morava no exterior), tampouco como falar com ele pelo telefone (ele é surdo), foi um trabalhão. Se antes eu estava aos prantos por ficar um mês longe da minha mãe, naquela hora eu fiquei aos prantos com a possibilidade de não viajar com eles.
Problema resolvido, embarquei com o Mu – que naquele dia virou meu tio, pois o agente federal colocou no meu passaporte ‘a menor viajará acompanhada de seu tio’. E ganhei um apelido, pois o Mu descobriu que era mais que uma mala que ele estava levando para Nova York. Era a Miss abacaxi.
***
‘Para’ o Mu
O Mu dizia que a gente (o Ilan, meu editor) dava muita importância para essa história de gastronomia. “Imagina, lançar um caderno só com esse assunto”, ele falava. Mas o Mu bem que lia o Paladar. E o pior é que ele não comentava nada, então eu não sabia se ele tinha gostado ou não (só depois, lendo previamente os textos deste livro, descobri que essa era uma característica do Mu-jornalista, versão dele que eu quase não conheci).
***
‘Para’ o Mu
O Mu dizia que a gente (o Ilan, meu editor) dava muita importância para essa história de gastronomia. “Imagina, lançar um caderno só com esse assunto”, ele falava. Mas o Mu bem que lia o Paladar. E o pior é que ele não comentava nada, então eu não sabia se ele tinha gostado ou não (só depois, lendo previamente os textos deste livro, descobri que essa era uma característica do Mu-jornalista, versão dele que eu quase não conheci).
A última matéria que fiz que ele leu, sobre comida de avião, parece que ele gostou. No dia em que ela foi publicada, liguei para minha avó para contar e ela disse que o Mu já tinha ligado e até elogiado (do jeito dele, claro).
Feliz, fui ligar para ele para “colher os louros” e também combinar de almoçar no dia seguinte.
O almoço não deu certo, pois ele estava se sentindo mal, já tinha até cancelado o programa dele no Spot (que era sagrado, diga-se de passagem), e no dia seguinte não estaria disposto (quatro dias depois do meu telefonema, ele foi internado). Perguntei se ele tinha lido a matéria, apesar de já saber a resposta. Quando estava com o ouvido pronto para ouvir os elogios e receber uma massagem no ego, ele disse: “Li, sim. Mas ‘pra’, Mi? Que história é essa? Ta desistindo?”.
O Ilan já tinha ligado para o Mu *.
* Eu nunca tinha usado ‘pra’ em uma matéria. Justo esta vez, que fiz uma matéria de três páginas, inventei de usar ‘pra’ no lugar de ‘para’ ‘pra’ dar uma ‘descontraída’ no texto. Já tinha visto em outros textos – ok, não no Paladar – e achei que não teria problemas. Quando o Ilan, meu editor, viu os ‘pras’, me chamou a atenção por cada um deles. Substituiu por para, claro, e depois contou para o Mu, que ficou decepcionadíssimo.
Eu nem tive tempo de contar para ele que eu não estava mais usando ‘pra’. Duas semanas depois, o Mu nos deixou...
O Ilan já tinha ligado para o Mu *.
* Eu nunca tinha usado ‘pra’ em uma matéria. Justo esta vez, que fiz uma matéria de três páginas, inventei de usar ‘pra’ no lugar de ‘para’ ‘pra’ dar uma ‘descontraída’ no texto. Já tinha visto em outros textos – ok, não no Paladar – e achei que não teria problemas. Quando o Ilan, meu editor, viu os ‘pras’, me chamou a atenção por cada um deles. Substituiu por para, claro, e depois contou para o Mu, que ficou decepcionadíssimo.
Eu nem tive tempo de contar para ele que eu não estava mais usando ‘pra’. Duas semanas depois, o Mu nos deixou...
segunda-feira, 4 de agosto de 2008
Murilo, como você me faz uma dessa?
Luiz Américo Camargo
Ele chegava aos domingos quase sempre num mau humor épico. Nunca entendi por que, ele não me parecia do tipo que se queixasse de trabalhar até tarde, ou no fim de semana. Entrava com seu passinho miúdo, ia até a mesa ler os jornais. Lá do meu canto, eu via a figura franzina despontando, e prosseguia as tarefas. Voltava os olhos para minha tela do computador, e começava a contar, mentalmente: um, dois, três... Quando chegava no dez, ou pouco depois disso, era fatal. O contínuo já estava atrás de mim, avisando: "O Murilo quer falar com você". Eu já sabia, e sofria por tudo. A chegada dele, os dez segundos contados, os vinte passos até sua mesa, e ia ensaiando mentalmente uma fala para que a voz não falhasse, respirando fundo para manter a calma, moldando um rosto levemente sorridente.
“Tudo bem, Murilo?” Ele folheava os jornais, a expressão de tédio. Abria uma página do JT, claro que da minha editoria, dava um tapinha no papel com as costas da mão e me dizia: “Luiz Américo, como é que você me faz uma dessa?”. E eu não entendia o que tinha feito de errado, e sabia que ficaria pior se perguntasse. Terminado o econômico e enviesado diálogo, eu retornava ao meu canto, tentando entender onde tinha falhado ou que raio de incongruência havia entre o que tinha sido publicado e o que estava na cabeça dele.
O diretor de redação que eu conheci era um sujeito difícil. No nosso primeiro contato, eu na sala dele, minha impressão inicial foi a de que ele tinha muita idade, mas não sabia precisar quantos anos. E no entanto tinha os olhos faiscantemente juvenis. Falava manso e tinha um dandismo já tão bem incorporado que não soava como afetação. "Não trouxe nada seu para eu ler?". Eu tinha numa pasta um texto de quatro páginas, um perfil de Malcolm Forbes. Ele leu, e perguntou, com um riso irônico: "Não falou nada de homossexualismo? Aquelas motos, aquelas roupas de couro...". Não disse que gostou mas foi logo explicando qual era o salário. O homem que criou o Jornal da Tarde havia me contratado. E eu saí da sala sem saber se ele era velho, ou se era jovem, e se era possível alguém com tanta história dar a impressão de que tudo aquilo - o JB, o JT, a DPZ - não tinha sido com ele.
Ele me achava triste, sério. Era quase um bordão. "Luiz Américo... sorria." E eu, que não sou nem tão sério e nem tão triste, me intimidava porque ele ia fundo naquilo que eu mais detestava em mim nos tempos de criança. O garoto calado, sério, triste. A construção feita ao longo dos anos, do homem seguro, tranqüilo, tinha uma fenda. E era por ali que ele olhava.
Murilo foi marcante pelo que disse, mas eu lamento, de verdade, pelo que ele não disse. Gostaria de ter sido interlocutor em mais conversas, de ter compartilhado mais opiniões. De ter levado mais broncas diretas, e não carraspanas indiretas, do tipo “Fulano, avisa o Luiz Américo que não é mais para fazer assim ou assado”- estando eu a um metro dele. Um dia, ele sentou do meu lado, tirou a Montblanc do bolso, apanhou uma folha de papel e explicou: “Luiz Américo, quando você for desenhar um abre com sub-retranca, faz assim...”. E rabiscou duas ou três soluções que me abriram um mundo de possibilidades de diagramação. Outras vezes eu quis outras lições, mas ele não dava. Regulava, sem dó. Só quando ele queria, e mantinha o controle absoluto dessa relação, creio que com todos.
Num outro dia, me vendo com um CD da Gran Partita, de Mozart, pegou o disco, leu os créditos atentamente, me devolveu com um sorriso sutil. Dias depois, apareceu do nada, eu no meio do fechamento, bateu no meu ombro e disse: “Sabe o que a Audio Review (ou outra revista, não lembro qual) escreveu sobre essa versão que você tem? Fuja!”. Deu as costas e se afastou dando risada. Era assim.
Deixamos de trabalhar juntos e eu raramente falava com o Murilo. Mas sabia das notícias pelos amigos. Precisei me afastar dele para que lembranças de maus humores, mágoas e birras se dissipassem. Viraram histórias. Foi quando eu entendi que havia convivido com um gênio, que não podia ser julgado pelos padrões normais de sociabilidade.
Depois nos encontramos algumas vezes, por acaso: na rua, na livraria, no restaurante. E foi sempre muito bom. Gosto de pensar que ele falava bem de mim pelas costas (para usar uma de suas frases), mas não deu tempo de tirar a limpo. Murilo, como é que você me faz uma dessa?
Ele chegava aos domingos quase sempre num mau humor épico. Nunca entendi por que, ele não me parecia do tipo que se queixasse de trabalhar até tarde, ou no fim de semana. Entrava com seu passinho miúdo, ia até a mesa ler os jornais. Lá do meu canto, eu via a figura franzina despontando, e prosseguia as tarefas. Voltava os olhos para minha tela do computador, e começava a contar, mentalmente: um, dois, três... Quando chegava no dez, ou pouco depois disso, era fatal. O contínuo já estava atrás de mim, avisando: "O Murilo quer falar com você". Eu já sabia, e sofria por tudo. A chegada dele, os dez segundos contados, os vinte passos até sua mesa, e ia ensaiando mentalmente uma fala para que a voz não falhasse, respirando fundo para manter a calma, moldando um rosto levemente sorridente.
“Tudo bem, Murilo?” Ele folheava os jornais, a expressão de tédio. Abria uma página do JT, claro que da minha editoria, dava um tapinha no papel com as costas da mão e me dizia: “Luiz Américo, como é que você me faz uma dessa?”. E eu não entendia o que tinha feito de errado, e sabia que ficaria pior se perguntasse. Terminado o econômico e enviesado diálogo, eu retornava ao meu canto, tentando entender onde tinha falhado ou que raio de incongruência havia entre o que tinha sido publicado e o que estava na cabeça dele.
O diretor de redação que eu conheci era um sujeito difícil. No nosso primeiro contato, eu na sala dele, minha impressão inicial foi a de que ele tinha muita idade, mas não sabia precisar quantos anos. E no entanto tinha os olhos faiscantemente juvenis. Falava manso e tinha um dandismo já tão bem incorporado que não soava como afetação. "Não trouxe nada seu para eu ler?". Eu tinha numa pasta um texto de quatro páginas, um perfil de Malcolm Forbes. Ele leu, e perguntou, com um riso irônico: "Não falou nada de homossexualismo? Aquelas motos, aquelas roupas de couro...". Não disse que gostou mas foi logo explicando qual era o salário. O homem que criou o Jornal da Tarde havia me contratado. E eu saí da sala sem saber se ele era velho, ou se era jovem, e se era possível alguém com tanta história dar a impressão de que tudo aquilo - o JB, o JT, a DPZ - não tinha sido com ele.
Ele me achava triste, sério. Era quase um bordão. "Luiz Américo... sorria." E eu, que não sou nem tão sério e nem tão triste, me intimidava porque ele ia fundo naquilo que eu mais detestava em mim nos tempos de criança. O garoto calado, sério, triste. A construção feita ao longo dos anos, do homem seguro, tranqüilo, tinha uma fenda. E era por ali que ele olhava.
Murilo foi marcante pelo que disse, mas eu lamento, de verdade, pelo que ele não disse. Gostaria de ter sido interlocutor em mais conversas, de ter compartilhado mais opiniões. De ter levado mais broncas diretas, e não carraspanas indiretas, do tipo “Fulano, avisa o Luiz Américo que não é mais para fazer assim ou assado”- estando eu a um metro dele. Um dia, ele sentou do meu lado, tirou a Montblanc do bolso, apanhou uma folha de papel e explicou: “Luiz Américo, quando você for desenhar um abre com sub-retranca, faz assim...”. E rabiscou duas ou três soluções que me abriram um mundo de possibilidades de diagramação. Outras vezes eu quis outras lições, mas ele não dava. Regulava, sem dó. Só quando ele queria, e mantinha o controle absoluto dessa relação, creio que com todos.
Num outro dia, me vendo com um CD da Gran Partita, de Mozart, pegou o disco, leu os créditos atentamente, me devolveu com um sorriso sutil. Dias depois, apareceu do nada, eu no meio do fechamento, bateu no meu ombro e disse: “Sabe o que a Audio Review (ou outra revista, não lembro qual) escreveu sobre essa versão que você tem? Fuja!”. Deu as costas e se afastou dando risada. Era assim.
Deixamos de trabalhar juntos e eu raramente falava com o Murilo. Mas sabia das notícias pelos amigos. Precisei me afastar dele para que lembranças de maus humores, mágoas e birras se dissipassem. Viraram histórias. Foi quando eu entendi que havia convivido com um gênio, que não podia ser julgado pelos padrões normais de sociabilidade.
Depois nos encontramos algumas vezes, por acaso: na rua, na livraria, no restaurante. E foi sempre muito bom. Gosto de pensar que ele falava bem de mim pelas costas (para usar uma de suas frases), mas não deu tempo de tirar a limpo. Murilo, como é que você me faz uma dessa?
•
Yolanda
Querida Carlota e amado Antônio:
Querida Carlota e amado Antônio:
Se eu quisesse representar o homem “tal como ele é” precisaria de uma mescla de linhas tão desconcertantes para sua configuração que... o resultado seria uma confusão a tocar todos os limites das desconfigurações. Paul Klee.
Pensando Murilo, apoiada em Klee, acrescentaria espaços atemporais para transitarem o germe do homem que renasce, a razão do homem que permanece e a sabedoria do homem que semeia.
“Les yeux fertiles” – descobridor de talentos, impulsiona-os a descobrirem suas forças destinais;
“Tout a la coleur de aurora!” – ícone lendário sustenta a novidade a solidez, permitindo que imagens e linguagens se encontrem na simplicidade, para serem belas e verdadeiras;
“Avec le feu d’um chanson sans fausse note” – o mito rege os afortunados jornalistas daquele tempo e lugar, ali abrem-se vias renovadas que nos provocam e inspiram à renovação para admirar o novo.
Murilo feito dos “possíveis”:
Vivemos sempre num clima de bondade, amor, criação, respeito, à procura de inovação: você na linguagem escrita e visual; eu na linguagem pictórica. Madrugadas a dentro, com nossa casa sempre cheia de amigos, discutindo jornal, manchetes, fatos, cinema, arte, teatro etc..
Murilo jornal/ Murilo revista, era uma composição harmoniosa tão forte, que indagaram a ele no Jornal do Brasil se eu era uma revista ou um jornal.
O Diurno - carismático, poeta, músico, escritor, narrador, leitor [com seu jornal sempre debaixo do braço] caricaturista, pai, avô, amigo, companheiro, mestre; capaz de ver no outro, encurralado num inferno, pontos fracos e fortes, de onde tirava e criava histórias, caricaturas, frases, feitas com uma inteligência fina cheias de humor, simbolismo e dignidade, isuspeitáveis.
O Noturno - o construtor e autor de idéias ímpares originais, apaixonado pelo que fazia. Catalisa com competência o grupo de jovens jornalistas, fantasticamente criativos, sensíveis, de muita garra, responsáveis por uma imprensa aniquiladora da mediocridade, da mecanicidade. Voila! o marco da nova era no jornalismo brasileiro, o JT [Jornal da Tarde].
Mu, o sempre lembrado, o grade paradoxo.
Tive o privilégio de ser seu “Guia de Passagem” na sua derradeira hora. Seu corpo na entrega sem medo passou para um mundo mais longínquo, adormeceu suavemente e seus restos mortais foram entregues ao Fogo Sagrado. Partiu mas deixou gravada impressões indeléveis.
Seu neto “ Mandarim” olha para o céu e diz para sua avó: - “ o Murilo está naquela estrela!”, apontando com o dedinho.
Mu, abraço da Yo.
sexta-feira, 1 de agosto de 2008
Será...?
Fernão Mesquita
Tenho um amigo que, toda vez que lê um jornal, balança a cabeça e sai dizendo: “O mundo não está para os exigentes; só vão sobrar os ratos e as baratas”...
Murilinho era dos mais exigentes.
Não escolhia caminhos fáceis.
Pra ser exato, escolheu um dos mais difíceis: fazer uma obra nova todos os dias, das fundações ao acabamento, com o concurso de um bando enorme de pessoas – incontrolável como os humores humanos – e lutando exasperadamente para que cada uma delas saísse perfeita.
Sísifo perde...
Tem gente que pensa que ele era apenas o portador de um dom.
Mas não foi tão fácil assim.
O que ele recebeu “de graça” não foi mais que uma inequívoca vocação e o aguçado senso estético que deus lhe deu e ele tratou de cultivar. O resto, aquela incrível capacidade de identificar e reunir todos os diferentes talentos necessários para produzir o jornalismo-arte que fez dele uma figura central da história da profissão em nossa geração, foi arduamente construído.
Naquela sua ânsia de perfeição, Murilinho não economizava esforço. Aquela pilha de jornais e revistas do mundo inteiro que ele carregava tão constantemente que se tornou indissociável da memória da sua figura, e que incluía sempre recém nascidos desconhecidos até nas vizinhanças de onde tinham sido gerados, era a ganga no meio da qual ele garimpava incansavelmente as pequenas jóias da profissão.
Onde -- diabos! -- ele ficava sabendo da existência delas em plena era do papel, quando a informação ainda era transmitida quase manualmente, num país totalmente fechado às importações, ninguém sabe.
Mas era indisfarçável que era essa busca que punha em funcionamento a fabrica de endorfina dele.
Murilinho escarafunchava o mundo das publicações à procura de novas formas, novos conteúdos ou novas maneiras de combinar os dois, com a sofreguidão e a meticulosidade dos viciados. Acho que gastava mais do que ganhava para se dar esse luxo. Em compensação, nada do que se experimentava na arte de contar histórias ou na forma de apresentá-las escapava do seu crivo.
Como todo homem com esse nível de intensidade de atividade interior, tinha pouca paciência para as formas ritualísticas de representação do ser humano. Política, instituições, abstrações em geral – descartadas as suas manifestações mais elevadas, como a música, cujas entranhas ele destrinchava até à minúcia da vibração sonora – não faziam mais que irritá-lo e aborrecê-lo.
Não é pra menos...
O que lhe interessava mesmo eram as pessoas e as relações entre elas. E, mais que tudo, as emoções que umas despertavam nas outras. Algo que o fascinava tão completamente que não resistia à tentação de provocar essas emoções só para poder vê-las se manifestando...
Essa indulgência tinha o seu lado fértil: se, muito antes do mundo em rede, Murilinho sabia quem era quem – e o que sabia fazer -- nas mais longínquas redações do planeta, que dirá nas do Brasil!
Foi assim que ele foi pinçando, um a um, em todos os quadrantes, os talentos dispersos por este eterno gigante adormecido, para juntá-los, todos, numa mesma sala, iniciá-los nas artes que dominava, e espicaçá-los para que uns multiplicassem a força criadora dos outros.
Foi assim que ele mudou o jornalismo brasileiro. Foi assim que ele trouxe as pessoas, os indivíduos, para o centro da praça publica que é o jornal, inventou uma nova maneira de servi-las e criou um jeito novo da imprensa se relacionar com o publico. Foi assim que ele fez do Jornal da Tarde a fonte de inspiração e o plantel que abasteceu de talentos todas as redações da imprensa e da televisão brasileiras que, depois, foram surgindo ao longo do caminho que ele desbravou.
“A dor dói como dói, e não em função da causa que a produziu”, diz o poeta. As do Murilinho, portanto, não foram maiores que as dos outros. As minúcias da sua saga pessoal – a glória, o exílio, o resgate e o proverbial “assassínio” do criador pelas mais reles entre as suas criaturas – se dissolverão rapidamente no ar.
O que ele fez é o que vai ficar...
O que nós assistimos juntos, com a curiosidade e o interesse pelo processo que nos envolvia que convém aos jornalistas, foi a realização do vaticínio que um dos grandes gênios da nacionalidade ditara, três ou quatro décadas antes, através das páginas do próprio JT do Murilinho. Em meio à generalizada conflagração ideológica que chacoalhava o século XX – mais acirrada do que em qualquer outra parte, dentro das redações – Nelson Rodrigues previu “A Ascensão dos Idiotas” que, tendo começado a desconfiar de que eram maioria, vinham perdendo a humildade e a vontade de aprender e alimentando um arrogante orgulho de sua ignorância que acabaria por levá-los a subjugar o mundo pela força.
Não deu outra...
Hoje, para alem da saudade das divertidas conversas em torno de nossas indignações comuns pelo que vai pelo mundo nos almoços em cantos especiais da cidade que ele descobria e revelava com a mesma volúpia de surpreender com que apresentava a beleza de uma nova tipologia, um detalhe de arquitetura ou o refinamento de um autor ainda desconhecido, sinto uma vaga sensação de logro. Tem uma pulgazinha atrás da minha orelha que insiste em me cochichar a idéia de que, no fundo, no fundo, o Murilinho foi embora de propósito.
Ele não se conformava com esse triunfo da boçalidade!
Tenho um amigo que, toda vez que lê um jornal, balança a cabeça e sai dizendo: “O mundo não está para os exigentes; só vão sobrar os ratos e as baratas”...
Murilinho era dos mais exigentes.
Não escolhia caminhos fáceis.
Pra ser exato, escolheu um dos mais difíceis: fazer uma obra nova todos os dias, das fundações ao acabamento, com o concurso de um bando enorme de pessoas – incontrolável como os humores humanos – e lutando exasperadamente para que cada uma delas saísse perfeita.
Sísifo perde...
Tem gente que pensa que ele era apenas o portador de um dom.
Mas não foi tão fácil assim.
O que ele recebeu “de graça” não foi mais que uma inequívoca vocação e o aguçado senso estético que deus lhe deu e ele tratou de cultivar. O resto, aquela incrível capacidade de identificar e reunir todos os diferentes talentos necessários para produzir o jornalismo-arte que fez dele uma figura central da história da profissão em nossa geração, foi arduamente construído.
Naquela sua ânsia de perfeição, Murilinho não economizava esforço. Aquela pilha de jornais e revistas do mundo inteiro que ele carregava tão constantemente que se tornou indissociável da memória da sua figura, e que incluía sempre recém nascidos desconhecidos até nas vizinhanças de onde tinham sido gerados, era a ganga no meio da qual ele garimpava incansavelmente as pequenas jóias da profissão.
Onde -- diabos! -- ele ficava sabendo da existência delas em plena era do papel, quando a informação ainda era transmitida quase manualmente, num país totalmente fechado às importações, ninguém sabe.
Mas era indisfarçável que era essa busca que punha em funcionamento a fabrica de endorfina dele.
Murilinho escarafunchava o mundo das publicações à procura de novas formas, novos conteúdos ou novas maneiras de combinar os dois, com a sofreguidão e a meticulosidade dos viciados. Acho que gastava mais do que ganhava para se dar esse luxo. Em compensação, nada do que se experimentava na arte de contar histórias ou na forma de apresentá-las escapava do seu crivo.
Como todo homem com esse nível de intensidade de atividade interior, tinha pouca paciência para as formas ritualísticas de representação do ser humano. Política, instituições, abstrações em geral – descartadas as suas manifestações mais elevadas, como a música, cujas entranhas ele destrinchava até à minúcia da vibração sonora – não faziam mais que irritá-lo e aborrecê-lo.
Não é pra menos...
O que lhe interessava mesmo eram as pessoas e as relações entre elas. E, mais que tudo, as emoções que umas despertavam nas outras. Algo que o fascinava tão completamente que não resistia à tentação de provocar essas emoções só para poder vê-las se manifestando...
Essa indulgência tinha o seu lado fértil: se, muito antes do mundo em rede, Murilinho sabia quem era quem – e o que sabia fazer -- nas mais longínquas redações do planeta, que dirá nas do Brasil!
Foi assim que ele foi pinçando, um a um, em todos os quadrantes, os talentos dispersos por este eterno gigante adormecido, para juntá-los, todos, numa mesma sala, iniciá-los nas artes que dominava, e espicaçá-los para que uns multiplicassem a força criadora dos outros.
Foi assim que ele mudou o jornalismo brasileiro. Foi assim que ele trouxe as pessoas, os indivíduos, para o centro da praça publica que é o jornal, inventou uma nova maneira de servi-las e criou um jeito novo da imprensa se relacionar com o publico. Foi assim que ele fez do Jornal da Tarde a fonte de inspiração e o plantel que abasteceu de talentos todas as redações da imprensa e da televisão brasileiras que, depois, foram surgindo ao longo do caminho que ele desbravou.
“A dor dói como dói, e não em função da causa que a produziu”, diz o poeta. As do Murilinho, portanto, não foram maiores que as dos outros. As minúcias da sua saga pessoal – a glória, o exílio, o resgate e o proverbial “assassínio” do criador pelas mais reles entre as suas criaturas – se dissolverão rapidamente no ar.
O que ele fez é o que vai ficar...
O que nós assistimos juntos, com a curiosidade e o interesse pelo processo que nos envolvia que convém aos jornalistas, foi a realização do vaticínio que um dos grandes gênios da nacionalidade ditara, três ou quatro décadas antes, através das páginas do próprio JT do Murilinho. Em meio à generalizada conflagração ideológica que chacoalhava o século XX – mais acirrada do que em qualquer outra parte, dentro das redações – Nelson Rodrigues previu “A Ascensão dos Idiotas” que, tendo começado a desconfiar de que eram maioria, vinham perdendo a humildade e a vontade de aprender e alimentando um arrogante orgulho de sua ignorância que acabaria por levá-los a subjugar o mundo pela força.
Não deu outra...
Hoje, para alem da saudade das divertidas conversas em torno de nossas indignações comuns pelo que vai pelo mundo nos almoços em cantos especiais da cidade que ele descobria e revelava com a mesma volúpia de surpreender com que apresentava a beleza de uma nova tipologia, um detalhe de arquitetura ou o refinamento de um autor ainda desconhecido, sinto uma vaga sensação de logro. Tem uma pulgazinha atrás da minha orelha que insiste em me cochichar a idéia de que, no fundo, no fundo, o Murilinho foi embora de propósito.
Ele não se conformava com esse triunfo da boçalidade!
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