Luiz Américo Camargo
Ele chegava aos domingos quase sempre num mau humor épico. Nunca entendi por que, ele não me parecia do tipo que se queixasse de trabalhar até tarde, ou no fim de semana. Entrava com seu passinho miúdo, ia até a mesa ler os jornais. Lá do meu canto, eu via a figura franzina despontando, e prosseguia as tarefas. Voltava os olhos para minha tela do computador, e começava a contar, mentalmente: um, dois, três... Quando chegava no dez, ou pouco depois disso, era fatal. O contínuo já estava atrás de mim, avisando: "O Murilo quer falar com você". Eu já sabia, e sofria por tudo. A chegada dele, os dez segundos contados, os vinte passos até sua mesa, e ia ensaiando mentalmente uma fala para que a voz não falhasse, respirando fundo para manter a calma, moldando um rosto levemente sorridente.
“Tudo bem, Murilo?” Ele folheava os jornais, a expressão de tédio. Abria uma página do JT, claro que da minha editoria, dava um tapinha no papel com as costas da mão e me dizia: “Luiz Américo, como é que você me faz uma dessa?”. E eu não entendia o que tinha feito de errado, e sabia que ficaria pior se perguntasse. Terminado o econômico e enviesado diálogo, eu retornava ao meu canto, tentando entender onde tinha falhado ou que raio de incongruência havia entre o que tinha sido publicado e o que estava na cabeça dele.
O diretor de redação que eu conheci era um sujeito difícil. No nosso primeiro contato, eu na sala dele, minha impressão inicial foi a de que ele tinha muita idade, mas não sabia precisar quantos anos. E no entanto tinha os olhos faiscantemente juvenis. Falava manso e tinha um dandismo já tão bem incorporado que não soava como afetação. "Não trouxe nada seu para eu ler?". Eu tinha numa pasta um texto de quatro páginas, um perfil de Malcolm Forbes. Ele leu, e perguntou, com um riso irônico: "Não falou nada de homossexualismo? Aquelas motos, aquelas roupas de couro...". Não disse que gostou mas foi logo explicando qual era o salário. O homem que criou o Jornal da Tarde havia me contratado. E eu saí da sala sem saber se ele era velho, ou se era jovem, e se era possível alguém com tanta história dar a impressão de que tudo aquilo - o JB, o JT, a DPZ - não tinha sido com ele.
Ele me achava triste, sério. Era quase um bordão. "Luiz Américo... sorria." E eu, que não sou nem tão sério e nem tão triste, me intimidava porque ele ia fundo naquilo que eu mais detestava em mim nos tempos de criança. O garoto calado, sério, triste. A construção feita ao longo dos anos, do homem seguro, tranqüilo, tinha uma fenda. E era por ali que ele olhava.
Murilo foi marcante pelo que disse, mas eu lamento, de verdade, pelo que ele não disse. Gostaria de ter sido interlocutor em mais conversas, de ter compartilhado mais opiniões. De ter levado mais broncas diretas, e não carraspanas indiretas, do tipo “Fulano, avisa o Luiz Américo que não é mais para fazer assim ou assado”- estando eu a um metro dele. Um dia, ele sentou do meu lado, tirou a Montblanc do bolso, apanhou uma folha de papel e explicou: “Luiz Américo, quando você for desenhar um abre com sub-retranca, faz assim...”. E rabiscou duas ou três soluções que me abriram um mundo de possibilidades de diagramação. Outras vezes eu quis outras lições, mas ele não dava. Regulava, sem dó. Só quando ele queria, e mantinha o controle absoluto dessa relação, creio que com todos.
Num outro dia, me vendo com um CD da Gran Partita, de Mozart, pegou o disco, leu os créditos atentamente, me devolveu com um sorriso sutil. Dias depois, apareceu do nada, eu no meio do fechamento, bateu no meu ombro e disse: “Sabe o que a Audio Review (ou outra revista, não lembro qual) escreveu sobre essa versão que você tem? Fuja!”. Deu as costas e se afastou dando risada. Era assim.
Deixamos de trabalhar juntos e eu raramente falava com o Murilo. Mas sabia das notícias pelos amigos. Precisei me afastar dele para que lembranças de maus humores, mágoas e birras se dissipassem. Viraram histórias. Foi quando eu entendi que havia convivido com um gênio, que não podia ser julgado pelos padrões normais de sociabilidade.
Depois nos encontramos algumas vezes, por acaso: na rua, na livraria, no restaurante. E foi sempre muito bom. Gosto de pensar que ele falava bem de mim pelas costas (para usar uma de suas frases), mas não deu tempo de tirar a limpo. Murilo, como é que você me faz uma dessa?
segunda-feira, 4 de agosto de 2008
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