quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Murilo, eterno Murilo

José Maria Mayrink

Foi amizade à primeira vista. Eu tinha dois anos de jornalismo, muito mais foca do que hoje, quatro décadas depois, quando cheguei à redação do Jornal do Brasil, em agosto de 1964, a convite não sei de quem, mas sem dúvida com o aval de Murilo Felisberto. Não o conhecia, mas ele sabia de minhas primeiras reportagens em Belo Horizonte - Correio de Minas, revista Alterosa e Diário de Minas - pois era um sujeito atento às novidades, sempre em busca do que chamava de revelações. Tínhamos amigos comuns, entre os quais Roberto Drummond, que por indicação dele foi ser copydesk no JB, um supercopy que, embora tivesse um belo salário, não se adaptou no Rio.
Murilo também não. Contratado por Alberto Dines para montar o Departamento de Pesquisa, surpreendeu os amigos, pois ninguém acreditava que ele saísse de São Paulo. Mineiros exilados - ele de Lavras, eu de Jequeri - logo nos entendemos nas poucas horas vagas que o trabalho nos dava. Como chegávamos cedo à redação, tirávamos um tempinho para tomar um café numa leiteria do Edifício Avenida Central, a dois quarteirões da Avenida Rio Branco, 110, antiga sede do JB. Café com pão e manteiga, pois ainda não havia pão de queijo no cardápio, era só pretexto para um bate-papo. Nenhuma pauta definida, mas sempre falando de reportagem.
Jornalismo, bons textos e boas fotos, comentários sobre a edição do dia, em meio a intermináveis silêncios, se intercalavam na conversa mineiríssima que a gente, de segunda a sexta-feira, naqueles meses de 1964 e no primeiro semestre de 1965, enquanto Murilo morou no Rio. Ele me pedia informações sobre quem estava se projetando em Minas, os novos talentos que pretendia incorporar à sua equipe, ali no JB ou em futuros projetos. As longas pausas da conversa me desconsertavam, pois quase nunca eu tinha respostas para o que me perguntava. Acho que esperava isso, porque na verdade só queria consolidar os conceitos já quase definitivos que fazia dos profissionais de sua admiração.
Noivo em São Paulo, Murilo passava a semana no Rio e tomava um avião da ponte aérea, toda tarde de sábado, para só voltar na segunda-feira. Costumava acompanhá-lo até o Aeroporto Santos Dumont, sempre a pé, para esticar a conversa e os silêncios da leiteria do Avenida Central. Num desses passeios, paramos na Cinelândia para comer pipoca.
- Como vai? - perguntou Murilo na hora de pagar.
- Tudo bem, mas são 50 cruzeiros - respondeu o pipoqueiro.
Apesar de nossa proximidade, nunca trabalhei com Murilo no Departamento de Pesquisa, que já em sua primeira fase reunia uma equipe extraordinária. Antônio Beluco Marra, Adauto Novaes, Luiz Carlos Lisboa, Luiz Paulo Horta, Luiz Tapias, Estela Lachter, João Máximo, Ana Maria Andrade, Moacyr Japiassu e Clotilde Hasselman foram os pioneiros de uma turma brilhante, à qual se juntariam em seguida Samuel Dirceu, Luiz Adolfo Pinheiro, José Nicodemus Pessoa, Roberto Pereira e Talvani Guedes Fonseca.
Outros vieram depois, mas, salvo traição da memória, chegaram após a volta de Murilo para São Paulo, onde ele participaria, peça-chave, da criação do Jornal da Tarde. Continuei no Rio por mais algum tempo, até que em junho de 1968 ele me telefonou para perguntar se não toparia sair do Rio. Mandou-me uma passagem de avião e, ao saber que Mino Carta também queria conversar comigo, aconselhou-me a ouvir a proposta de Veja, então em fase de lançamento.
- Vá para a Veja, pois a proposta do Mino é melhor; se não der certo, você vem pra cá - , disse Murilo, fazendo uma promessa que cumpriria seis meses depois. Luiz Orlando Carneiro, chefe de reportagem, tentou me segurar no JB e Alberto Dines, editor-chefe, também interveio. Não gostou de minha saída, tive a sensação de rompimento definitivo quando mantive a decisão de me demitir.
- Aquilo foi briga de amor, o Dines só não queria perder um bom repórter - comentou Murilo alguns meses depois, quando eu já estava no quinto andar da Rua Major Quedinho, trabalhando com ele em São Paulo. Um elogio que me deixou orgulhoso e uma interpretação que se confirmaria correta mais tarde, pois o Dines esqueceu o episódio e continuou meu amigo.
Murilo foi um dos meus mestres na profissão. Entusiasta da reportagem e, principalmente, de um bom texto, manteve-se fiel à sua mania de garimpar talentos promissores onde pudesse encontrá-los. Sobretudo em Minas, sua referência maior.
O JT e o Estado de S. Paulo devem a ele a descoberta ou a contratação de profissionais como Ivan Ângelo, Flávio Márcio, Marcos Faerman, Guilherme Duncan de Miranda, Fernando Mitre, Samuel Dirceu, Waldo Paolielo, Gabriel Manzano, Fernando e Toinho Portela, Valdir Sanches, Cláudia Batista, Valéria Wally, Anélio Barreto, Gilberto Mansur, Luiz Carlos Lisboa - e de mais uma dezena de talentos que se incorporaram à equipe pelas mãos dele ou de Mino Carta.
Ewaldo Dantas Ferreira, Fernando Morais, Ricardo Gontijo, Rolf Kuntz, Carlos Brickmann, Demócrito Moura, Inajar de Souza, Randáu Marques, Percival de Souza, Humberto Werneck, Moisés Rabinovici, Kleber de Almeida, Sérgio Rondino, Sandro Vaia, José Eduardo (Castor) Borgonovi, Antônio Carlos Fon, Marco Antônio Rezende, Marco Antônio de Menezes, Mário Lima, Décio Pedroso, Alberto Morelli, Ouhydes Fonseca, para citar mais alguns exemplos, também estavam no JT.
Luiz Carlos Lisboa, o Doutor Lisboa, como ele o tratava, foi braço direito do Murilo na redação. Sujeito de trato britânico, Lisboa foi encarregado de comunicar a um repórter que ele seria demitido, numa dessas fases de contenção de despesas.
- Acabo de ficar noivo, vou casar em janeiro, não posso ficar sem esse emprego - reagiu a vítima, deixando Lisboa sem reação. Também atônito, Murilo esperou passar um mês para mandar Lisboa voltar à carga.
- Já falei que vou casar em janeiro e que não posso sair. Quer me deixar irritado, é só tocar nesse assunto - insistiu o repórter que, é claro, acabou sendo mesmo dispensado.
Era esse o jeito de Murilo administrar pessoal. De fala mansa, sorriso constante e raras mostras de irritação, disfarçava com o silêncio, muitas vezes interpretado como indiferença, suas fases de mau-humor. Nunca me senti alvo de tais reações, mas ouvi sentidas queixas de alguns de seus melhores amigos.
Murilo adorava uma boa fofoca ou uma maldade até certo ponto inocente. Contava, repetia e, principalmente, ouvia com gosto o que corria pelas redações. Sabia também reconhecer o mérito e talento de seus colaboradores. Elogiava a boa apuração de uma reportagem, a excelência de um texto, a criatividade de uma diagramação. O JT deve a ele a qualidade e a beleza dwe sua melhor fase.
Em sua última passagem pela Avenida Marginal - ele mais uma vez editor-chefe do JT, eu na reportagem do Estado - tivemos rápidas conversas, quase só de pergunta e resposta, quando a gente se cruzava pelos corredores.
- Como vai a sua Igreja? - costumava me provocar, ao comentar posições oficiais do Vaticano ou manifestações de teólogos (referia-se aos da Libertação), quando queria falar de religião. Não importando o que eu pensasse, ele escutava e sorria.
Foi amizade até o fim.

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