segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Murilo, som e luz

José Hamilton Ribeiro
(texto publicado na Folha de S. Paulo em 30/5/07)

Às 22h, num sábado, na Redação da Folha, não havia quase mais ninguém. Chega a notícia de que minha mãe tinha morrido. Naqueles tempos sem celular, quem é que poderia encontrar um repórter solteiro e com fama de boêmio?

- O Murilo. O Murilo sabe da vida dessa reportada toda.
Localizaram o Murilo e, em menos de uma hora, ele me achou na casa de um tio da minha namorada. Eu saí às pressas para arranjar um jeito de ir para o interior. Murilo ficou lá mais um tempinho.

Os ventos sopraram para outro lado, aquele meu namoro veio ao fim e, algum tempo depois, Murilo estava casando com a moça que conhecera naquela noite triste (para mim).
(Quando adolescente, Murilo, que era mineiro de Lavras, passou um tempo em Areado, também MG, onde sua tia - médica - clinicava. Ali andou peruando uma moreninha, mas os ventos sopraram de novo e quem casou com essa mineirinha fui eu...)
Murilo Agostini Felisberto morreu no dia 11, em São Paulo, aos 67 anos. Ele mexeu com o jornalismo no Brasil.

Murilo e eu começamos nesta mesma Folha, no fim dos anos 50, quando o Brasil, embalado por Juscelino, vivia tempos de otimismo, muita novidade e "bossa-nova". Isso afetou também o jornalismo. Coincidiu a chegada na Folha, nessa mesma época, de uma caipirada que, após "aprender" na casa, acabou indo para a frente na profissão: Sérgio Pompeu veio a ser redator-chefe na "Veja", Woyle Guimarães, diretor da Central Globo de Jornalismo, Sérgio de Souza, edtor de texto da "Realidade", Jósé Carlos Maranhão, diretor da "Quatro Rodas", Flávio Barros, diretor na editora Globo, Washington Novais, chefe do "Globo Repórter", Aloísio Biondi, diretor de vários jornais, com Joelmir Betting correndo por fora e fazendo a modernização do jornalismo econômico com o extermínio do economês, além de uns outros que preferiram ir ganhar a vida em campo diferente: Neil Ferreira na publicidade, Mauricio de Sousa nos quadrinhos, Renato Mazzei como embaixador.
Mais uns tantos que agora esqueci.

A Redação da Folha sempre foi nervosa, efervescente, mas aquela foi de fato uma fase assinalada. Murilo era uma referência no meio da turma. Andava com um maço de revistas americanas embaixo do braço, sabia de cor as "leis do jornalismo" (a maioria vinda dos EUA, mas naquele momento foram importantes para nós) e, dizia-se, também o expediente de qualquer jornal ou revista (que valesse a pena) do Brasil e do exterior. Além de ter sempre à mão o restaurante para a gente ir comer e conversar sem garçom chato por perto.

Nos anos 50, o jornalismo nosso era atrasadão. Os títulos, padronizados, burocráticos; o texto, repetitivo e maltratado; a "mancha" (espaço da página usado para informação), quadrada, sempre igual, "fechada na oficina", como se dizia. Murilo ajudou a implodir isso, primeiro na Folha, depois nas empresas do "Estadão", no "Jornal do Brasil", na Editora Abril.

Toda Redação tem a turma dos "exibidos" (os que aparecem para o público) e o pessoal da criação, da edição. Murilo era dos que apareciam pouco. Mesmo no tempo curtíssimo em que foi repórter, publicava raramente. Com excesso de autocrítica, não ficava satisfeito com o que fazia, jogava fora, sofria... Mas, quando entregava o texto, era coisa fina. Designado uma vez para cobrir o Dia da Aeromoça (num tempo em que aviões eram de luxo, saíam e chegavam na hora, e as comissárias eram "um avião" de beleza eterna), enquanto os outros jornais saíram com títulos como "Comemora-se amanhã o Dia da Aeromoça", o texto do Murilo tinha na cabeça: "Problema de aeromoça é que ela vai ser aerovelha...".
Hoje isso parece uma firula; na época, era pura subversão.

Sendo artista plástico (desenhava com facilidade incrível, até em guardanapo), gostando de música (tocava piano) e curtidor de som (a exigência na escolha da aparelhagem de som era quase uma excentricidade), via o jornal, a revista, a página em branco com um potencial artístico de tal forma que ficaram famosas pela beleza algumas das páginas e das capas que ajudou a fazer no "JT".

Robson Alves, diretor de arte da DPZ, agência onde Murilo trabalhou muito tempo, em seus intervalos jornalísticos, diz que a principal qualidade dele, para compor e dirigir equipes tão complicadas quanto as de reportagem ou de publicitários, era "combinar pessoas", juntar talentos, apesar de eventuais diferenças, para fazer um trabalho.

Murilo Felisberto era jornalista e artista. Deixa uma filha, Carlota, e um neto, Antônio. E um aperto no peito de um velho repórter.

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