Toní Rodrigues
1- O RAFE MISTERIOSO
Uma das histórias do Mu, ele morreu sem saber, ou pelo menos sem saber a parte engraçada. Aconteceu no 5º andar da DPZ mais ou menos em 1987. Eu, o Carlão, o Delba e a Margô éramos assistentes lá, junto com o Jairo. O Mú ainda fazia dupla com o Toledão, o único dos aqui citados que eu não sei se tomou parte na trama.
Como todo mundo sabe, o Mu fazia uns rafinhos em papel manteiga bem pequenininhos, porém muito detalhados e cheios de informações, instruções e referências. Ia de tudo alí, desde o tipo a ser utilizado, com o tamanho, o corpo e a cor, até dicas do tipo “veja o livro do Lubalin”, tudo mais ou menos costurado por um desenho no traço tremidinho do Mu.
Um dia ao voltar do almoço, encontro na minha mesa uma revista Idea com um página marcada e nela, presa com durex, um dos rafinhos do Mu como os descritos acima e uma folha de papel sulfite com um título (supostamente do Toledão) para ser marcado no anúncio. Até aí tudo bem, mas ao ler o “job” melhor fui vendo que o Mu estava me pedindo um layout extremamente trabalhoso (dias pré Macintosh, tudo tinha que ser feito artesanalmente) e num canto do rafinho tinha o aviso fatal: “urgente, para as 3 horas”.
Entrei em pânico e fui falar com ele, perguntar se o prazo era aquele mesmo. A primeira coisa que ele me disse foi “Como assim, Toni? Eu não te passei trabalho nenhum...” voltei pra minha mesa, peguei tudo e mostrei pra ele, que imediatamente ficou pasmo.
Eu ainda não tinha percebido, mas nessa altura todo mundo em volta já estava saindo de fininho. Ele olhou pra mim, olhou pro rafe, olhou pra mim, olhou pro rafe, tirou os óculos, esfregou os olhos, olhou de novo pro rafe e finalmente me disse pra desencanar daquilo. Disse que era algo que ele tinha feito num outro dia, mas que o anúncio tinha sido descartado e que alguém deve ter achado aquilo por alí e colocado na minha mesa.
Abriu uma gaveta e fechou tudo lá dentro. Eu disse ok e voltei pra mesa. Passaram uns minutos e ouvi um sussurro: era o Delba (acho) me chamando pro café, onde todos riam de rolar. O rafe era falso, obra do talento de falsário do Carlão. O plano era eu ter um chilique com o prazo, mas ninguém contava que eu fosse mostrar o rafe pro Mu. Quando mostrei, todos prenderam a respiração, achando que tudo tinha ido pro caralho, mas ao perceberem que tinham enganado até ele, só restou sair de cena pra poder rir. Ficamos em dúvida se contávamos pro Mu, ou não. Achamos melhor não, afinal éramos crianças e ficamos com mêdo. Mas acho que se a gente tivesse contado ele teria dado risada junto com a gente.
2 - O JEITO DE PRONUNCIAR O MEU NOME
Meu nome, como já devem ter adivinhado, é Antonio, mas há muito tempo todo mundo que me conhece, fora do mundo da propaganda, me chama de Toní. No mundo da propaganda, por obra e graça do Mu, todos me chamam de Toní. Nem eu, nem ninguém nunca entendeu a razão disso, o Mu nunca explicou, mas de tanto insistir pegou. A tal ponto que quando minha mulher ligava pra mim e o telefone era atendido por outra pessoa, ela era frequentemente corrigida: “Você quer dizer Toní, né?”. Um dia, alguém perguntou pro Mu porque ele me tinha mudado meu nome de Toni para Toní e se isso não me incomodava, ao que o Mu teria respondido: “Se incomodar porquê? Por quê ele vai querer ser um Toni qualquer quando pode ser Toní?” Isso foi um cumprimento e tanto.
3 - O DATILÓGRAFO MAIS RÁPIDO DO MUNDO
Logo que a gente abriu o 7º andar, o Mu e eu fomos brindados com uma estagiária, daquelas que ganhavam estágio por serem filhas de cliente. Ainda não tinha redator trabalhando com a gente, o Stalimir estava pra vir da DPZ Rio (ele acabou indo pra W e o Fernandinho Teperdjian foi contratado, mas isso é outra história), mas enquanto isso não acontecia o Mu tinha a ajuda do Rique Freire, do Ruizão ou do Toledão, que continuavam no 5º andar. Mas ele também fazia redação (claro, pô, era o Mu) e pra isso tinha lá uma maquininha Olivetti Lettera 32. A nossa estagiária trouxe de casa a última moda entre os redatores da época: a primeira máquina de escrever elétrica pequena da Olivetti, que não era um trombolhão como aquelas IBMs de esfera e era o sonho de consumo de 9 entre 10 redatores da era pré-Word. Então ela começou a encher o saco do Mu, dizendo que não tinha mais cabimento se usar numa agência charmosa e moderna como a DPZ uma máquina de escrever como a que ele estava usando, que ainda por cima era muuuuuuuito mais lenta. O Mu então abaixou os óculos para a ponta do nariz e me vendo, deu um sorrisinho sacana. A seguir atacou as pretinhas com uma velocidade de metralhadora, que eu nunca tinha visto até então e datilografando com 2 dedos, catando milho, em menos de 1 minuto escreveu um texto mais ou menos do tamanho deste aqui, não me lembro mais sobre o que. A estagiária nunca mais reclamou. E depois disso eu pedi várias vezes para o Mu que fizesse aquilo de novo para que outras pessoas vissem como ele era rápido. Ele nunca me atendeu.
4 - NOSSO TIPO INESQUECÍVEL
O Mu era um grande conhecedor de tipografia, um verdadeiro expert nesta arte perdida.
Toda vez que o Mu pegava um job ele exercia em primeiro lugar o seu pensamento tipográfico. Que tipo ele ia escolher para compor o anúncio? Na era pré-Mac, pedir variações tipográficas de um título e um texto significava um volume bem grande de trabalho. Invariavelmente eu e os outros assistentes penávamos com isso, tinhamos que pedir os tipos em fotocomposição e compor o texto simulado com cópias fotográficas, quase sempre tendo que montar e remontar tudo várias vezes na base da faca, tesoura e cola benzina, abrindo o entrelinhamento e o espaço entre letras à mão, até satisfazer o Mu. Isso usando sempre três ou quatro famílias previamente escolhidas e não raro com pesos diferentes em cada uma. Às vezes ele se apaixonava por uma determinada fonte e a gente tinha que fazer de tudo com ela pra ele ver, eu ainda me lembro bem da paixão dele pela Benbo e do desprezo que teve pela Copperplate, que achava deselegantérrima. O louco é que na maioria das vezes todo esse esforço acabava num “vamos usar Futura Bold mesmo...” e isso me levava ao desespero. Porque diabos ele tinha me feito ter tanto trabalho pra acabar compondo tudo em Futura Bold? Só muito tempo depois eu saquei que ele estava era nos ensinando.
Eu e ele tinhamos uma brincadeira em comum, quando o job sobrava pra mim. Eu perguntava pra ele qual era o tipo inesquecível dele naquela semana, numa alusão à coluna “Meu tipo inesquecível” da antiga Seleções. Ele adorava. Da primeira vez que eu perguntei ele ficou surpreso e me perguntou como um garoto como eu conhecia aquela velharia, não lembro o que eu respondi, mas a bincadeira continuou. Até que teve um dia em que depois de uma dessas experimentações tipográficas com um tipo que parecia lindo no catálogo eu e ele chegamos a conclusão de que era melhor mesmo usar Futura Bold. Então eu disse assim: “É, Murilo, em certos tipos não se pode confiar...”. O Mu teve um ataque de riso e passou a repetir isso a torto e a direito, sempre que me via. Acho que ele gostou mesmo é porque eu não tinha dito aquilo sem pensar no óbvio duplo sentido da frase, que ele, sendo quem era, transformou numa coisa muito maior e melhor.
quarta-feira, 20 de agosto de 2008
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