sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Será...?

Fernão Mesquita

Tenho um amigo que, toda vez que lê um jornal, balança a cabeça e sai dizendo: “O mundo não está para os exigentes; só vão sobrar os ratos e as baratas”...

Murilinho era dos mais exigentes.

Não escolhia caminhos fáceis.

Pra ser exato, escolheu um dos mais difíceis: fazer uma obra nova todos os dias, das fundações ao acabamento, com o concurso de um bando enorme de pessoas – incontrolável como os humores humanos – e lutando exasperadamente para que cada uma delas saísse perfeita.

Sísifo perde...

Tem gente que pensa que ele era apenas o portador de um dom.

Mas não foi tão fácil assim.

O que ele recebeu “de graça” não foi mais que uma inequívoca vocação e o aguçado senso estético que deus lhe deu e ele tratou de cultivar. O resto, aquela incrível capacidade de identificar e reunir todos os diferentes talentos necessários para produzir o jornalismo-arte que fez dele uma figura central da história da profissão em nossa geração, foi arduamente construído.

Naquela sua ânsia de perfeição, Murilinho não economizava esforço. Aquela pilha de jornais e revistas do mundo inteiro que ele carregava tão constantemente que se tornou indissociável da memória da sua figura, e que incluía sempre recém nascidos desconhecidos até nas vizinhanças de onde tinham sido gerados, era a ganga no meio da qual ele garimpava incansavelmente as pequenas jóias da profissão.

Onde -- diabos! -- ele ficava sabendo da existência delas em plena era do papel, quando a informação ainda era transmitida quase manualmente, num país totalmente fechado às importações, ninguém sabe.

Mas era indisfarçável que era essa busca que punha em funcionamento a fabrica de endorfina dele.

Murilinho escarafunchava o mundo das publicações à procura de novas formas, novos conteúdos ou novas maneiras de combinar os dois, com a sofreguidão e a meticulosidade dos viciados. Acho que gastava mais do que ganhava para se dar esse luxo. Em compensação, nada do que se experimentava na arte de contar histórias ou na forma de apresentá-las escapava do seu crivo.

Como todo homem com esse nível de intensidade de atividade interior, tinha pouca paciência para as formas ritualísticas de representação do ser humano. Política, instituições, abstrações em geral – descartadas as suas manifestações mais elevadas, como a música, cujas entranhas ele destrinchava até à minúcia da vibração sonora – não faziam mais que irritá-lo e aborrecê-lo.
Não é pra menos...

O que lhe interessava mesmo eram as pessoas e as relações entre elas. E, mais que tudo, as emoções que umas despertavam nas outras. Algo que o fascinava tão completamente que não resistia à tentação de provocar essas emoções só para poder vê-las se manifestando...

Essa indulgência tinha o seu lado fértil: se, muito antes do mundo em rede, Murilinho sabia quem era quem – e o que sabia fazer -- nas mais longínquas redações do planeta, que dirá nas do Brasil!

Foi assim que ele foi pinçando, um a um, em todos os quadrantes, os talentos dispersos por este eterno gigante adormecido, para juntá-los, todos, numa mesma sala, iniciá-los nas artes que dominava, e espicaçá-los para que uns multiplicassem a força criadora dos outros.

Foi assim que ele mudou o jornalismo brasileiro. Foi assim que ele trouxe as pessoas, os indivíduos, para o centro da praça publica que é o jornal, inventou uma nova maneira de servi-las e criou um jeito novo da imprensa se relacionar com o publico. Foi assim que ele fez do Jornal da Tarde a fonte de inspiração e o plantel que abasteceu de talentos todas as redações da imprensa e da televisão brasileiras que, depois, foram surgindo ao longo do caminho que ele desbravou.

“A dor dói como dói, e não em função da causa que a produziu”, diz o poeta. As do Murilinho, portanto, não foram maiores que as dos outros. As minúcias da sua saga pessoal – a glória, o exílio, o resgate e o proverbial “assassínio” do criador pelas mais reles entre as suas criaturas – se dissolverão rapidamente no ar.

O que ele fez é o que vai ficar...

O que nós assistimos juntos, com a curiosidade e o interesse pelo processo que nos envolvia que convém aos jornalistas, foi a realização do vaticínio que um dos grandes gênios da nacionalidade ditara, três ou quatro décadas antes, através das páginas do próprio JT do Murilinho. Em meio à generalizada conflagração ideológica que chacoalhava o século XX – mais acirrada do que em qualquer outra parte, dentro das redações – Nelson Rodrigues previu “A Ascensão dos Idiotas” que, tendo começado a desconfiar de que eram maioria, vinham perdendo a humildade e a vontade de aprender e alimentando um arrogante orgulho de sua ignorância que acabaria por levá-los a subjugar o mundo pela força.

Não deu outra...

Hoje, para alem da saudade das divertidas conversas em torno de nossas indignações comuns pelo que vai pelo mundo nos almoços em cantos especiais da cidade que ele descobria e revelava com a mesma volúpia de surpreender com que apresentava a beleza de uma nova tipologia, um detalhe de arquitetura ou o refinamento de um autor ainda desconhecido, sinto uma vaga sensação de logro. Tem uma pulgazinha atrás da minha orelha que insiste em me cochichar a idéia de que, no fundo, no fundo, o Murilinho foi embora de propósito.

Ele não se conformava com esse triunfo da boçalidade!

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